... São Paulo, por Alain Badiou.
Continuo, nesse post, discutindo com Alan, meu amigo - e não o Alain... Badiou, um pouco mais distante, em relação ao espaço físico.
A ideia continua sendo a de refletir sobre a possibilidade de uma leitura "ideal" - ou seja, como "leitor modelo", segundo a teoria de Umberto Eco - de um texto como a Bíblia, ainda que sendo ateu.
A novidade, nesse post, é o aparecimento do Alain - o outro, que não o Alan, meu amigo -, que produziu um texto sobre o apóstolo Paulo... mesmo sendo ateu.
Comecemos pelo Alain Badiou e seu - o São!!! - Paulo.
De início, mesmo sendo ateu, o título do livro de Badiou é "São Paulo: a fundação do universalismo". Estranho esse "São" aí, não?! Alguns diriam: "Mas o homem é santo, ué?!". Entretanto, eu lembro que muitos textos filosóficos usam para "Santo Agostinho", simplesmente, a denominação de "Agostinho de Hipona" ou "Aurelius Augustinus"... e por aí vai, demarcando bem o território que pertenceria ao seu pensamento filosófico em relação àquele em que ele é tomado como modelo da vida e do pensar da Cristandade.
Mas a "entrada" de Badiou no post - de mãos dadas com São Paulo - tem a ver com sua ideia de "reconstituir a sua [de Paulo] proposta real [...] fora de qualquer religião" - conforme nos indica o prof. de Teoria da Literatura, Eduardo Guerreiro B. Losso, que escreveu comentário sobre o livro, no caderno Ideias, do Jornal de Brasil.
Indica-nos ainda o prof. Eduardo Losso que Christoph Türcke "já tinha proposto a valorização de uma verdade teológica fora da teologia, no plano materialista da evidência do sofrimento na crucificação, sendo a contrapartida real da ressurreição, que então ganha um teor negativo", em seu livro "Do potencial crítico-ideológico da teologia: consequências de uma interpretação materialista de Paulo".
E, deixando o Alain (Badiou) de lado, voltamos ao Alan daqui de perto.
Não choca um pouco a você, Alan, ler algo como "uma interpretação materialista de Paulo"? A mim "choca"... Não que eu seja um defensor do "Paulinismo" - hoje, tomado como a melhor versão, ou a mais autêntica, do que seria o "Cristianismo" -, mas isso não parece condizer com o que o autor-modelo, ainda que este não seja exatamente o autor-empírico Paulo, propôs como "estratégia" para leitura do epistolário paulino.
O prof. Eduardo Losso indica, em relação a Badiou, que "sua ousadia e uso livre de um texto bíblico deve ser apoiada contra aqueles que pretenderiam ter a posse da sacralidade de um texto e só tende a se enriquecer com o interesse da Filosofia Contemporânea".
É verdade que, enquanto "usuários", podemos fazer um "uso livre de um texto bíblico... contra aqueles que pretenderiam ter a posse da sacralidade [desse texto]". O problema é que esse "uso" não corresponde a uma "interpretação", visto que o "uso" implica a não participação na estratégia do autor-modelo... o que só viria a ocorrer com a "interpretação" - aí sim, estaríamos nos comportando como leitores-modelo.
Portanto, minha tese inicial da impossibilidade de leitura-modelo de um texto bíblico - aqui, exemplificando um texto "sagrado" de modo geral -, sem que se invista na adequação de nossa estrutura mental com aquela pretendida pelo autor-modelo - o que é impossível na circunstância de sermos ateus -, parece-me, continua válida.
Voltando para o amigo Alan, agora.
Muito relevante foi sua consideração de que a "Bíblia" possui textos de naturezas diversas - alguns "de conversão", outros "para reflexão" e mais outros tantos "biográficos".
Continua num bom caminho - penso - o Alan quando propõe que "a problemática nossa está em separar e definir a intenção do autor do texto sagrado" - e, aqui, eu acrescentaria apenas "de CADA texto sagrado", após termos reconhecido as diferentes "estratégias" solicitadas por cada um.
A tese do amigo Alan, entretanto, parece começar a ter problemas em dois pontos: (1) "Nesses textos [como o Pentateuco, por exemplo], cujo objetivo é fundamentar uma estória... [de] YAHWEH..., além de lapidar algumas doutrinas que já existiam na época [...] existe a possibilidade de sermos leitores-modelo" e (2) "se estudarmos os textos sagrados fenomenologicamente, creio que existe total possibilidade de sermos leitores-modelo".
No primeiro, porque ele escreve que aqueles textos "foram escritos como um fundamento para quem já possuía uma fé correspondente à que o autor está sistematizando". Alan faz uma apreciação mais profunda ao afirmar que a Torá dos judeus - os cinco primeiros livros da Bíblia cristã - "só serve para ser cumprida". Nesse caso, nem há que se falar em "interpretação" e participação na "estratégia do autor-modelo", visto que não há participação teórica no texto, apenas a prática. Ou seja, o texto é um conjunto de regras, que nos remete meramente a um Código. Se comparássemos com os nossos dias, não haveria como pensar em ser um "leitor-modelo" do Código Civil. Sua imposição obrigatória não é estabelecida por uma "estratégia proposta pelo autor-modelo"... o texto é apenas um instrumento do poder estabelecido, necessariamente normatizador da sociedade. Não nos cabe aderir intelectualmente a ele, ou não, cabe-nos cumpri-lo... e só!
A outra abordagem dos mesmos cinco livros, sob um óptica católica agora, tomando-os como "Pentateuco", também parece, a mim, enfraquecer a ideia de que podemos nos tornar leitores-modelo. Isto porque não há apenas a estória de Javé como um deus acima de todos os deuses, etc. e tal, como explica Alan, mas há pressupostos metafísicos admitidos que fogem ao controle do autor-empírico - imagino -, mas que estão estabelecidos como "estratégia" necessária ao leitor-modelo. Se não aderirmos, por um ato de fé, à ideia da criação ex-nihilo, ou a de um criador de potência infinita, que materializa sua vontade, mesmo sendo imaterial... e outras coisas mais, ficamos presos à impossibilidade de nos tornarmos leitores-modelo... penso eu.
O segundo aspecto colocado por Alan, da "necessidade" de estudarmos os textos fenomenologicamente, parece-me uma chave perfeita para entender, analisar e criticá-los... mas, em hipótese alguma, a mim parece que esse seja o "jogo" que o autor-modelo gostaria de jogar conosco, enquanto leitores-modelo... mesmo quando não se trata dos textos apologéticos.
Por último, destaco a ótima opinião de Alan, quanto à teologia. Ele, lucidamente, explica que esta "ciência" não estuda Deus, propriamente, mas aquilo que os seres humanos pensam ser Deus.
Aqui, ficamos com uma dificuldade kantiana: e o que Deus é, em si, sem ser o que se apresenta para nós? Kant resolveria o problema - não em relação a Deus, pois, para esse, ele "escorregaria" através da Razão Prática - dizendo que o "Deus em si" é incognoscível, restando-nos apenas o "Deus fenômeno". Mas... se esse não pode ser "constituído" a partir dos nossos sentidos - ou seja, se estes não nos dizem nada a respeito Dele -, não há que falar em "conhecimento" propriamente dito.
Mas... se não "conhecemos" Deus, não podemos falar de sua "existência" e... não seguimos a intenção do autor-modelo, que pretende tomá-lo como obviedade... portanto, não somos, ainda, leitores-modelo.
Enrolei mais... ou desenrolei um pouco?
Um comentário:
Amigo Ricardo,
Depois de alguns dias de debates, em sala ou pelos corredores, cabe-me dar uma posição final, que encerrará a discusão em um ponto, contudo, abrirá outras em lugares diversos.
Vamos às questões:
1- Há impossibilidade de sermos "leitores-modelo" em se tratando de textos sagrados? Em se tratando de textos que as regras determinam uma compreensão de uma cosmovisão, seguida de uma conversão, concordo contigo amigo, existe sim a impossibilidade. Nada mais certo! Já se tratando de textos de caráter estéticos, não heurísticos, continuo pensando que existe a possibilidade de sermos leitores-ideais.
2- Com relação ao que conversamos com o prof. Muniz acerca das instâncias humana / divina: Quando um autor-modelo pressupõe em seu texto que sua argumentação é oriunda do mundo sensível, da percepção dos sentidos, das sinapses, diriamos que o texto possui um cunho humano, estritamente. Por outro lado, se o autor-modelo convoca os Seres Externos para lhe inspirar, contar ao seu ouvido os mistérios, fazer dele apenas um instrumento, diriamos que esse texto possui um caráter meta-sentidos. Segundo o que discutimos com o prof. só há a possibilidade de sermos leitores-modelo de um texto que possua características argumentativas que não recorram à uma divindade, caso contrário, trataria de uma teologia, não uma filosofia. Se pessarmos assim, muitos textos ditos por nós "filosóficos" mas que apresentam traços "divinos"
(ex: Da Natureza - Parmênides, que estamos analizando) em seu conteúdo ou na sua forma, não passariam também de teologia. Eis aí uma outra problemática: qual(is) critério(s) usaremos para definir se um texto é filosófico ou teológico? Creio essa questão é muito complexa, e que demanda muito tempo para respondê-la, afinal, toda a filosofia - em especial a Antiga - está impregnada do divino e do místico. Mas vejo se assim não definirmos, correremos o risco de dizer que não podemos ser leitores-modelos de um texto só porque tal foi considerado possui traços míticos/dogmáticos, ou errarmos em dizer que conseguimos ser leitores-modelo de textos filosóficos, só porque eles não possuem pretensão ao convencimento.
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