sexta-feira, 1 de novembro de 2024

A Era da Razão

 

    A Era da Razão é o título de um livro escrito por Thomas Paine em 1776. O autor, nascido em 1737 e falecido em 1809, é contemporâneo do que se chamou de Iluminismo, Ilustração ou Esclarecimento.

    O Iluminismo foi um movimento que teve lugar especialmente no século XVIII. Em termos filosóficos, teve como grandes figuras os enciclopedistas franceses (Diderot, D'Alembert, Rousseau, Montesquieu, Voltaire); os britânicos Locke e Adam Smith; além do prussiano/alemão Kant.

    Privilegiando o uso da "razão" para construir sua visão de mundo, o Iluminismo também reconhecia como valores seus a ciência, a tolerância e o secularismo.

    Uma das pedras fundamentais da cultura europeia, a religião, tornou-se alvo do movimento iluminista, porque era considerada dogmática, e, portanto, resistente ao exame da razão. 

    Fato importante, contudo, é que os pensadores que atacavam o dogmatismo religioso tinham amadurecido, emocionalmente falando, sob a égide religiosa. Por certo, alguns mais "radicais" rejeitaram tão veementemente a religião que se tornaram ateus. Outros, porém, ficaram num meio termo, digamos assim. Uma posição intermediária bem conhecida atualmente é o agnosticismo. Em breves palavras, trata-se de um ceticismo religioso. Ou seja, ciente da impossibilidade humana de alcançar um conhecimento absoluto, o sujeito cognoscente abre mão de declarar a verdade, ou falsidade, de algum elemento transcendente no que concerne à religião. Assim é que, por exemplo, o agnóstico reconhece que não pode ter conhecimento exato sobre a natureza de Deus.

    Outra possibilidade, pouco em voga atualmente, é o "deísmo". Aqui entra o nosso amigo Thomas Paine. Ele resume assim a sua posição, que vai ao encontro do deísmo:

   - sob um ponto de vista mais metafísico: "Eu creio em um Deus único [...]; e espero pela felicidade que existe depois desta vida"; e

    - sob um ponto de vista mais pragmático/social: "Acredito na igualdade entre os homens e que os deveres religiosos consistem em fazer justiça, amar o perdão e empreender esforços para tornar mais felizes os nossos semelhantes".

    A perspectiva deísta enxerga um ser todo poderoso que cria e organiza o Universo. Como parte dessa ordem, o homem justo, que perdoa e que se preocupa com a felicidade dos outros merece, ele mesmo, ser feliz depois desta vida. Assim, há uma "alma", ou coisa que o valha, que resiste à morte e que será o sujeito que experimentará as consequências das ações do indivíduo mortal. 

    Por outro lado, nas palavras de Paine, "todas as instituições eclesiásticas - a judaica, a cristã e a turca - não passam de invenções humanas".

    Apenas comecei a ler esse livro. Depois comento o que achei.

"Um imortal decidiu morrer"

 

        O título deste post - muito criativo, aliás - diz respeito a um texto publicado no site UOL, comentando o "suicídio assistido" de Antônio Cícero.

    Para quem não viu nada sobre o assunto, o irmão da cantora Marina Lima, o poeta, filósofo e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) - portanto, "imortal" - Antônio Cícero, suicidou-se, de modo assistido, na Suíça, no dia 23 de outubro, com 79 anos de idade.

    Antônio deixou uma carta em que expôs o que motivou sua ação. 

“Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!”

    Minha mãe também foi acometida de Alzheimer. Para quem a conheceu intelectualmente ativa, foi terrível constatar sua transformação. Tive a sorte de ser um dos poucos a ser identificado como muito próximo afetivamente - apesar de, para ela, fazer as vezes do meu pai, de mim mesmo, de irmão do meu filho. No finalzinho, ela, uma advogada, estava desaprendendo a escrever.

    Tendo experienciado essa queda cognitiva de minha mãe, e traçando um paralelo com meu pai, que faleceu aos 77 anos, super lúcido, passei a brincar com meus amigos que queria, eu também, despedir-me da vida com a mesma idade de meu pai. O que mais ouvia era "Isso, a gente não decide. Só Deus é que sabe". Eu não acredito em Deus, como Antônio Cícero, e o filósofo me relembrou que esta decisão pode caber a nós.

    Eu disse que "o filósofo" me relembrou, obviamente sem perder de vista aqueles "suicídios desesperados", em que a situação do sujeito é de tamanha destruição psicológica que ele só enxerga como saída o pôr fim à própria vida. Mas quis destacar o aspecto filosófico da questão. Os estoicos se suicidavam quando se encontravam não diante do desespero, mas sim da identificação de que sua vida estava "completa", por assim dizer. Isto é, quando se percebiam como tendo cumprido tudo o que haviam se comprometido a fazer. Não havendo mais nada a realizar, não fazia sentido, segundo a concepção deles, simplesmente "existir". Então, com grande tranquilidade, davam cabo da própria vida. 

    Em alguma medida, parece-me que foi o que Antônio Cícero fez - apesar de claramente dizer "minha vida se tornou insuportável". Ele fala de sua incapacidade para escrever poemas e ensaios filosóficos, bem como de ler e de conviver com os amigos. Diante da percepção do que já foi feito e das alegrias que já teve, penso que tranquilamente avaliou a situação e constatou que sua vida acabaria se resumindo apenas a "existir", e, como um valoroso estoico, lançou-se nos braços de Thanatos. 

    Percebamos que a vida se tornou "insuportável", segundo ele, por conta da impossibilidade de trazer à luz os produtos da sua criatividade e de brindar os que estavam à sua volta com a própria amizade. Trata-se de uma constatação existencial, e não apenas biológica ou mesmo psicológica. 

    Feita a escolha... realizada a ação...