Há alguns dias, citei a coluna de Míriam Leitão sobre a desvalorização da mulher, infelizmente, ainda atual. Míriam se indignou com os casos de violência contra a mulher, citando alguns específicos, dentre os quais o da menina de nove anos do Recife. Por coincidência, chegou às minhas mãos uma notícia veiculada no jornal O Dia, de meados de março, dando conta de que o Vaticano declarara que o aborto na menina não era caso de excomunhão. Fiquei feliz com essa informação. Nem me importava se a real intenção fosse apenas apacentar a opinião pública, mesmo a católica, que se "insurgiu" contra esse ato da Igreja. O importante é que algum ser-humano de verdade no meio católico, utilizando a "luz natural" - dada, aliás, por Deus para garantir nossa humanidade... assim o veem muitos teólogos -, pôde perceber o "engano" da excomunhão da mãe e dos médicos.
Fiquei feliz, como disse, mas desconfiado. Fui ler o artigo original, publicado no L'Osservatore Romano, de autoria de Rino Fisichella, arcebispo presidente da Pontifícia Academia pela Vida.
Encontramos um exemplo de retórica bem aplicada, o que talvez não tenha sido bem entendido pelo jornal O Dia.
É verdade que o arcebispo Fisichella mostra grande lucidez quando começa da seguinte forma (a tradução é livre e minha): "O debate de algumas questões se dá de modo muito fechado e as diferentes perspectivas nem sempre permitem considerar o quão grande está posto em jogo verdadeiramente. Neste momento se deve guardar o essencial e, por um instante, deixar aquilo que não diz respeito diretamente ao problema".
O arcebispo continua sua manifestação mostrando compaixão pela menina, que ele ficticiamente chama de Carmen: "Carmen, que vinha sendo violentada repetidamente pelo padrasto, ficou grávida de gêmeos e não tinha uma vida fácil. A ferida é profunda, porque a violência, totalmente gratuita, a destruíu por dentro e dificilmente permitirá no futuro que olhe os outros com amor".
Até aqui, tudo bem. Mas, então, começa um "movimento" retórico do autor que não me agrada muito, quando informa que a estória da menina é mais uma estória da violência quotidiana, que ganhou as páginas dos jornais somente por causa do arcebispo de Olinda e Recife, quando este se apressou em declarar a excomunhão dos médicos. Diz ele: "Uma estória de violência que, por pouco, passaria inobservada... se não fosse pelas reações suscitadas à ação do bispo". Assim, a ação do bispo - tão reprovada por todos - começou a se tornar um "sinalizador" positivo da violência contra a criança.
Para fazer o "contraponto" retórico, o autor volta ao bom senso: "Antes de pensar na excomunhão, seria necessário e urgente salvaguardar a sua [da menina] vida inocente e repô-la em um nível de humanidade, do qual nós, homens da Igreja, devemos ser anunciadores e mestres".
O movimento "manipulador" final parece iniciar-se em: "É verdade, Carmen portava dentro de si outras vidas inocentes como a sua, ainda que fruto da violência, e que foram eliminadas". E continua: "A moral católica tem princípios dos quais não pode prescindir, ainda que o quisesse. A defesa da vida humana desde a sua concepção pertence a um destes."; para depois informar que "o aborto provocado sempre esteve condenado na lei moral como um ato intrinsecamente mau e este ensinamento permanece imutável desde os primórdios da Igreja até os nossos dias"; e para concluir: "A colaboração formal constitui uma culpa grave que, quando é realizada, leva automaticamente à exclusão da comunidade cristã. Tecnicamente, o Código de Direito Canônico usa a expressão 'latae sententia' para indicar que a excomunhão se dá exatamente no momento mesmo em que o fato é realizado. Não era necessário, afirmamos, tanta urgência e publicidade para declarar um fato [a excomunhão] que se dá de maneira automática".
Ou seja, ao termo da mensagem, vê-se que os médicos foram, sim, excomungados - afinal, esse é um resultado "automático" de sua ação -; que o possível engano do arcebispo de Olinda e Recife foi, talvez, declarar com tanta "urgência e publicidade" a excomunhão e que, de modo muito positivo, essa atitude dele - que pareceu "atrapalhada" - resultou na discussão sobre a violência quotidiana contra as meninas, o que passa despercebido por nós.
E viva a retórica!
PS. Para quem quiser ler o original, o endereço é http://www.vatican.va/news_services/or/or_quo/commenti/2009/062q01b1.html
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