terça-feira, 2 de março de 2010

Marx e a "ideologia" (5)

  Os comentários de todos os amigos do blog são lidos e considerados. Até por respeito a eles, procuro sempre me dedicar a leituras específicas sobre o tema em questão, a fim de concordar - ou mesmo refutar - com o que foi dito, de uma maneira mais refletida do que intuitiva e com pouca profundidade.
  Apreciando o estilo argumentativo de Joaos, com inúmeras citações específicas dos textos sobre os quais ele escreve, resolvi pedir-lhe esclarecimento, no terceiro post da série, sobre a minha visão do "materialismo histórico" já fazer parte do pensamento de Marx, apesar dele não utilizar a expressão claramente. Isto, porque Joaos já havia comentado que eu estaria certo, em determinado ponto de minha exposição, caso estivesse me referindo ao "materialismo histórico e não a Marx" - em comentário feito no segundo post da série.
  Joaos, solicitamente, mostrou meu possível engano - em comentário ao post de número (3) -, expondo a "diferença entre as duas concepções". Ele escreveu que "O Marx maduro e os materialistas históricos (ou seja, o leninismo e todas as suas derivações: trotskistas, maoístas, stalinistas, castristas...) usam a mesma expressão literal: 'forças produtivas'... [mas com] sentidos completamente diferentes".  Novamente, citou um texto de Marx - "A Ideologia Alemã" -, onde a tal concepção de Marx sobre as "forças produtivas" estava esclarecida.
  Essa abordagem, entretanto, não conseguiu se desvencilhar, penso, do que eu havia registrado no corpo do terceiro post, como sendo a ideia de que "materialismo histórico" significa o entendendimento de que "as causas materiais (causas econômicas), de um dado momento histórico, constituem o fundamento pelo qual se explica toda a 'superestrutura' jurídica, política, religiosa, filosófica e científica desta época", e de que Marx compartilhava esse mesmo ponto de vista.
  A "amplitude conceitual" do que seriam as "causas materiais/econômicas" - no meu post - e "forças produtivas" - no comentário em questão - pode variar, mas não acho que a essência do que se discute sob o "rótulo" de "materialismo histórico" perca em precisão se esta distinção for momentaneamente deixada de lado.
  Dito isto - e reconhecendo meu menor conhecimento específico no pensador em questão do que o de Joaos -, socorro-me da lição de Battista Mondin, que, no seu "Curso de Filosofia", volume 3, ao tratar de "Os materialistas" - onde se fala, de modo separado, em Engels, em Marx, em Lenin e em Mao-tse-tung - escreve: "O materialismo histórico é... aquela concepção da história segundo a qual o fator fundamental na existência humana é o econômico. MARX FAZ SUA, SEM RESSALVAS, ESTA CONCEPÇÃO, já sustentada, aliás, antes dele, por Saint-Simon e Engels" (GRIFOS MEUS), e ainda prolonga a explicação, ao dizer que "Vimos que TAMBÉM ELE ensina que a evolução econômica determina a evolução social (a das classes) e, através desta, a política".
  Obviamente, não há como deixar de reconhecer que o manual em questão tem um caráter menos específico do que estudos feitos apenas sobre o pensamento de Marx. Reconhecido isto, entretanto, não há como fugir à identificação de que, pelo menos sem elaborações mais profundas... ou, talvez, mais "comprometidas" com a necessidade de uma leitura "padrão"/"ortodoxa", Marx pertence ao movimento do "materialismo histórico"... penso eu.
  E a série continua...

8 comentários:

Joaos disse...

Ricardo, na realidade, a obra de Marx é bastante fragmentada e incompleta, ele não deixou um "sistema" coerente e inequívoco. Mas algumas coisas parecem coerentes e permeiam toda a sua obra. Uma coisa que permeia sua crítica do capitalismo é a idéia de que o capitalismo é a autonomimização da economia, que o capitalismo transformou a economia na esfera determinante que se impõe aos próprios indivíduos que a criaram. Ele reconhece que o capitalismo surgiu como forma de satisfazer "um determinado grau" de aprimoramento das forças produtivas (que, ele explicita, é "a força dos indivíduos", como vimos na Ideologia Alemã que anterioremente citei, e não algo puramente reducionista econômico) e que, chega um momento em que essa forma entrava ou nega o conteúdo (forças produtivas), ou seja, a força dos indivíduos é obstaculizada pela forma social anteriormente criada, situação em que os indivíduos devem destruir essa forma e criar outra forma para se afirmarem (tudo isso é explícito e inequívoco no "A Ideologia Alemã" e nos "Grundisse", enquanto em outras obras é algo pressuposto, implícito).

Além disso, parece bastante claro que, para Marx, o "motor da história" não é a economia, mas a "luta de classes", isto é, a luta dos indivíduos para "afirmarem sua individualidade" (Ideologia Alemã)"com base na situação que os condicionam e que herdaram das geraçõs anteriores" (Ideologia Alemã).

Esse texto do Battista Mondin parece uma simples reprodução dos "manuais de materialismo histórico" da era stalinista. Simplesmente incorreto.

Joaos disse...

Eu diria que a categoria fundamental e presuposta em toda a análise de Marx é a "vida cotidiana" e que toda a sua crítica da ideologia, da economia, do capitalismo e tudo o mais deriva da ênfase que ele dá à vida cotidiana, a vida comum do dia-a-dia, o seu empobrecimento ou enriquecimento. E que a consideração pelo enriquecimento da vida cotidiana é o seu "materialismo".

Aliás, Marx é explicito ao rejeitar o materialismo unilateral que afirma que os homens são determinados pelas circunstâncias (por exemplo, econômicas ou educativas). Veja a 3º tese sobre Feuerbach:

"A doutrina materialista que supõe que os homens são produtos das circunstâncias e da educação e, em razão disso, os homens transformados são produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece-se de que são justamente os homens que transformam as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado. Por isso, essa doutrina acaba, necessariamente, por dividir a sociedade em duas partes, uma das quais é posta acima da sociedade (por exemplo, em Robert Owen).

A coincidência da mudança das circunstâcias com a atividade humana ou mudança de si próprio só pode ser vista e considerada racionalmente como práxis revolucionária."

Joaos disse...

Talvez a maior dificuldade para entender o antieconomicismo de Marx quando fala de "forças produtivas" seja o fato de que na sociedade em que vivemos toda a produção é econômica, ou seja, toda prática material é produção de mercadorias e, consequentemente toda força produtiva se tornou uma "coisa" separada dos indivíduos sob a forma de ferramenta ou meios de produção "coisificados". O capitalismo se tornou tão totalizante que já quase não imaginamos uma prática social que não seja econômica. Diferentemente, Marx, desde sua juventude (nos manuscritos de 1844), afirma sua idéia de "força produtiva" como a produção material da própria realidade, "do próprio mundo sensorial dos homens", a "transformação do mundo material na qual os homens afirmam e reconhecem suas próprias faculdades", que são "multilaterais" ("gustativas", "alfativas", "teóricas", "estéticas", "discursivas"... e até "amorosas"). Ele entende por "mundo material" o mundo dos sentidos ou das faculdades humanas, pois é o único mundo em que um homem existe com outro homem, inclusive pelo discurso (um mundo não material é um mundo não sensório, o mundo da imaginação, que não existe com outro homem, e portanto não é real). (novamente tudo isso é afirmado de modo explícito por Marx nos Manuscritos de 1844 e no A ideologia Alemã, até mesmo já citei os trechos anteriormente).

Ou talvez a dificuldade maior seja ler Marx sem o filtro embaçado do marxismo (a "ortodoxia", como vc diz). É uma questão semelhante a ler Nietzsche sem e o filtro embaçado do nazismo, ou Cristo sem o filtro embaçado da Igreja...

Thiago Minnemann disse...

Mas que bela discussão!
Preciso de tempo pra ler e digerir!!

Obrigado pelas frequentes visitas Ricardo! Estou mesmo muito corrido, 3 escolas e tantos projetos, mas estou feliz: projeto de cinema e filosofia e outro de iniciação à pesquisa científica!!adoro isso


Abraço!!

Ricardo disse...

Querido amigo Thiago:
Mesmo sendo suspeito para opinar, realmente tenho achado a discussão muito interessante. De um lado, alguém que parece vivenciar o pensamento de Marx, na sua forma mais original, como é o caso do Joaos, de outro, eu, ávido sorvedor do conhecimento alheio, "inespecialista" assumido no pensamento do alemão, mas seu admirador longínquo... e com o apoio, sempre crítico e bem posicionado de nosso amigo Existenz.
Sinceramente... sinto-me um privilegiado!
Obrigado pela visita, amigo.

Ricardo disse...

Caro Joaos:
Suas intervenções são sempre muito bem vindas. Reconheço sempre a importância de alguém que vai aos textos originais do pensador, o que, em Marx, não é o meu caso. Nele, reconheço, sou apenas um comentador do comentador. Isso pode trazer muitos enganos, que só a leitura crítica do original pode sanar.
Desta forma, mesmo que levando um tempo para processar - e mesmo pesquisar - suas posições, estarei sempre pronto a crescer com seus comentários - embora, sempre, efetuando uma crítica sincera sobre os mesmos, a partir de meu parco conhecimento.
O mais bonito da Filosofia é justamente remover preconceitos. E é esse exercício que estamos fazendo que possibilita essa atitude.
Abração.

Joaos disse...

É isso aí, Ricardo. Se vc pesquisar diretamente Marx, vc verá que ele está longe de ter fornecido esse sistema tosco que os marxista inventaram. Sua obra é fragmentada, incompleta e, por isso, contraditória, ambígua (por ex. há um prefácio de 1959 onde, em 1 página, Marx contradiz o anti-economicismo da maioria dos outros textos, e essa única página serviu como material para os marxistas inventarem seu sistema do "materialismo historico", descartando todo o restante de sua obra anterior e posterior, onde ele defende até mesmo "a abolição do trabalho").

Uma das coisas que acho interessante, e que tem a ver com o teu blog, é que a idéia de "forças produtivas" do Marx dos "Manuscritos econômicos e filosóficos", quando ele fala dos sentidos e faculdades humanas e do mundo onde elas se afirmam e se produzem tem muita relação, na minha opinião, com Espinoza, por ex. quando este fala das afecções dos corpos, dos afetos, que marcam os graus de aumento ou diminuição da potência de agir, a afirmação de que as idéias e corpos são uma mesma substância, que a ordem e a conexão são a mesma para corpos e idéias ...

Ricardo disse...

Caro Joaos:
Marx está, certamente, na Ordem do Dia das minhas leituras necessárias.
Alguns dos pontos que você aborda mostram uma riqueza no pensamento de Marx realmente maior do que chegou até nós com o simples rótulo de "marxismo".
Apesar de já saber que o "foco" de Marx era a "realidade humana" - afinal, foi justamente por isso que ele se lançou contra os neo-hegelianos, que pretendiam fundamentar a realidade sobre o "impalpável" -, mas a extensão dessa atenção de Marx me parecia, ainda, por demais teórica. A coisa começa a se modificar, em meu pensamento, a partir das discussões que surgiram do post original.
Precisarei de um tempo para aprofundar as leituras de Marx - e não "marxistas". À medida que isso for acontecendo... irei registrando aqui.
De qualquer forma, sempre caberá espaço para esclarecimentos e discussões pontuais.
Abração.