sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Erudito versus Popular

 

    No último post, tratei do autor Roger Scruton e de seu livro sobre a cultura. Esbarrando na questão do "multiculturalismo", postulei uma possível "desvalorização" da própria cultura, quando se enfatiza demasiadamente a incorporação de outras que lhes são estranhas. Uma coisa que não abordei, mas ainda espero fazê-lo, foi a da valorização, por Scruton, da cultura erudita.

    Lendo outro livro, desta vez, As razões do Iluminismo, de Sérgio Paulo Rouanet, encontrei uma discussão a respeito da qual gostaria de fazer uma citação, aqui.

    O tema é a Linguística. Rouanet apresenta uma polêmica entre linguistas tradicionalistas - que defendem o primado da norma culta - e os inovadores - que alegam que esta "norma culta" representa um desrespeito ao linguajar espontâneo da classe mais baixa, por uma classe privilegiada.

    Rouanet expõe sua opinião de que "A pretexto de respeitar a espontaneidade linguajeira da classe mais baixa, ela implica [...] mutilar seus horizontes cognitivos, impedindo que ela tenha acesso a um código mais rico e complexo".

    O autor apresenta o argumento de que "toda língua culta tem hoje em torno de 400 mil palavras, enquanto nenhuma língua natural vai além de três ou quatro mil palavras". Disso decorre que "quem domina o código culto tem uma capacidade incomparavelmente maior de expressar-se, de compreender seu próprio contexto, [...] de argumentar e contra-argumentar". Se esta não é uma necessidade lógica, não há como negar que, pelo menos em termos probabilísticos, isso é uma realidade.

    Rouanet apresenta o que poderia ser um argumento dos inovadores, dizendo que o código da classe baixa e o da classe alta são funcionalmente equivalentes, vistos que ambos servem às suas pretensões comunicativas.

    Como contra-argumento, apresenta a teoria do sociólogo britânico Basil Bernstein (1924-2000). Rouanet indica sobre Bernstein que "Ele sustenta que o código restrito condiciona estruturas de pensamento também restritas - concretas, autocentradas, incapazes de abstrair, generalizar e descontextualizar. Ou seja, sem o acesso ao código elaborado, os indivíduos de classe baixa dificilmente terão condições cognitivas para pensar de um modo totalizante, refletindo sobre os fatores responsáveis pela injustiça e pela desigualdade".

    Assim é que, pretendendo não oprimir o mais humilde com a normatividade culta, os inovadores estão, em última instância, favorecendo a continuidade de submissão daquele - não pela superioridade absoluta do seu opositor, mas por uma inferioridade relativa em que ele mesmo acaba por se colocar.

Estabelecendo uma diferença

 

    Antes de continuar avaliando a "Guerra Cultural" sob a perspectiva que estivemos utilizando até agora, vale sinalizar que há outra possibilidade de abordagem, que seria mais "europeia", se assim podemos chamá-la.

    No livro A cultura importa - fé e sentimento em um mundo sitiado, de Roger Scruton, a abordagem sobre a "Guerra Cultural" não capta tanto a estratégia de uma pretensa viabilização do marxismo no Ocidente através da subversão da cultura deste. Assim é que o autor diz: "As sociedades ocidentais estão vivendo uma crise aguda de identidade com ameaças externas, do Islã radical, e internas, do 'multiculturalismo'".

    Percebemos que o Ocidente, tendo como fundamento os valores judaico-cristãos, é tido como atacado pelo Oriente/Islã, externamente. Ao mesmo tempo, internamente, ele sofre com um fenômeno mais delicado, que parece menos hostil que o anterior. Isto porque, ao se pretender dar voz a outras culturas, dentro do Ocidente, tem-se a impressão de que só se está sendo "democrático". Contudo, não se trata apenas da inclusão de outros bens culturais, com enriquecimento da cultura que os admite. A intenção é "igualar" todos os elementos, o que, em certo sentido, acaba por diminuir o que pertence à tradição ocidental diante do que lhe é alienígeno. 

    Iremos, aos poucos, discutir essa abordagem também.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

O que há de meio "estranho"?

 

    O que julgo mais "estranho" é que, aparentemente, o suposto plano de substituição dos valores... ou de "transvaloração dos valores" - lembrando o bigodudo Nietzsche - não apresenta os valores novos apenas como mais dignos de serem tomados como fundamento da sociedade pretendida. Isso seria absolutamente compreensível. Parece, contudo, que os valores - novos e antigos - são colocados para "brigar", com um potencial, inclusive, de degradação absoluta da ordem, em vez de uma substituição de uma ordenação inconveniente, por outra melhor estabelecida.

    Vamos a um exemplo.

    Marx havia criticado a "família burguesa" pela mesma ter entrado na lógica da mercantilização. Em O manifesto comunista (1848), o filósofo alemão escreve: "A burguesia arrancou às relações familiares o seu comovente véu sentimental e as reduziu a pura relação monetária". 

    Ora, o que seria de se esperar da família inserida em uma nova ordem que se guiasse pelo marxismo? Imagino que seria a nova família abandonar a pura relação monetária e ter sobre si novamente o comovente véu sentimental. 

    Mas e se, em vez disso, propuséssemos o fim da família nuclear tal como a conhecemos? Não seria algo parecido com aquela ideia de jogar fora o bebê com a água da bacia, para eliminar a sujeira após o banho da criança? Ou seja, para resolver a situação problemática em relação a determinado objeto, elimina-se o objeto. Melhorando o exemplo: para curar um doente de câncer, mata-se o doente.



E a "guerra cultural" atual?

 

    Mas o que dizer da "guerra cultural" que, defendem alguns, está em curso agora, contra o Ocidente?

    Seguindo o que é apresentado pelos defensores desta ideia aqui no cenário brasileiro, temos que esta guerra é empreendida com a utilização das estratégias propostas pelo "marxismo cultural".

    E o que quer dizer exatamente isso?

    Em resumo, a ideia apresentada é a seguinte: quando perceberam que não haveria mais a possibilidade de implantar o socialismo - como passo inicial para o comunismo -, através de uma revolução, como preconizava o marxismo clássico, imaginou-se um outro caminho para alcançar o mesmo fim. Esse caminho seria o da substituição dos "valores burgueses" por outros, mais alinhados ao pensamento marxista, através de ações sobre a cultura ocidental.

    Assim é que, ao invés do campo econômico, que se referia à base, no pensamento marxista clássico, a atuação se daria sobre o campo cultural, referente à superestrutura daquele mesmo pensamento.

    O que parece mais interessante, entretanto, é que essas modificações seriam propostas a partir de "dentro" do próprio Ocidente, ou seja, as ações que permitiriam a substituição dos chamados "valores burgueses", na sua maior parte, seriam implementadas por cidadãos que vivenciam esses mesmos valores. Assim é que, se insurgindo contra a "democracia" de cunho liberal, os seus detratores se valeriam justamente dos espaços democráticos que admitem o embate de opiniões distintas.

    Mas há algo meio "estranho"...

    

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Essa tal "guerra cultural"

 

    Do que falamos, quando nos referimos a essa tal "guerra cultural", empreendida com base no "marxismo cultural"?

    Vamos por partes... e sem complicações desnecessárias.

    Uma "guerra" diz respeito a um conjunto de ações, propositalmente escolhidas, a fim de conquistar bens, materiais e imateriais, que pertencem a outros. Esses "bens", como foi destacado, podem ser materiais - ou seja, pode dizer respeito a riquezas naturais, produtos manufaturados, etc. - ou podem ser imateriais - como a liberdade, técnicas específicas de produção, conjuntos diversos de ideias, etc.

    Embora, dentro da perspectiva mais tradicional da Antropologia, o termo "cultura" se refira ao "conjunto de bens, materiais e imateriais, produzidos por uma sociedade e que pode ser objeto de transferência entre gerações", poderíamos ser um pouco mais "preciosistas" e destacar especificamente os "bens imateriais" para representar a cultura. Se assim o fizermos, podemos acrescentar o adjetivo "cultural" ao substantivo "guerra" e resumir a definição desse conjunto da seguinte forma: a luta de um grupo pela conquista dos bens imateriais de outro. Vale ressaltar que pode ser até uma "conquista" para eliminá-los e impor os seus próprios.

    Pensemos no seguinte exemplo do que foi dito. Conquistadores portugueses chegam a um determinado local, que receberá no futuro o nome de Brasil, e lá encontram uma sociedade com seus modos de sentir, pensar e agir; seus valores e crenças; sua língua, em resumo, com sua cultura.  Os conquistadores/colonizadores empreendem uma "guerra cultural" que começa a privar o povo originário da sua cultura, que vai sendo substituída pela língua portuguesa, pela religião católica, pelo uso de vestuário diverso do anterior, por regras de convivência e de relacionamento sociais incorporadas, etc.

    O exemplo mostra que a ideia de "guerra cultural" não é tão nova assim.