segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Schelling, "comentador" de Spinoza

   Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) era um verdadeiro gênio filosófico. Com apenas 21 anos de idade, era célebre por ter escrito "Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo" (1796), em que delineava seu sistema filosófico como um idealismo que tentava superar tanto o determinismo absoluto de Spinoza quanto o idealismo afirmador da liberdade de Fichte. Já com 22 anos, apresentava uma proposta mais acabada desse sistema, com "Ideia de uma filosofia da natureza" (1797).
   Não é estranho, portanto, que, contando com apenas 24 anos, tenha sido convidado a Jena, para substituir Fichte (1762-1814) - que, acusado de jacobinismo e panteísmo, teve que abandonar a universidade.
   Por outro lado, surpreende-me uma carta de Schelling ao seu amigo mais novo, Hegel (1770-1831), tratando sobre seu sistema, no que diz respeito às referências feitas a Spinoza.
   Escreve Schelling:
   "... para mim também os conceitos ortodoxos sobre Deus deixaram de existir [...] nós podemos ir além de um Deus pessoal. Pensarás, talvez, que entrementes me tornei spinozista! Não temas! Explicar-te-ei logo em que sentido. Para Spinoza é o mundo (o objeto, de modo absoluto, contraposto ao sujeito) que é tudo; para mim, é o eu.
   A verdadeira diferença entre filosofia crítica e filosofia dogmática parece-me consistir no fato de a primeira partir do eu absoluto (que ainda não está determinado por nenhum objeto), e de a segunda partir do objeto absoluto, isto é, do não-eu.
   Desenvolvidas logicamente e em profundidade, a primeira leva ao sistema de Spinoza, a segunda ao de Kant".
   Antes de qualquer consideração, há que se destacar que o "eu, que é tudo", para Schelling, não representa o mesmo "eu" oposto ao "não-eu", de Fichte. Seu "absoluto" é a fusão de todos os opostos - eu e natureza; sujeito e objeto; pensamento e ser.
   Passemos ao meu estranhamento, que absolutamente não tem a ver com a posição schellingueana de defender um Deus que não seja pessoal - afinal, essa é justamente uma posição de Spinoza.
   Até aqui, portanto, tudo bem. Sigamos, pois.
   Custou-me entender a afirmação de Schelling de que "para Spinoza o mundo (o objeto, de modo absoluto, contraposto ao sujeito) é tudo". Em momento algum Spinoza opõe "mundo"/"objeto" a "sujeito". Até mesmo sua epistemologia - lugar privilegiado para uma oposição desse tipo - determina que o verdadeiro conhecimento se dá quando o "sujeito" se percebe tão pertencente ao "Todo", à Substância, enquanto modificação desta, quanto o é o "objeto". Desta feita, o que marca "sujeitos" e "objetos" - se é que eles realmente são considerados com essa clareza e distinção no pensamento do luso-holandês, visto que só lemos sobre "modos finitos" -, na filosofia spinozana, é justamente o fato de eles não serem o próprio "tudo". Não concordaria, então, com Schelling, que Spinoza teria alinhado o objeto-mundo ao lado do "tudo", em oposição a uma possível sujeito-eu.
   A minha estranheza aumenta mais ainda, quando Schelling começa a tratar dos dois tipos de filosofias possíveis: filosofia crítica e filosofia dogmática. É importante não deixar de lado que Schelling dialogava filosoficamente, em seu momento histórico, com Fichte. Poder-se-ia imaginar, então, uma aproximação terminológica entre "filosofia crítica" e "filosofia dogmática", schellingueanos, a "idealismo" e "dogmatismo", fichteanos. Entretanto, como sua primeira grande obra opunha "criticismo" e "dogmatismo", para propor o seu sistema, que seria, esse sim, o verdadeiro "idealismo" - segundo suas pretensões -, ficaremos com um paralelo aparentemente mais simples e claro pensando "criticismo" como "filosofia crítica" e "dogmatismo" como "filosofia dogmática" - afinal, Fichte indicava que "idealismo" seria o sistema que desconsiderava a existência da "coisa em si", restando ao "dogmatismo" a posição kantiana, de manutenção da "coisa em si" no mundo, ou até, enquanto mundo.
   Ora, se a "filosofia crítica", conforme Schelling - e não como costumeiramente se associa a Kant -, parte do "eu absoluto", como sua radicalização levaria ao sistema de Spinoza, se o próprio alemão indicou que o holandês fundava sua doutrina no "objeto, de modo absoluto"?
   Para salvar Schelling, só posso crer que haja um erro de sequência na tradução da carta em questão. Entretanto, se sai "vivo", Schelling não deixa de ficar "chamuscado" nessa situação. Afinal, não me parece ter entendido perfeitamente bem o "monismo substancial" de Spinoza - sem sujeito ou objeto absolutos. 
    

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