Além de registrar a ótima discussão encetada a partir do primeiro post dessa "série", gostaria de destacar como um mesmo texto produz reações interpretativas bastante diferentes.
Viu-se, por um lado, Existenz "acolhendo" a discussão pelo viés que foi o originalmente imaginado por mim, qual seja: os direitos humanos, segundo Marx. Entretanto, por outro, percebeu-se o movimento de Joaos que, sem deixar de ser pertinente, tomou o caminho do que, para mim, era apenas um "trampolim" para alcançar o cerne do assunto: a ideologia, segundo Marx.
Ambos, perfeitos em suas críticas, aprofundaram a discussão sobre o tema... considerando-o sob pontos de vista distintos, mas igualmente com qualidade inegável.
Ao Existenz, eu tentei responder primeiro, através do segundo post da "série". E fechei o mesmo prometendo dedicar-me ao comentário do amigo Joaos. Antes mesmo, porém, que eu o fizesse, ele já lançou um comentário ao comentário. Entretanto, por uma questão metodológica, farei o meu comentário - através deste post - somente ao texto referente àquele que abriu a discussão. Portanto, deixarei, ainda, de fora as considerações de outro participante, o Garibaldolv.
Começo indicando que, no post inicial, não pretendi dizer que Marx efetivamente considerava burguesia "má" e proletariado "bom", visto que o "maldade" - que aparece entre aspas já lá - tem o sentido figurado de "artimanhas", "planos racionais para impor 'verdades' a toda força trabalhadora".
Em seguida, quero indicar que reconheço que o termo "ideologia", que aparece já no título de "A ideologia alemã", tem o sentido original de "ideário pertencente aos idealistas e neoidealistas alemães". Marx faz uma crítica a este "ideário", que atinge principalmente Feuerbach, Bauer e Stirner, questionando o fato destes restringirem suas análises às ideias, sem atingir a base material de onde elas se originam.
Até aqui, tudo bem... e obrigado. Obrigado, além de tudo, por "desdobrar" o jovem Marx do "outro" Marx, permitindo-nos observar o movimento vivo do pensador, através dos seus escritos. Usualmente, "planificamos" o pensador e dizemos "Fulano disse isso", sem nos darmos conta do momento exato daquele pensamento em sua história pessoal, o que reduz e empobrece sua vida filosófica.
Fiquei, entretanto, em dúvida quando foi escrito que eu estaria certo, se estivesse me referindo ao "materialismo histórico e não a Marx". Eu bem sei que o pensamento de Marx não pode ser absolutamente igualado ao que hoje chamamos "marxismo" - afinal, o que se estabeleceu sob este rótulo seria mais apropriadamente o "marxismo-leninismo", que também assume cores de "maoísmo". Entretanto, a expressão "materialismo histórico", se não foi exatamente cunhada por Marx, pertence ao "marxismo clássico". A ideia de que as causas materiais (causas econômicas), de um dado momento histórico, constituem o fundamento pelo qual se explica toda a "superestrutura" jurídica, política, religiosa, filosófica e científica desta época está em Marx - ainda que não expressamente sob o rótulo "materialismo histórico".
Estaria eu errado neste aspecto?
Mais do que esta pequena discordância, entretanto, eu gostaria de destacar a informação que Joaos deu de que, nos "Manuscritos de 1844", Marx "critica a alienação do homem na sociedade capitalista", que acaba implicando "a redução da riqueza multidimensional de sua vida a uma dimensão... empobrecida... que tem dois lados: a dimensão de cidadão... (dimensão política)..." - mas, principalmente, segundo minha visão, e, penso, talvez também para nosso amigo Existenz - "... a dimensão de mero comprador e vendedor de mercadorias... (dimensão da economia)". Aqui, parece-me, a possibilidade do "egoísmo", que combatemos tanto, fica totalmente aberta e potencializada.
Se, para o jovem Marx, o "comunismo seria a realização multilateral - eu preferiria dizer, como o fez Joaos na primeira parte, 'multidimensional' -, o desabrochar das dimensões multiformes da vida humana", fico com uma impressão de que ele, nessa época, estava bem mais próximo ao socialismo utópico do que de um pensamento próprio. Mas, isso não seria tanto de se estranhar; afinal, sempre se parte de algo... ainda que seja para rejeitar-lhe a validade.
Agradecemos a aula, Joaos... e queremos mais!
Curiosamente, entretanto, pergunto-me - e estendo a pergunta aos amigos todos - se Marx também não seria "inocentemente" otimista, como os hegelianos de um modo geral, acreditando num movimento sempre positivo, senão mais motivado pela dialética do Absoluto/Espírito/Eu absoluto, mas agora pela dialética da luta de classes.
To be continued... (Rsss)
Viu-se, por um lado, Existenz "acolhendo" a discussão pelo viés que foi o originalmente imaginado por mim, qual seja: os direitos humanos, segundo Marx. Entretanto, por outro, percebeu-se o movimento de Joaos que, sem deixar de ser pertinente, tomou o caminho do que, para mim, era apenas um "trampolim" para alcançar o cerne do assunto: a ideologia, segundo Marx.
Ambos, perfeitos em suas críticas, aprofundaram a discussão sobre o tema... considerando-o sob pontos de vista distintos, mas igualmente com qualidade inegável.
Ao Existenz, eu tentei responder primeiro, através do segundo post da "série". E fechei o mesmo prometendo dedicar-me ao comentário do amigo Joaos. Antes mesmo, porém, que eu o fizesse, ele já lançou um comentário ao comentário. Entretanto, por uma questão metodológica, farei o meu comentário - através deste post - somente ao texto referente àquele que abriu a discussão. Portanto, deixarei, ainda, de fora as considerações de outro participante, o Garibaldolv.
Começo indicando que, no post inicial, não pretendi dizer que Marx efetivamente considerava burguesia "má" e proletariado "bom", visto que o "maldade" - que aparece entre aspas já lá - tem o sentido figurado de "artimanhas", "planos racionais para impor 'verdades' a toda força trabalhadora".
Em seguida, quero indicar que reconheço que o termo "ideologia", que aparece já no título de "A ideologia alemã", tem o sentido original de "ideário pertencente aos idealistas e neoidealistas alemães". Marx faz uma crítica a este "ideário", que atinge principalmente Feuerbach, Bauer e Stirner, questionando o fato destes restringirem suas análises às ideias, sem atingir a base material de onde elas se originam.
Até aqui, tudo bem... e obrigado. Obrigado, além de tudo, por "desdobrar" o jovem Marx do "outro" Marx, permitindo-nos observar o movimento vivo do pensador, através dos seus escritos. Usualmente, "planificamos" o pensador e dizemos "Fulano disse isso", sem nos darmos conta do momento exato daquele pensamento em sua história pessoal, o que reduz e empobrece sua vida filosófica.
Fiquei, entretanto, em dúvida quando foi escrito que eu estaria certo, se estivesse me referindo ao "materialismo histórico e não a Marx". Eu bem sei que o pensamento de Marx não pode ser absolutamente igualado ao que hoje chamamos "marxismo" - afinal, o que se estabeleceu sob este rótulo seria mais apropriadamente o "marxismo-leninismo", que também assume cores de "maoísmo". Entretanto, a expressão "materialismo histórico", se não foi exatamente cunhada por Marx, pertence ao "marxismo clássico". A ideia de que as causas materiais (causas econômicas), de um dado momento histórico, constituem o fundamento pelo qual se explica toda a "superestrutura" jurídica, política, religiosa, filosófica e científica desta época está em Marx - ainda que não expressamente sob o rótulo "materialismo histórico".
Estaria eu errado neste aspecto?
Mais do que esta pequena discordância, entretanto, eu gostaria de destacar a informação que Joaos deu de que, nos "Manuscritos de 1844", Marx "critica a alienação do homem na sociedade capitalista", que acaba implicando "a redução da riqueza multidimensional de sua vida a uma dimensão... empobrecida... que tem dois lados: a dimensão de cidadão... (dimensão política)..." - mas, principalmente, segundo minha visão, e, penso, talvez também para nosso amigo Existenz - "... a dimensão de mero comprador e vendedor de mercadorias... (dimensão da economia)". Aqui, parece-me, a possibilidade do "egoísmo", que combatemos tanto, fica totalmente aberta e potencializada.
Se, para o jovem Marx, o "comunismo seria a realização multilateral - eu preferiria dizer, como o fez Joaos na primeira parte, 'multidimensional' -, o desabrochar das dimensões multiformes da vida humana", fico com uma impressão de que ele, nessa época, estava bem mais próximo ao socialismo utópico do que de um pensamento próprio. Mas, isso não seria tanto de se estranhar; afinal, sempre se parte de algo... ainda que seja para rejeitar-lhe a validade.
Agradecemos a aula, Joaos... e queremos mais!
Curiosamente, entretanto, pergunto-me - e estendo a pergunta aos amigos todos - se Marx também não seria "inocentemente" otimista, como os hegelianos de um modo geral, acreditando num movimento sempre positivo, senão mais motivado pela dialética do Absoluto/Espírito/Eu absoluto, mas agora pela dialética da luta de classes.
To be continued... (Rsss)
5 comentários:
Ricardo, com relação à tua dúvida sobre a idéia de materialismo histórico existir em Marx mas sem o nome de materialismo histórico mas sendo fundamentalmente a mesma coisa, vou tentar mostrar a diferença entre as duas concepções.
O Marx maduro e os materialistas históricos (ou seja, o leninismo e todas as suas derivações:trotskistas, maoistas, stalinistas, castristas...) usam a mesma expressão literal: "forças produtivas". No entanto, essa mesma expressão em Marx e no mat. hist. tem sentidos completamente diferentes: para o mat.hist., as "forças produtivas" são meramente as ferramentas, máquinas e seus produtos, ou seja, é uma massa de coisas,e não vai além disso. No texto considerado aquele que "inaugura" o Marx maduro, o "A Ideologia Alemã", o próprio Marx critica essa concepção economicista de "forças produtivas" como mera expressão da sociedade capitalista:
"[Na sociedade capitalista,] Primeiro, as forças produtivas aparecem como completamente independentes e divorciadas dos indivíduos, como um mundo próprio fora dos indivíduos [...]. De um lado, portanto, uma totalidade de forças produtivas que assumiram uma forma como que concreta e que, para os próprios indivíduos, já não são as forças dos indivíduos, mas da propriedade privada, e que por isso são dos indivíduos apenas na medida em que estes são proprietários privados."
Ou seja, para Marx, as "forças produtivas" são "as forças dos indivíduos". A sociedade capitalista se caracteriza por separar o indivíduos de suas forças. Em termos meio espinozianos, ela separa eles de sua "potência de agir".
Respondendo a tua outra questão, sobre "ideologia", vou deixar o próprio Marx responder novamente (trechos também de "ideologia Alemã"):
"Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência. [... Assim,] Parte-se dos próprios indivíduos reais e vivos e considera-se a consciência unicamente como a sua consciência.[...] A consciência, nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo real de vida.
[...]
Este modo de consideração não é destituído de premissas. As suas premissas são os homens, não num qualquer isolamento e fixidez fantásticos, mas no seu processo de desenvolvimento real, perceptível empiricamente, em determinadas condições. Assim que este processo de vida activo é apresentado, a história deixa de ser uma colecção de factos mortos — como é para os empiristas, eles próprios ainda abstractos -, ou uma acção imaginada de sujeitos imaginados, como para os idealistas."
Note aqui que o mat. hist. se enquadra exatamente nessa critica de Marx contra os "empiristas abstratos".
A seguir, Marx expõe a diferença da concepção que ele apresenta com relação com as anteriores:
Toda a concepção da história até hoje ou deixou, pura e simplesmente, por considerar esta base real da história, ou viu nela apenas algo de secundário e sem qualquer conexão com o curso histórico. [...] o que é histórico é concebido como existindo separado da vida ordinária, como extra-supraterreno. [...] Daí que tal concepção só tenha podido ver na história acções políticas de chefes e de Estados e lutas religiosas e teóricas em geral."
Eis aí toda a crítica de Marx contra a "ideologia". A "ideologia", em vez de conceber os homens em sua vida ativa, prática, cotidiana, que se manifesta de múltiplos modos, concebe os homens apenas sob o ponto de vista de algum produto separado da vida dos próprios homens que o geraram e transforma esse produto em "sistema grandioso" que determina os homens, por exemplo: para o economicismo a sociedade se resume às "forças produtivas", pro idealista, são as "idéias", pra outros, são a política e por aí vai.
Sobre a maior proximidade do jovem Marx com o socialismo utópico, isso é inegável. Mas a diferença entre os Marxs jovem e o maduro é que o Marx maduro passou a achar que idéias propositivas sobre a nova sociedade pós-capitalista são impossíveis e sempre equivocadas, porque pressupõe a ilusão de colocar-se fora da sociedade atual (a sociedade em ato) para determiná-la do alto, como um ser sobrenatural e que, como as idéias são inseparáveis da vida prática e cotidiana, se se tentar "colocar o ideal em prática" (por exemplo, uma "ditadura daqueles que tem ideais comunistas"), o resultado nada mais seria do que a reprodução da própria sociedade na qual os ideais propositivos foram gerados. Veja as "Teses sobre Feuerbach", textinho curto. De fato, Marx está a anos luz do bizonho "materialismo histórico" e de qualquer governo pretensamente "socialista".
Mas aí vem a pergunta óbvia: se ele acha ilusório propor positivamente a sociedade comunista, como Marx continua se dizendo comunista? Simples: ele considera o comunismo como um movimento em ato dentro da sociedade capitalista, a própria idéia de comunismo não é senão uma expressão limitada de práticas e lutas de homens vivos, reais e ativos que atuam na sociedade capitalista de maneira a corroê-la por dentro, na maioria das vezes sem ter a menor noção disso. Marx quer ajudá-los a ter noção disso para que juntem suas forças e potencializem sua ação corrosiva e criativa. Mas Marx acredita que sua teoria só pode ajudar na ação corrosiva desses homens e não na ação criativa. Os homens em suas ações criativas terão de criar suas próprias idéias propositivas e teorias, pois só eles viverão esse momento, essa circunstância vital, para saberem o que querem fazer. Marx escreve "O Capital" assim, tentando analisar tudo o que corrói o capitalismo por dentro e como o próprio movimento do capital condiciona e exige sua própria ultrapassagem, o comunismo.
Sobre um certo hegelianismo que acha que a sociedade tende para um suposto progresso por si mesma, de fato, ele compartilhava dessa "ideologia", desse determinismo histórico. Por exemplo, ele achava que o próprio movimento automático do capital inevitavelmente suprime as próprias condições que o fazem existir e também cria os seus próprios coveiros, e que o resultado inevitável seria uma sociedade melhor. Isso é muito questionável, no entanto acho que Marx rompe e transborda essa carapaça hegeliana toda vez que deixa de lado os "sistemas grandiosos" (que geralmente ele exprime só na introdução de seus escritos) e exprime os movimentos daquilo que ele estudou.
(me enrolei e este comentário era pra ser a sequência do meuprimeiro comentário e não o último)
Outra expressão literal usada por ambos é "modo de produção". Para o mat. hist., essa expressão significa o modo como os indivíduos separados das "forças produtivas" distribuem as coisas produzidas, dentro de um "arco histórico". Agora, veja o que essa expresão é para Marx:
"Um modo da produção não deve ser considerado no seu mero aspecto de reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, isso sim, de uma forma determinada da actividade destes indivíduos, de uma forma determinada de exprimirem a sua vida, de um determinado modo de vida dos mesmos. Como exprimem a sua vida, assim os indivíduos são. Aquilo que eles são coincide, portanto, com a sua produção, com o que produzem e também com o como produzem."
Só pra concluir a questão do materialismo histórico, é interessante que a própria crítica da "ideologia" que Marx faz se aplica ao marxismo-leninismo e ao materialismo histórico por inteiro. O materialismo histórico pega algumas palavras e expressões de Marx e faz uma salada de dogmas economicistas e políticistas tão chulos que só se explica pela idéia de Lenin de que os "fins justificam os meios". Veja, por exemplo, a expressão "partido comunista". Lênin entende essa expressão no sentido que usamos atualmente: uma elite com idéias pretensamente iluminadas que quer ascender ao poder para aplicá-las porque a população seria incapaz de tê-las (é isso que Lenin diz literalmente no livro "O que Fazer?"). Enquanto que, para Marx, "partido" vem literalmente de "parte" e significa a parte da sociedade que tende ao comunismo,tenha consciência ou não disso. É por isso que durante a vida do autor do "manifesto do partido comunista", ele nunca participou, nem criou, nem tentou criar e nem apoiou nenhum "partido comunista" e certamente não apoiaria Lenin quando este inventou de criou um.
O materialismo histórico é tão tosco que prefiro parar por aqui. Chega a dar raiva.
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