O título deste post - muito criativo, aliás - diz respeito a um texto publicado no site UOL, comentando o "suicídio assistido" de Antônio Cícero.
Para quem não viu nada sobre o assunto, o irmão da cantora Marina Lima, o poeta, filósofo e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) - portanto, "imortal" - Antônio Cícero, suicidou-se, de modo assistido, na Suíça, no dia 23 de outubro, com 79 anos de idade.
Antônio deixou uma carta em que expôs o que motivou sua ação.
“Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!”
Minha mãe também foi acometida de Alzheimer. Para quem a conheceu intelectualmente ativa, foi terrível constatar sua transformação. Tive a sorte de ser um dos poucos a ser identificado como muito próximo afetivamente - apesar de, para ela, fazer as vezes do meu pai, de mim mesmo, de irmão do meu filho. No finalzinho, ela, uma advogada, estava desaprendendo a escrever.
Tendo experienciado essa queda cognitiva de minha mãe, e traçando um paralelo com meu pai, que faleceu aos 77 anos, super lúcido, passei a brincar com meus amigos que queria, eu também, despedir-me da vida com a mesma idade de meu pai. O que mais ouvia era "Isso, a gente não decide. Só Deus é que sabe". Eu não acredito em Deus, como Antônio Cícero, e o filósofo me relembrou que esta decisão pode caber a nós.
Eu disse que "o filósofo" me relembrou, obviamente sem perder de vista aqueles "suicídios desesperados", em que a situação do sujeito é de tamanha destruição psicológica que ele só enxerga como saída o pôr fim à própria vida. Mas quis destacar o aspecto filosófico da questão. Os estoicos se suicidavam quando se encontravam não diante do desespero, mas sim da identificação de que sua vida estava "completa", por assim dizer. Isto é, quando se percebiam como tendo cumprido tudo o que haviam se comprometido a fazer. Não havendo mais nada a realizar, não fazia sentido, segundo a concepção deles, simplesmente "existir". Então, com grande tranquilidade, davam cabo da própria vida.
Em alguma medida, parece-me que foi o que Antônio Cícero fez - apesar de claramente dizer "minha vida se tornou insuportável". Ele fala de sua incapacidade para escrever poemas e ensaios filosóficos, bem como de ler e de conviver com os amigos. Diante da percepção do que já foi feito e das alegrias que já teve, penso que tranquilamente avaliou a situação e constatou que sua vida acabaria se resumindo apenas a "existir", e, como um valoroso estoico, lançou-se nos braços de Thanatos.
Percebamos que a vida se tornou "insuportável", segundo ele, por conta da impossibilidade de trazer à luz os produtos da sua criatividade e de brindar os que estavam à sua volta com a própria amizade. Trata-se de uma constatação existencial, e não apenas biológica ou mesmo psicológica.
Feita a escolha... realizada a ação...
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