sexta-feira, 17 de abril de 2009

A "Angústia" heideggeriana (2)

Como eu havia dito em post anterior, registrei muita coisa da aula de Rafael Haddock-Lobo, sobre os nossos amigos - e de Spinoza, também - Heidegger e Sartre. Obviamente, apareceram referências ao assunto que ora desenvolvemos - a Angústia heideggeriana.

Primeiro, uma frase conhecida como de Nietzsche, mas que originalmente pertence ao poeta grego Píndaro de Cinoscefale ou Píndaro de Beozia (518 a 438 aC): “Torna-te o que tu és”. É interessante que o verbo "tornar-se" tem o sentido de passagem e o verbo "ser", no caso, indica um estado já presente. Então, a frase pede para virmos a ser aquilo que já somos potencialmente, mas não em ato, ou seja, não efetivamente. De alguma forma, isso não parece remeter à passagem da existência inautêntica para a autêntica?

Agora, as notas da aula:

- "A Angústia surge no momento em que o homem percebe que ele é uma ausência de objeto [no sentido de algo 'pré-determinado' por uma essência], que ele não tem 'essência', que ele é 'nada'. Nada faz sentido porque o 'sentido' tem que ser construído pelo próprio homem."; e

- "Pensar leva à angústia e, por isso, é mais fácil se 'perder' no mundo, em meio aos outros 'objetos', praticamente tornando-se um deles".

Lembrando que o "nada" de Heidegger não é exatamente o "não-ser" absoluto, mas o "poder-ser", que é estruturante no homem. Esse "poder-ser", que é potência, implica uma ação para que o homem efetivamente seja. E essa ação depende de uma escolha livre, a qual implica responsabilidade total pelos próprios atos... e, aqui, já entramos em Sartre.

Para Sartre, o terror adviria da percepção dessa liberdade plena, que acarretaria uma responsabilidade plena. Se a responsabilidade pelos nossos atos é plena, não há a quem culpar pelos nossos insucessos, senão a nós mesmos.

Bem a propósito disso, Sartre nos diz: "Não importa o que os outros fazem a você; importa o que você faz com o que os outros fazem a você".

Utopia? Não sei... Podemos continuar pensando juntos.

De qualquer forma, temos que lembrar que, para Sartre, não há um inconsciente, um "reino" mental de lógica e organização diferentes daquelas do "reino" consciente, racional, da vontade. E aqui, distancio-me totalmente de Sartre, voltando ao meu amado Spinoza - revisitado por Freud, posteriormente -, que via nessa "liberdade" - pensada como exercício livre de escolhas pela vontade de um sujeito - uma impossibilidade.

6 comentários:

Maria disse...

Senhor Ricardo!!!
O senhor é tramado...conseguiu englobar na sua pergunta Filosofia, mas também História e Teatro
…realmente poderá haver divergências quanto ao uso Dionísio, mas não são assim tantas .Se bem reparar tudo vai dar ao mesmo …tudo vai dar ao caos, à desordem, ao inconsciente, à loucura , à desinibição, à liberação do inconsciente, ao estar fora de si. A bebida pode provocar isso. Repare que muitas pessoas usam a bebida para se desinibirem, para relaxarem...Quanto ao Teatro... Não estaremos "fora de nós "quando representamos? Pode ser que sim mas, no entanto eu defendo que em cada um de nós existe uma multiplicidade de personagens, basta procurar dentro de nós porque mesmo nas zonas mais recônditas existe a pessoa que tentamos encarnar. Pelo menos é o que digo aos garotos quando estamos na construção das personagens, que a procurem a dentro deles, porque em algum momento ela se encontrará e poderá emergir. Parece-me aqui que Pessoa contribuiu para que tenha esta opinião, afinal não foi ele que criou um complexo processo de heterónimos?
Por falar em Pessoa , quer um “ espírito dionisíco” melhor que o heterónimo Álvaro de Campos? “Sentir tudo de todas as formas”…rs Ou que tal um "espírito apolíneo de Ricardo Reis"?
Quanto ao facto do teatro entrar em decadência com Eurípedes por aproximação a Sócrates bem, não li " A Tragédia Grega " de Ni, mas sei que ele defendia o equilibrio entre os dois deuses : Apolo e Dionísio.
Embora sejam , aparentemente ,Deuses antitéticos têm uma dinâmica que se completa , uma dialéctica necessária à existência de tudo. tal como o bem e o mal, a noite e o dia o Yin e yang. A partir do momento em que essa dinâmica se quebra, a partir do momento em que se dá mais valor ao racionalismo, com Eurípedes, há uma espécie de ruptura , uma espécie de desequilibrio onde a predominância se inicia a era apolínea em detrimento da dionísica ficando determinadas características ,como a criatividade, comprometidas.
Concordo com o Ni na necessidade da coexistência desses dois espíritos:dionísico e apolíneo, mas dizer que o teatro entra em decadência quando ele mal tinha começado "conscientemente" é demais.
Talvez apenas com Sócrates ele , Teatro, se tivesse tornado mais apolíneo, mas se nos lembrarmos que nos primórdios da humanidade( com os rituais mágicos e funerários)quando há vestígios do início do Teatro e o o espírito Dionísio (apesar de Dionísio ainda não existir)estava mais presente ...vai dar a um empate técnico.
Ai...ai...Horas de ir.
Maria

Júlio disse...

Ô Ricardo, eu gostei do couvert das aulas, vê se coloca logo o prato principal!
Vou confessar que achava que "Torna-te quem tu és" era do Nietzsche.
A comparação que vc fez do poder-ser de Heidegger com a potência de Aristóteles pode funcionar mas parcialmente. Em Aristóteles o homem vai se atualizando e com isso vai aproximando o que está sendo do que é por conceito, a sua essência. Em Heidegger, o homem vai atualizando seu poder-ser e com isso vai construindo o que é a sua essência.
Eu imagino alguma coisa do seguinte jeito: imagina um caminho ligando duas ciddades. Em Aristóteles o caminho já está lá. Atualizar a potência é só andar pelo caminho, saindo da cidade A e chegando a B. Em Heidegger, o caminho é aberto pelo próprio cara. Isso quer dizer que atualizar a potência é fazer o caminho enquanto se caminha. Chegar até a cidade B é o projeto do homem, mas o caminho que ele está abrindo é a liberdade de poder-ser de muitos modos. Enquanto o caminho de Aristóteles é pré-determinado, o de Heidegger é simples possibilidade.
Eu acho que o Aristóteles não foi muito certo em dar ao homem o conceito de 'animal racional'. Isso empobreceu muito o que é ser humano.
Vc fala da utopia de Sartre e eu concordo. Além da utopia da liberdade absoluta existe uma utopia maior na crença dele do marxismo. O Camus é que foi esperto e pulou fora daquela furada antes.
Tb concordo que Spinoza e Freud entenderam melhor o homem do que Aristóteles e Sartre.
Vou omitir minha opinião sobre o Heidegger para não comprometer ele.

Ricardo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ricardo disse...

Maria:
Eu sei que sou meio "insistente" em discutir sobre nomes - em vez de "insistente", poder-se-ia ler até chato -, mas não lhe parece estranho que o grego "Διώνυσος" ou "Διόνυσος", seja transliterado como "Dioniso, Diónisos ou Dionísio"? Afinal, o final seria "sos" e não "sío"... e, para salvaguardamos o entendimento do singular, deveríamos usar só "Dioniso".
Contra o "Dionísio" ainda pesa o fato de eu saber que vocês portugueses têm o terrível hábito de ir modificando os nomes das pessoas... vê-se isso com o pobre Spinoza. Rsss.
Brincadeiras à parte, sei que o Dionísio também é muito usado. Mas vou contar-te algo: normalmente, quando vou a aulas de Filosofia e o nome é citado, faz-se a observação de que é Dioniso e não Dionísio.
Saindo dos nomes...
Quando eu falei do teu teatro, nem pensei no ator que sairia de si para representar as múltiplas personagens que até já estão nele, de alguma maneira. Eu falava de ti mesma, enquanto espectadora. Aristóteles não falou do teatro como uma espécie de catarse? Mesmo como espectadores, sairíamos da "nossa" vida, sofrendo e alegrando-nos com alguém que não somos, ainda que não sejamos exatamente as personagens. Isto é, mesmo não sendo as personagens, é como se não fôssemos exatamente nós, enquanto vivências e memórias apenas pessoais.
Além disso, tua alegria - eu citei, enquanto assistias a uma peça teatral, mas poderia ser em qualquer situação de "prazer" - deixa-te algo fora de uma racionalidade calculista, abrindo-te - e a nós todos - uma dimensão "paralela" a esse racionalismo.
Como podes perceber, não falo só da bebida como possibilitadora de um estado alterado de consciência, mas de um acesso real ao inconsciente. Não falo de uma pura eliminação das barreiras do consciente, mas de uma real abertura ao inconsciente... via "êxtase" de alegria.
Agora uma pergunta: Apolo e Dioniso, Yin e Yang se completam ou vivem em tensão?
Essa pergunta vale um post.

Ricardo disse...

Em tempo... eu excluí o meu próprio comentário para corrigi-lo.
Não há nenhuma censura entre os amigos de Spinoza.

Ricardo disse...

Júlio:
No que diz respeito a Aristóteles, embora eu saiba que Heidegger era bastante conhecedor dos antigos, parece-me que ele comete um pequeno engano: confundir "potência" com "essência", no que seria o pensamento aristotélico.
Isso que aponto como engano, em Heidegger, ele nos confirma na "Carta sobre o humanismo", quando está falando de uma interpretação metafísica e diz que a "distinção actus e potentia é identificada com a de existentia e essentia".
A realização de todas as potências em puro ato representaria uma perfeição absoluta, mas esta não se relaciona com a essência. Esta última se refere ao que não se modifica, ainda que os "acidentes" sofram mudanças.
Em Aristóteles, há a possibilidade de algo ser ato puro (como seria Deus), e mesmo assim receber um conceito, que representaria a sua essência. Portanto, o que equivale à essência aristotélica é o conceito e não a potência.
Outra pequena discordância que apontaria é que o fato de um caminho estar lá, já posto, não significa que trilhá-lo não seja realizar mais uma possibilidade, entre tantas outras, como, por exemplo, ir pelo meio do mato, ou investigar a existência de um outro caminho já construído - e, talvez, até abandonado e pouco conhecido.
Parece-me que, mesmo trilhando um caminho já existente, o homem atualiza um caminho a ser seguido potencialmente. Em realidade, se o caminho não foi aberto por ele, aquela estrada é apenas potencialidade para ele. E mais... ele nem sabe, efetivamente, se poderá chegar ao seu destino, já que mapas não são "dinâmicos" e não mostram, por exemplo, quedas de barreiras ou trechos da pista desmoronadas. Há que realizar o próprio caminho no caminhar, ainda que ele já tenha sido percorrido por outrem.
Por último, queria falar de uma sincronicidade que ocorreu. Eu pretendia postar algo sobre o pensamento de Heidegger considerando o homem como "não animal", e você incluíu no seu comentário a ideia de que o conceito aristotélico de "animal racional" empobrecer muito o homem.
Se você tiver paciência, ainda lerá algo sobre isso.