Spinoza enviou-me uma “carta atemporal” reivindicando uma maior participação no blog. Analisando as últimas postagens, contou-me que constatou que até o “traidor” Leibniz aparecia mais do que ele mesmo. E perguntou se eu pretendia mudar o nome do blog para “Marx e amigos”, ou coisa que o valha. Eu respondi à carta imediatamente, dizendo que não era meu interesse abandonar um mestre do quilate dele, mas que sempre fazia questão de abrir espaço para que os “amigos de Spinoza” pudessem participar. Ultrapassados quaisquer desentendimentos, lanço um post sobre o mestre.
Numa das últimas partes em que trata de Spinoza, no seu “Contra-história da Filosofia – volume 3: barrocos libertinos”, Michel Onfray usa o título “Guerra às paixões tristes”. Ele começa afirmando que “A Ética propõe igualmente uma física das paixões e uma mecânica dos sentimentos”. É uma afirmação complicada de ser feita, pois parece “materializar” completamente os “sentimentos”. É verdade, entretanto, que Spinoza escreve, no Prefácio da Terceira Parte, contra aqueles que “concebem o homem dentro da natureza como um império dentro de um império. Pois eles creem que o homem perturba mais a ordem da natureza do que a segue”. Sob este ponto de vista, pensando na “natura” latina aproximada à “physis” grega, poderíamos forçar o pensamento spinozano a, falando do pertencimento das ações – e paixões – humanas à natureza (“natura”/”physis”), realmente estar falando de uma “física das paixões”. Entretanto, penso, Spinoza só quer destacar que não há uma “exterioridade” absoluta do homem diante da natureza, nem biologicamente – e acho que ninguém nega isso -, nem mesmo em termos de “vontade”, como se o homem fosse um “mini Deus”, com vontade exterior à natureza, porém com limites que não haveria no “Deus verdadeiro”, falando em termos judaico-cristãos.
Muito mais do que pretender falar de uma “física das paixões”, penso que Spinoza pretende colocar as paixões sob uma “ordem geométrica” – não a fim de “desumanizá-las”, mas de “organizá-las”, facilitando o que pretende dizer. Isso é o que transparece no último trecho do supracitado prefácio, em que está escrito: “... eu considerarei as ações e apetites humanos como se fosse uma questão de linhas, planos ou sólidos”... isto é, geometricamente.
Voltemos a Onfray. Ele explica que “o corpo é afetado por paixões que aumentam sua potência de agir ou a diminuem”. Mais à frente propõe a pergunta “O que são, pois, as paixões tristes?”, respondendo da seguinte forma: “A vergonha, o ódio, o desprezo, a dor, a melancolia, o horror, a aversão..., o desespero, o desdém, o medo, a humildade..., a indignação..., a inveja, a cólera, a vingança..., a crueldade..., o rebaixamento de si”. A lista de Onfray é enorme e não concorda com uma usual lista cristã principalmente por conta do “humildade”. Entretanto, Onfray segue o mestre Spinoza, visto que este destaca que “humildade” tem a mesma raiz etimológica que “humilhação”, representando, em alguma medida, uma inferiorização do modo de ser humano.
Onfray fecha muito bem essa parte, dando um viés fortemente existencial ao pensamento spinozano, quando escreve: “Eis o ruim, que reduz minha potência de ser, minha adesão vital ao mundo e ao real”.
Entretanto, Onfray não é tão feliz quando começa o parágrafo seguinte. Ele escreve: “Em compensação, há que consentir a Alegria, definida por toda paixão que aumenta minha potência”. Na verdade, existem as “paixões alegres”, que realmente “aumentam a potência”, mas através da dependência a uma coisa exterior. A “Alegria” mesmo, do ponto de vista spinozano, só vem através de uma “afecção ativa”, que é o contrário de uma “afecção passiva” (uma “paixão”).
Pode parecer que é só uma questão de substituir, então, “Alegria” por “paixão alegre” no texto de Onfray, mas o autor escorrega mais feio logo a seguir, quando começa a enumerar quais seriam as tais “coisas” que aumentam a potência. Ele cita: “a glória, a admiração, o gáudio, o amor..., a esperança...”. Paro por aqui! Spinoza deixou claro que não pode haver esperança sem medo. Afinal, “esperança” é a expectativa de que algo futuro venha a ocorrer, mas sem certeza do efetivo acontecimento deste evento. Ou seja, em cada esperança há sempre um “medo” de que a coisa não se concretize. Desta feita, “medo” e “esperança” estão do mesmo lado da balança, isto é, são “paixões”... e tristes. É lógico que podemos distorcer um pouco essa concepção, dizendo que, mesmo que ilusória, a “esperança”, por vezes, nos dá forças para enfrentar a dura realidade. É verdade. Só que Spinoza não está preocupado com o mero enfrentamento da realidade, mas sim com uma potência ativa diante dela... por mais desconfortável que ela seja.
Lamentável, portanto, o engano de Onfray.
Por último, Onfray aproxima Spinoza de outro pensador que aprecio muito: Epicuro. Apesar de merecer uma leitura cuidadosa, visto que Onfray é decididamente fã de Epicuro e de seu hedonismo, o trecho é interessante: “A ética de Espinosa... não é prescritiva, mas descritiva. A virtude e o vício (palavras ausentes na obra do filósofo) supõem a utilidade. É bom o que serve ao projeto hedonista, no caso o aumento da minha potência de ser; e mau o que desserve a ele”.
Fico com a impressão de que “projeto hedonista” parece uma coisa muito ligada à “vontade” como faculdade da mente, enquanto “potência de ser” me parece mais “vital”. Portanto, aproximar apressada e acriticamente as duas coisas é meio perigoso. Mas, de qualquer maneira, a ideia de uma ausência de prescrições – prévias e absolutamente eternas e necessárias – parece atingir bem o cerne da ética spinozana. Além disso, o “bom” e o “mau” como dependentes de uma instância existencial parece tão acertado quanto o “além do bem e do mal” nietzscheano.
Pronto, querido Spinoza... aí está você novamente!!!
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