Sob um certo aspecto, seria desnecessário pedir desculpas ao amigo Alan pela minha falta de presteza na resposta ao seu comentário... visto que ele, como eu, deve andar tendo problemas de "relógio apressado demais".
Mesmo sabendo que ele pode reconhecer isso, prefiro registrar que não é por desídia que a resposta demorou a aparecer. Só pude me debruçar sobre a questão efetivamente agora.
Fazendo um "flashback bloguístico"...
Nosso primeiro impasse, amigo Alan, foi resolvido a partir da sua concordância com a impossibilidade de sermos leitores-modelo - ou seja, de cumprirmos as "determinações" de um autor-modelo, que guia nosso entendimento e possível interpretação do seu escrito - em textos ditos "religiosos" que contenham uma cosmovisão, acompanhada de uma conversão necessária.
Você, porém, ponderou sobre essa possibilidade quando se tratam de textos, ainda que de viés "religioso", com caráter meramente estético.
Esse é um primeiro ponto a respeito do qual eu gostaria de fazer uma observação. Ao ser colocado em um "corpus" canônico religioso - ainda que tendo um fundo "estético" - conseguiria o texto ficar "livre" do jugo das determinações de encaminhamento da leitura estabelecidas por esse "segundo autor-modelo"? Pergunto isso, por exemplo, para o caso específico da Bíblia, enquanto "conjunto de livros" estabelecido ortodoxamente por um grupo com determinados interesses em jogo, que dependem de uma leitura adequada ao "todo" doutrinário. Essa figura de um "segundo autor-modelo", visto que a obra já não pode - ou, pelo menos, não deve - ser lida de forma absolutamente independente, ainda que esteja fazendo um mero "uso" do texto, inevitavelmente acaba por prescrever para os leitores uma certa estrutura a que se deve aderir.
Gostaria que você pensasse sobre isso.
Outro aspecto, muito interessante, levantado no seu comentário é o dos critérios para separar um texto filosófico de um texto teológico/mítico/místico? Reforçando seu questionamento, você indica que, principalmente na Antiguidade, a Filosofia estava "impregnada do divino e do místico", citando, inclusive, o poema parmenídico "Da Natureza".
Reconheço a dificuldade, não só na Antiguidade, mas também na Idade Média. Nessa última época, quantos filósofos não deixaram de ser reconhecidos como tais, pelo fato de terem escrito textos com alguma forma - e mesmo conteúdos mais específicos - que aparentavam "exigir" uma adesão pela fé, mas que traziam em seu interior basicamente um discurso que se poderia conduzir pela luz natural do homem?
No caso específico de Parmênides, já se especulou a possibilidade daquilo ser um mero simulacro, facilitando a "intragável" conclusão de que o Ser é... e só Ele é... sendo desde sempre, para todo sempre... da frieza de sua imobilidade... imune à multiplicidade na qual nossa existência se debate. Mas... pode não ter sido isso!
Parece-me, entretanto, bastante interessante a demarcação que Sócrates faz, na Apologia, quando, ao interrogar os "aedos", reconhece-lhes competência no produto final - e, como não o fazer, se a fonte original eram as divinas musas? -, mas indica que eles não tinham o "conhecimento", visto que só agiam "em estado de inspiração".
Fazendo uma analogia, a "participação" divina no processo de "produção" parece, segundo Sócrates, que impediria uma efetiva atividade filosófica, já que não produziria "conhecimento" nem mesmo em que escreveu o texto.
Esse é um ponto. Mas, realmente, continuamos com um problema: a não ser que o "filósofo inspirado" nos conte que a fonte de seu texto não foi a sua própria razão, ficamos reféns de saber qual "autor-modelo" seguir... e, mesmo, se é possível segui-lo, visto que suas indicações para nossa movimentação dentro da obra pode exigir necessariamente uma adesão.
Em certa medida - mas reconheço alguma fragilidade nessa posição -, penso que só a própria leitura poderá sanar essa nossa dúvida. Caso nos lancemos à leitura, ainda que preparados por nossa larga história como leitores-modelo dos mais diversos tipos de autores-modelo filosóficos, se não conseguirmos vencer o "hermetismo" do texto, identificando claramente lacunas que não parecem poder ser supridas mesmo por uma leitura dedicada, o texto deixaria de entrar no rol dos "filosóficos". A partir do estabelecimento de uma possibilidade de acesso ao texto somente pelas vias da razão, passaríamos à arqueologia das "setas no caminho", a fim de podermos aderir à estrutura interna do texto, enquanto leitores-modelo.
Voltando um pouco ao caso de Parmênides. Pensemos no texto "seco", desnudado de suas vestes mitológicas - você até irá dizer que não sobra muita coisa; o que é verdade! Mas tentemos...
Pulando o apelo às musas para que guiem nosso "anti-herói filosófico", Parmênides, vamos ver uma aparente tautologia, "O Ser é"/"O Existente existe" e "O não-ser não é"/"O não-existente não existe", se desdobrando em um "Existente" que, caso se transforme, deixa de existir, naquele primeiro sentido, passando a um estágio de "Não-existente"... criando a necessidade do imobilismo, da autocontenção, da homogeneidade, da atemporalidade, etc e tal, tudo muito bem construído. Parece-me, então, que é possível "aderir" à estrutura proposta - ainda que em termos meramente racionais, não existenciais, portanto - e dar ouvidos ao filósofo, em vez de ao "poeta" Parmênides, seguindo suas "instruções" enquanto autor-modelo.
Mas... ainda pode haver controvérsias...
Outra tarefa árdua será zerar minha dívida com o Existenz. Mas... vamos lá...
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