terça-feira, 25 de março de 2014

O "Eu", em Descartes e Spinoza


   Estou com uma sequência de leituras bem "errática". Embora quase sempre versando sobre Spinoza, os textos têm sido lidos de forma fragmentária, conforme a minha pesquisa o determina. Apesar disso ter seu lado ruim, há coisas que aparecem, em meio a essas leituras, que talvez não viessem à lume caso eu estivesse percorrendo linearmente um só livro.
    Desta vez, lia o capítulo "Morality and the Emotions", do livro Spinoza - The Arguments of the Philosophers, de R. J. Delahunty, publicado pela Routledge, quando deparei com uma citação do livro Emotion, Thought and Therapy, de Jerome Neu - o qual, apesar de ter, nunca li. O texto de Delahunty tratava da diferença entre "ações" e "paixões", em Descartes e Spinoza, e dizia o seguinte:  "The dispute is not purely terminological, but reflects deeper metaphysical commitments. Jerome Neu puts the point well". Segue-se a citação ao texto do próprio Neu, que tratará também do "Eu": "For both, it may be said that actions are 'what I do'. But they differ in the notion of 'I' involved. Descartes identifies the person with his thinking element... our soul as opposed to his body. I am my thoughts, but most centrally I am my will, for that alone is totally within my control [...]. So only desires can be actions for mine [...]. Spinoza rejects Descartes' [...] mind-body dualism. Action, as opposed to passion, is still that which depends upon me, that which is ultimately explainable by reference to my nature, but my essence is no longer restricted to... mind. The contrast is no longer between dependence on my soul and dependence on my body, but between explanation by reference to my nature as a person (an individual mind-body) and explanation by reference to causes in the external world".
    A explicação de Neu coloca em destaque justamente o que há de mais inovador em Spinoza, no que concerne ao "eu", que é sua distinção de uma "alma", ou melhor, de uma "mente" separada do corpo. No holandês, o "eu" é o ente que existe, isto é, o indivíduo corpo-mente.

domingo, 23 de março de 2014

Goethe - Ensaios científicos


   Na semana passada, visitando uma livraria pela qual não costumo passar sempre, encontrei um pequeno livro que apresenta uma coletânea de ensaios de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), sob o título de "Ensaios Científicos - Uma metodologia para o estudo da natureza". A publicação é das editoras Barany e Ad Verbum, no ano de 2012.
   Até aqui, nada de tão especial; afinal, mesmo crendo naqueles que falam da genialidade de Goethe, o alemão não faz parte de minhas leituras - o que, aliás, reconheço como uma falha da minha formação. Mas... o que há de especial é o conteúdo do primeiro ensaio, "Estudo segundo Spinoza", escrito entre 1884-1885.
    Neste, e nos próximos posts, pretendo transcrever o tal ensaio.
   Começando...
   "O conceito de existência e de perfeição é um único e mesmo conceito; ao seguirmos esse conceito até onde nos é possível, dizemos que estamos pensando o infinito.
   Contudo, o infinito ou a existência completa não pode ser pensada por nós.
    Nós só podemos pensar coisas que sejam ou limitadas em si mesmas ou limitadas por nossa alma. Portanto, temos um conceito do infinito na medida em que conseguimos imaginar haver uma existência completa exterior à capacidade de compreensão de um espírito limitado.
   Não se pode dizer que o infinito tenha partes.
   Todas as existências limitadas estão no infinito, mas não são partes do infinito, e sim participam da infinitude.
   Não podemos imaginar que algo limitado exista por si mesmo, e no entanto tudo existe realmente por si, apesar de os estados estarem tão encadeados que um tem de desenvolver-se do outro, parecendo que uma coisa é produzida por outra, o que de fato não ocorre; em verdade, um ser vivo dá a outro o ensejo de ser e o obriga a existir em determinado momento.
   Toda coisa existente tem, pois, sua existência em si, e também a conformidade segundo a qual ela existe.
   Medir uma coisa é uma ação grosseira que, aplicada a corpos vivos, só pode ser altamente imperfeita".
   Ficamos nessa primeira página, de quatro, da versão que tenho.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Aristóteles e Spinoza... novamente


     Eu sempre enxergo grandes aproximações entre a obra de Aristóteles e a de Spinoza. Eu sei que são momentos diferentes, com fundamentos completamente desiguais - em alguns pontos até antagônicos -, mas sempre acabo conseguindo estabelecer vínculos textuais entre as duas filosofias.
   Esses dias consegui comprar o The Philosophy of Spinoza - Unfolding the Latent Process of his Reasoning, de Harry Austryn Wolfson, publicado originalmente em 1934, dividido em dois volumes. Ainda voltarei a falar desse livro aqui. Por enquanto, só quero registrar que o autor faz uma análise das questões peripatéticas, que passam pelo medievo e chegam até Spinoza, e como o nosso filósofo dá conta delas. 
    Portanto, essa conexão que eu sempre enxergo acaba sendo efetivamente apontada por esse eminente comentador, com as devidas indicações textuais. Numa dessas referências, Wolfson tratava do Da Alma, de Aristóteles. 
    Eu só conhecia o livro superficialmente. Já havia lido pedaços dele, de uma versão das Edições 70 - que, surpreendentemente, achei péssima. A começar pela informação da capa, que indicava "Título original: De Anima". Ora, Aristóteles escreveu em latim? Peraí... o Estagirita escreveu o Peri Psyché. Este é o título orginal. Mas isso é obviamente um detalhe menor. A tradução de certos termos, que são conceitos aristotélicos, é que deixam a desejar mesmo.
      Procurei a versão bilíngue da Loeb, mas só consegui encomendar pela internet. Mas acabei achando uma versão em Português que é ótima. Trata-se de Sobre a Alma, com tradução de Ana Maria Lóio, da Universidade de Lisboa, mas com uma adaptação para o Português do Brasil, feita por Luzia Aparecida dos Santos, publicado pela Editora WMF Martins Fontes, em 2013. Embora não seja bilíngue, várias notas indicam os termos gregos originais, permitindo o acompanhamento do conceito em jogo em várias partes do texto. Excelente! Melhor ainda é que o livro é mais barato do que a tradução do Edson Bini - tão questionada pelos especialistas em Filosofia Antiga... o que não é o meu caso.
   Mas vamos aos fatos.
   No meio das leituras, encontrei no site da Stanford Encyclopedia of Philosophy, o artigo Aristotle's Psychology, de Christopher Shields - autor, inclusive, de um "The Routledge Philosophers", do Aristóteles.
    Agora, sim... Vamos ao que interessa. Vejam se a complicadíssima questão da "eternidade da mente", em Spinoza, não é lembrada nessa passagem do artigo, de Shields, cujo título é "The Active Mind of De Anima iii 5":
    "After characterizing the mind (nous) and its activities in De Anima iii 4, Aristotle takes a surprising turn. In De Anima iii 5, he introduces an obscure and hotly disputed subject: the active mind or active intellect (nous poiêtikos). Controversy surrounds almost every aspect of De Anima iii 5, not least because in it Aristotle characterizes the active mind - a topic mentioned nowhere else in his entire corpus - as 'separate and unaffected and unmixed, being in its essence actuality' [...] and then also as 'deathless and everlastin' [...]. This comes as no small surprise to readers of De Anima, because Aristotle had earlier in the same work treated the mind (nous) as but one faculty (dunamis) of the soul (psuchê), and he had contended that the soul as a whole is not separable from the body".
    Podemos ver que Shields indica a surpresa do leitor diante de um tema obscuro e disputado, que é o da "mente ativa", a qual não é afetada, ou seja, não se torna passiva, e que é imortal, durando para sempre. E a surpresa se torna maior por conta da informação anteriormente dada por Aristóteles, na mesma obra, de que a alma, como um todo, não é separável do corpo.
   Em Spinoza, sabemos que, inicialmente, a mente é ideia do corpo - uma espécie de "contrapartida" deste, no Atributo Pensamento. Portanto, em tese, destruído o corpo, a mente também o seria. Mas, a partir da Proposição 20, da Parte V, Spinoza indica que falará da mente sem o corpo, e apresenta a tal questão da parte eterna da mente - composta apenas de ideias adequadas. Além disso, esta parte também não padece, é só ativa. Apesar da "ginástica mental", é bem complicado lidar com o tal "segundo momento da Parte V" da Ética, e da eternidade da mente. 
    
    

segunda-feira, 17 de março de 2014

O elogio de Aníbal


   Este blog é um reduzidíssimo espaço de amigos... uma espécie de "confraria". Não se trata, portanto, de um local de ultra-novidades... algo "fashion", diríamos.
   Embora a manifestação dos amigos que aqui vêm seja também pequena - talvez, como já disse meu compadre Mundy, por minha própria falta de agilidade em responder aos comentários lançados -, sentimos o carinho daqueles que aqui escrevem.
   O último comentário feito - ao qual respondi... Ufa! - foi do nosso amigo Aníbal. Para quem não o conhece, é um sujeito de criatividade imensa. É preciso "puxar um freio" para que ele não tenha cem blogs ativos. Rsss.
   O fato é que ele, no comentário, disse que eu entendo profundamente a filosofia de Spinoza. Inicialmente, senti-me muito honrado pela opinião. Mas, sem falsa modéstia, não se trata de algo fácil de afirmar, e principalmente com o qual concordar. Explico o porquê.
   O livro Spinoza and Spinozism, de Stuart Hampshire, mostra bem isso. É preciso, inicialmente, lembrar - conforme já postei aqui no blog - que o autor produziu seu primeiro livro sobre Spinoza (Spinoza: An Introduction to his Philosophical Thought) em 1951 e veio pensando no filósofo holandês até 2004, quando produziu o ensaio que dá título ao livro inicialmente citado. O livro Spinoza and Spinozism contém aquele primeiro, de 1951, outro ensaio influente (Spinoza and the Idea of Freedom), de 1962, além de Spinoza and Spinozism, produzido entre 2001 e 2004. 
   A questão é a seguinte. Em dado momento, Hampshire discute  o complexíssimo segundo momento da Parte V, e diz: "It cannot be claimed that we can easily understand what exactly Spinoza means when he wrote: 'The human mind cannot be absolutely destroyed with the body, but something of it, which is eternal, remains' (Ethics Pt. V. Prop. XXIII)". A referência de que não podemos afirmar ser possível entender facilmente o que Spinoza quer dizer exatamente não é apenas retórica. Hampshire manifesta uma dificuldade que é de todos - ou, pelo menos, da grande maioria dos spinozanos. O autor não se detém, no entanto, e começa a analisar o ponto em questão. Mas ele humildemente diz: "But everyone must be left further to interpret these propositions as he can, or perhaps to confess that at this point he finds himself beyond the limits of literal understanding".
    Como eu já registrei no blog, em algum outro momento, eu prefiro uma não explicação do que uma má explicação. Ou seja, eu prefiro, como indica Hampshire, confessar que determinadas coisas estão além do meu entendimento, do que aceitar - às vezes, por um mero argumento de autoridade - uma explicação abstrusa.
    Bem... e o que isso tem a ver com a opinião de nosso amigo Aníbal? Tem que, mesmo agradecendo ao elogio, eu confesso que me encontro, várias vezes, em apuros - melhor seria aporias - com Spinoza. E o que eu faço é tentar entender o texto o melhor possível... apelando aos comentadores, mas cobrando deles a coerência com o todo da doutrina.
    De qualquer modo, muito obrigado pela carinhosa opinião, caro Aníbal.