Eu sempre declarei minha preferência à ideia spinozana de que "o homem livre em nada pensa menos que na morte, e sua filosofia é uma meditação sobre a vida", sobre a heideggeriana de que "o homem é um Ser-para-a-morte".
Embora Heidegger não seja o único filósofo da História a colocar o tema em relevo, achei um texto de Montaigne, do Ensaios I, que me parece beirar o exagero. É verdade que a "morte" heideggeriana é muito mais metafísica que aquela de que trata Montaigne, que é abordada com um cunho mais psicológico. Sobre essa última, então, a supremacia da ideia spinozana - e também a epicurista - me parece absoluta.
Vamos ao texto:
"... Tiremos da morte o que tem de estranho; pratiquemo-la, habituemo-nos a ela, não pensemos em outra coisa; tenhamo-la a todo instante presente em nosso pensamento e sob todas as suas formas. Ao tropeço de um cavalo, à queda de uma telha, à menor picada de alfinete, digamos: se fosse a morte! E esforcemo-nos em reagir contra a apreensão que uma tal reflexão pode provocar. Em meio às festas e aos divertimentos, lembremo-nos sem cessar de que somos mortais e não nos entreguemos tão inteiramente ao prazer que não nos sobre tempo para recordar que de mil maneiras nossa alegria pode acabar na morte, nem em quantas circunstâncias ela sobrevêm inopinadamente. É o que faziam os egípcios, quando em seus festivais e voltados aos prazeres da mesa, mandavam trazer um esqueleto humano para rememorar aos convivas a fragilidade de sua vida: 'Pensa que cada dia é teu último dia, e aceitarás com gratidão aquele que não mais esperavas' (Horácio). Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; sabe morrer toda sujeição e constrangimento".
É lógico que o reconhecer-se finito é condição fundamental para encarar a realidade. O banimento da morte da reflexão e da vida do ser humano é uma das maiores ilusões criadas pelo pensamento místico-religioso. Entretanto, "viver" a morte em cada ato, em cada momento da existência, não se permitindo sequer aproveitar as alegrias integralmente - como nos indica Montaigne -, parece-me mais uma doença da alma do que uma cura para a vida.
3 comentários:
Olá Ricardo.
Será que o cerne do texto de Montaige, em vez de alguma “obsessão” pelo morrer, seria mais um aprender a morrer? Será que a lembrança constante da morte, para aquele que sempre se esquece que morrerá um dia, não seria uma espécie de aprendizado? Será que procedendo dessa forma não se estaria promovendo um estado onde, encarando a morte como um destino constante e inevitável, estar-se-ia mais propenso a um estado de calmaria e simplicidade do espírito inédito para aqueles que, tacitamente, sempre querem ter sua própria morte como algo infinitamente longínquo para si mesmo? Esse “estado” não seria a liberdade de que fala Montaige, e, ao mesmo tempo, não seria a própria sabedoria? Não estou respondendo afirmativamente a todas as perguntas, só estou apresentando uma outra interpretação possível com objetivo de trazer ainda mais reflexão sobre o tema abordado, que, com certeza, é muito interessante.
Um abraço.
Caro amigo Existenz:
Não tenho dúvida de que se Montaigne lesse meu post, teceria comentário bem próximo ao seu.
Certamente, a meditação dele tem por objetivo essa "espécie de aprendizado", como você bem coloca. Mas será que esse aprendizado deve mesmo acompanhar cada ação nossa? Será que é preciso "limitar" nossa alegria a ponto de haver sempre o espaço para que nos lembremos que, no instante seguinte, essa felicidade será substituída pelo nada? Será que a reflexão sobre o pertencimento do homem à natureza - incluindo, obviamente, a finitude que está inscrita em todos os entes naturais - não é suficiente para que se estabeleça esse estado que seria, talvez, liberdade e sabedoria?
De minha parte, não acho que se tenha que viver nem sob a ilusão de que não há término para nós, nem de que esse término está "infinitamente longínquo" de mim mesmo. Acho, sim, que o enfrentamento do tema finitude é importante, como vários outros - a felicidade, por exemplo. Não sei, inclusive, se um pensador honesto consegue sequer fugir ao tema, deixando de colocá-lo como pano de fundo existencial de todos os outros. Mas, volto a dizer, não me parece que ele tenha que estar presente a cada instante... como a própria possibilidade da morte está.
Aliás, temo até que a presença do tema na integralidade do nosso tempo, roube-nos o que há de mais precioso na vida, que é a própria existência. Será que podemos, honestamente, deixar de olhar uma flor no vaso sem colocar como pano de fundo que ela já está morta? Por outro lado, será que não devemos nos deixar absorver, pelo menos momentaneamente, na fruição estética que as formas e cores dela nos oferecem?
Esse "aprendizado" pode levar, também, a situações complicadas. O próprio Montaigne é um exemplo disso. Pensando que iria morrer cedo - 38 anos, acho -, retirou-se do mundo para meditar e escrever suas obras; até que viu que não morrera... e voltou às suas atividades como parlamentar e cidadão.
Portanto, penso que o reconhecimento da nossa condição de entes naturais, e por isso finitos, é fundamental, e deve ser motivo de alguma reflexão, mas não precisamos nos deter nisso em regime total. Essa "obsessão", conforme você escreveu - embora eu tenha escrito "doença da alma" -, pode também "libertar-nos" - negativamente - da própria vida, fazendo-nos agir temerariamente ou impedindo-nos de agir.
Mas suas questões são altamente pertinentes e, acho, refletem bem o espírito com que Montaigne escreveu.
Obrigado, sempre, pelos comentários.
Olá Ricardo.
Definitivamente concordo com você. O nosso próprio morrer não pode ser deixado de lado, pois precisamos encarar que vamos morrer um dia, entretanto, uma vida toda focada nesse fato futuro seria algo ainda mais desastroso. Seria muito fácil cair em um estado de eterna melancolia e constante paranóia, onde não veríamos outra coisa senão a nossa morte a cada esquina. Seria viver com medo constante, e não com constante alegria, como você colocou.
No entanto, para mim, não podemos perder o significado da intenção de Montaigne, e que também foi a mesma de Heidegger, Epicuro, Buda e muitos outros: aprender a encarar a nossa própria morte. Essa tentativa de criar um novo modo de olhar a morte é, de fato, uma tentativa de encontrar a sabedoria, algo que esteve sempre presente nas meditações de Montaigne. E, assim, sua meditação sobre o aprender a morrer, por exemplo, nos trás reflexão e até inspiração para traçarmos nosso próprio caminho para a sabedoria, mesmo que, ainda sim, não concordemos com cada palavra que ele escreveu. É por isso que acredito que seus pensamentos são de suma importância hoje, não só para os filósofos, mas também para todos os demais, e essa foi minha intenção em continuar a reflexão por meio de meu comentário.
Um abraço.
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