Há algum tempo - e nem sei se foi nesse "Spinoza e amigos" Júnior (do blogspot) ou no "Spinoza e amigos" Sênior (do ex-globolog) - escrevi sobre o fragmento de Tales que dizia que o mundo estava cheio de deuses.
Segundo minha concepção, à época, que concorda com a de muitos, o primeiro dos filósofos não só não teria ratificado a visão mítica, ao contrário do que se poderia imaginar numa leitura descuidada, como também teria feito exatamente o contrário: ele teria justamente "dessacralizado" a presença da divindade ao "vulgarizá-la". Isto é, se os deuses estão por toda a parte é justamente porque não são "tão divinos" assim... e se abriu o espaço para filosofar, efetivamente, sobre a natureza.
O problema é que eu posso estar sendo enganado pela falta de "adesão" à cultura da época. Como eu já escrevi em post recente, não se pode fazer uma análise crítica sem um mínimo de afastamento, mas essa distância, paradoxalmente, tem que, de algum modo, permitir uma proximidade com o que se critica.
E por que eu coloco essa falta de adesão como problema? É porque, em alguma medida, os gregos entendiam uma "presença" real das divindades em seu quotidiano. A ideia, minha e de outros, de que a presença da divindade em "tudo", imiscuindo-se nos assuntos quotidianos e no mundo físico, viria a banalizar e vulgarizar a própria divindade cabe muito bem para deuses - ou um Deus - transcendentes a esta mesma realidade... mas não para deuses imanentes a ela. E esse último era justamente o caso da percepção da cultura grega em relação às suas divindades.
Por esse novo ponto de vista, o fragmento em questão não teria o poder de "dessacralizar" a natureza, como eu escrevera antes... pelo menos, não tomado isoladamente... isto é, não em si mesmo.
É óbvio, entretanto, que a consideração de uma arché, de um fundamento, de um princípio material como elemento estruturante da realidade toda - isso, sim! - tem esse condão de promover a tal dessacralização. Em relação a isso, com certeza, podemos falar em Tales como um filósofo.
Fica, portanto, novamente o registro de que o historiador da Filosofia não pode simplesmente alienar-se do período que analisa, pensando que, com isso, está apenas ganhando, visto que é menos afetado pelas circunstâncias. Não! O historiador de Filosofia tem obrigatoriamente que "tocar" aquele tempo, sendo também tocado por ele, ainda que deva continuar investindo num certo distanciamento.
Mas, afinal, a visão mítica foi refutada ou salvaguardada nesse princípio da Filosofia?
Ah... isso fica para outro post!
5 comentários:
Tenho uma teoria sobre essa necessidade de estar afastado e ao mesmo tempo entar inserido para compreender qualquer assunto:
Um acontecimento humano qualquer (a filosofia de Tales, por exemplo) surge de um problema encontrado por quem está envolvido. Todo problema é, por definição, um "estar no meio" que exige (imanentemente) o afastamento. Assim, provavelmente Tales teve suas idéias em meio a algum problema ligado à sua época (qual foi, eu não sei) que, devido à sua própria inserção nela o fez se afastar dela e criar sua filosofia.
Nós, diferentemente, existimos em nossa época, em meio a qual surgem problemas sigulares que nos faz nos afastar e pensar que raios Tales pensava. Qual o problema de Tales, creio que nunca saberemos tão bem quanto podemos saber de nossos próprios problemas. É impossível ser um observador absoluto ou transcendente, e é unicamente por estamos "no meio" de nosso tempo (imanência) que que se intensifica certas coisas (problemas) que nos faz afastar de nosso mundo em direção a Tales. Só este Tales que podemos saber.
Teu post me lembra muito o que um antropólogo, Roberto da Matta, quando ele fala de "relativização", nos estudos antropológicos de outras culturas.É estar,por exemplo,estudando uma tribo indígena, viver como eles, sem ser um deles.Um terceiro olhar imerso, ao mesmo tempo,vivenciando o modus vivendi daquela tribo.
Caro Joaos:
É com muita satisfação que reencontro um comentário teu no blog.
Quero dizer, concordando com você, que imagino que o problema e a dimensão exata deste, no que diz respeito a Tales, foge-nos quanto à precisão. É certo que temos muitas "dicas" do que se passava; afinal, outros continuaram na linha de pesquisa dele, investigando, portanto, um fundamento para o "Cosmos".
Essa "angústia" por resolver um determinado problema move o nosso pensar. Nessa medida, certamente Tales & cia foram lançados à sua viagem rumo a arché por conta dessa "angústia" e do "espanto" (como já nos diziam Platão e Aristóteles) diante da falta de solução ao dito problema.
Concordo, também, quando você fala da impossibilidade de sermos observadores absolutamente "transcendentes". Acho, apenas, que essa ressalva é mais válida para o nosso próprio tempo. No caso do confronto com a "tradição remota", acho que a possibilidade até existe, em alguma medida, mas é justamente ela que eu penso que precisa ser evitada. Caso não o façamos, corre-se o risco de pensarmos um problema "do outro" apenas segundo o nosso próprio ponto de vista. Nesse caso, acho que é fundamental a vivência - até certo ponto paradoxal - desses dois aspectos, ou seja, juntar o que é "do outro" com o que é completamente "meu".
Abração... e obrigado pela participação.
Cara Mônica "Anjo Negro":
Muito bem lembrada essa referência ao nosso antropólogo Roberto Da Matta. Gosto muito dele. Aliás, ele já fez parte de alguns posts por aqui.
De qualquer forma, como você bem registrou, temos que ser um "olhar imerso", ainda que necessariamente "estranho". Se não formos estranhos não seremos um olhar suficientemente crítico e se não estivermos imersos seremos artificialmente críticos.
O desafio dos "contornos" e da "natureza" desse "olhar estranho-imerso" é que eu quis registrar, fazendo, aliás, uma espécie de mea culpa - embora eu não esteja sozinho naquela minha primeira interpretação.
Valeu pela ótima colocação! Muito obrigado!
Ricardo, é isso que eu quis dizer quando disse que nossos problemas nos faz nos afastar de nosso tempo (portanto de nosso modo dever particular) em direção ao "outro". O motivo do meu comentário é apenas porque tuas colocações sobre esse assunto me parecem muito com o "mau infinito" típico de Aristotéles, aquela coisa de "nem lá nem cá", nem transcendente nem imanente, mas "a justa medida".
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