A matéria de capa da revista "Filosofia - Ciência & Vida" desse mês diz respeito à "Intolerância religiosa". O título interno, entretanto, é "A religião sem razão".
Antes de falar especificamente da matéria de capa, gostaria de registrar duas coisas que julgo interessantes. A primeira é a opinião de Voltaire, em seu "Dicionário Filosófico", no verbete "Tolerância", de que "De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, aquela que mais deve inspirar tolerância, embora, até hoje, os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos os homens".
Tirando algumas concepções religiosas orientais, penso que Voltaire estava coberto de razão sobre o Cristianismo, quanto ao fato de, depois do magnífico exemplo de seu "fundador", dever tomar para si o estandarte da tolerância. Entretanto - e, novamente, o francês acerta -, muito do que se viu de intolerância religiosa foi presentificado por esse mesmo Cristianismo.
O segundo registro interessante vem de um pensador altamente "equilibrado": John Locke. Esse inglês escreveu a famosa "Carta sobre a tolerância", em 1689. Nela, defende o livre culto entre as diferentes facções do Cristianismo, mas aponta para os limites das ações que desarmonizem a sociedade. Entretanto, triste é perceber que Locke cria "limites" para a tolerância, além desses meramente referentes à vida social, fazendo restrições aos muçulmanos e excluindo desses limites o diálogo com os ateus, visto que a crença em Deus seria a base de qualquer tolerância.
De minha parte, penso que seria melhor perdoar um possível "erro" do que impor um "acerto", sob a força da espada. Isso, se, pessoalmente, não considerasse as religiões apenas como meras construções sociais.
Aliás, algo parecido aparece logo no terceiro parágrafo da matéria da revista, escrita por Márcio Müller, quando se registra que "Voltaire... condena... as lutas religiosas, quando afirma 'esta horrível discórdia... constitui a lição... que devemos perdoar-nos mutuamente os nossos erros; a discórdia é o grande mal do gênero humano e a tolerância, seu único remédio' (Dicionário Filosófico)".
A matéria, entretanto, também revela um certo preconceito de Voltaire, quando este liga o "ateísmo" à "amoralidade", ao afirmar que "Um ateu polêmico, violento e robusto seria um flagelo tão funesto quanto um supersticioso sanguinário" (Tratado sobre a Tolerância). A afirmação é perfeita, mas poderíamos modificá-la, sem que perdesse sua veracidade, para "Um ateu harmonizador e pacífico seria muito melhor que um supersticioso sanguinário".
De qualquer modo, compartilho com uma ideia do autor da matéria da revista, quando ele escreve sobre um "Freio Divino", dizendo: "A religião é necessária em qualquer... sociedade, pois, enquanto as leis reprimem os crimes conhecidos, ... a religião se encarrega dos crimes secretos...". Afinal, enquanto o homem não puder guiar suas ações única e exclusivamente por uma consciência da necessidade do respeito em sociedade, nele precisa ser infundido o temor quanto a um "policial/juiz invisível", que tudo vê e a tudo irá punir, ainda que não lhe seja permitido presenciar muitas das penas dos erros alheios.
Pronto... está justificada a religião! Mas... não estaremos atacando o cerne do problema, que é a falta de respeito. Em oposição a este comportamento, temos a possibilidade de educar nossos cidadãos, vivificando neles a noção de que estamos todos em uma relação permanente, que precisa ser "cuidada", a fim de que todos potencializem o que há de melhor e diminuam o que há de pior na vida humana coletiva.
Enquanto não for possível um pensar maduro, que permaneçam as infantis fábulas de seres invisíveis, prontos a punir as "crianças malvadas", algo como um "Homem do Saco" ou um "Bicho Papão" onisciente, onipresente e onipotente.
7 comentários:
A palavra religião vem do latim re-ligare e significa “religação a Deus ou ao Cosmos”. Já a palavra igreja vem do grego ekklesia (ou do latim ecclesia) e significa “comunidade dos escolhidos por Deus”.
Acredito que a religião seja uma só, comum a todos os seres que fazem o caminho para dentro de si.
Já igrejas temos várias, e estão todos já erradas a partir do momento em que se julgam "o único caminho para Deus".
Interessante que acabei de postar algo que tem muito a ver com o tema. Espero que não se importe com minha forma heterodoxa de pesquisar sobre o assunto:
http://textosparareflexao.blogspot.com/2009/12/nos-nao-temos-religiao.html
Abs
raph
Caro Raph:
Farei um comentário breve, e talvez até apressado, visto que não li, ainda, seu post. De qualquer maneira, como sempre há espaço para "revisões" do pensar nesse nosso blog, ouso lançar minhas primeiras palavras sem conhecer o que você disse no seu post.
O "re-ligare" já contém um certo viés ideológico - que, aliás, você inteligentemente minora. Afinal, a Igreja católica o descreve simplesmente como "religação a Deus". Com muita sensibilidade, você registrou também como "religação ao Cosmos", o que abriria espaço até para uma "religião sem Deus", uma religião mais "anímica", que poderia dizer respeito a uma ligação com a Natureza, como era o caso, inclusive, do Paganismo e de outras religiões mais "primitivas".
Agora, em "eklesia", ao que me parece, você acrescentou o tal viés ideológico sem que ele necessariamente existisse; afinal, em grego, essa palavra indica apenas "comunidade", ou seja, "pessoas reunidas em torno de algo em comum" - seja uma doutrina teológica, filosófica, etc.
Penso que um grande problema, quando você afirma que acredita que a "religião seja uma só" é que as tais igrejas, que, como você disse "temos várias", obrigatoriamente "aprisionam" essa possível "unicidade" em tantos dogmas que fica difícil desconstruir esse arcabouço dogmático a fim de desvelar essa essência única.
Pode ser que você tenha razão, e que a "religação com o além do físico" (coloquemos assim, para fugirmos às diversas determinações específicas) seja apenas uma, mas, aceitando isso, teríamos que rejeitar tudo o que é desnecessário nas diversas "eclésias". E, penso, o que elas mais têm é o "desnecessário". E justamente por causa desse tanto de "desnecessário" é que elas vivem se digladiando.
Lerei o post no seu blog, a fim de podermos discutir mais.
Abraços.
Olá a todos.
É interessante essa ligação do termo 'religião' com 'Deus', afinal, nem todas as religiões possuem Deus - veja-se o caso do budismo. A coisa muda com a inclusão, nessa definição, do termo 'Cosmos', algo que consegue um pouco melhor abarcar também o budismo (apesar do que, esse termo já não se daria com o cristianismo, que pede o termo 'Deus').
Além disso, como Ricardo colocou, há diferentes interpretações para o significado das palavras, fora a grande mudança que cada palavra sofre, em relação ao seu uso, com o passar do tempo. E isso, ao mesmo tempo, dá uma enorme riqueza às palavras e também um grande problema para lhes fixar um sentido definitivo e universal. Espero, com isso, ter dado uma contribuição ao assunto.
Um abraço.
Caro amigo Existenz:
Se você quiser me colocar no SPC, pela grande dívida que tenho com você, a autorização está dada.
Pelo menos, estou como aqueles devedores menos desonestos que dizem "Devo, não nego; pago, quando puder!".
A sua carta está esperando uma resposta "adequada", visto que será difícil dar uma "boa" resposta, em função da qualidade da sua correspondência original.
Além disso, confesso-me devedor, também, em dois outros assuntos, pelo menos, a "violência urbana" - que surgiu em um post sobre a Míriam Leitão - e a "democracia" - que apareceu em um comentário seu sobre um post meu do livro do Saturnino Braga.
Pelo menos, respondo a esse seu comentário... embora não me furte, no futuro, a fazer o mesmo com os outros.
Como você bem registrou, nossa linguagem é viva... as palavras vão evoluindo, e, em parte, deslocando o sentido mais primitivo dos conceitos que carregam. Concordando em parte com os "analíticos", grande parte dos problemas de Filosofia é, na verdade, problema com a linguagem.
Então, em qualquer campo do pensamento - mas, com mais força na Filosofia - é importantíssimo, acho, inicialmente "fixar" o que cada conceito estabelece. Só a partir dessa tarefa realizada é que se torna possível "conversar".
Aliás, esse era o ponto de partida da dialética socrático-platônica: estabelecer o que é determinada coisa. Isso surgia a partir de aproximações sucessivas, provenientes da depuração dos conceitos que cada um tinha em sua mente.
Como você disse, há uma grande dificuldade em fixar um "sentido definitivo e universal". E, talvez, seja isso justamente o contrário do que deva ser feito. Talvez, o mais correto seja perceber a história do conceito, percebendo todas as possibilidades que ele traz em si - o que também não é fácil.
"Religião", se for tomado nesse aspecto da religação com o divino, por exemplo, pode excluir algumas "escolas" que se costuma chamar religiosas. A abertura para incluir "Cosmos" pode facilitar um pouco.
Será que se religião fosse "religar o homem a si mesmo" ficaríamos muito longe de tudo o que já foi dito? Afinal, se o homem é um microcosmo e tem a divindade em si, não estaríamos nos religando a todo esse "mundão" transcendente reforçando nossa ligação conosco?
Ricardo, realmente não precisa ter pressa para responder a carta. E mais do que isso, não vejo como pode haver qualquer obrigatoriedade de como deve ser essa resposta, tanto em termos de tamanho, como de aprofundamento. Como falei no início da carta, Heidegger é um autor complicado e difícil de ser debatido, inclusive para mim, ficando problemático se aprofundar muito sobre sua filosofia a partir de um certo ponto.
Quanto aos outros assuntos dos quais você diz estar em débito, acho que o melhor mesmo é relaxar, e não se colocar como tendo um compromisso em seguir esses assuntos adiante. O seu blog é um espaço seu, um lugar onde você divulga seus pensamentos e “preocupações intelectuais”, e é essa espontaneidade que faz a beleza do blog. Os tópicos tratados, portanto, trazem a sinceridade, as características e a espontaneidade de seu espírito, e em uma certa situação específica da sua vida, a ponto de quase registrarem um pouco da história da sua vida. Eu vejo os “amigos” do blog, dos quais eu me incluo, como aqueles que poderão comentar e contribuir com o que foi postado nesses tópicos, manifestando aí suas idéias pessoais em função do que é tratado, e é isso. Entendo a sua preocupação em dar atenção a todos que compartilham esse “seu espaço”, mas não acredito que seja necessário sair da trilha fundamental do blog para isso. Acho que se um dia se sentir inspirado para voltar a esses assuntos você irá fazê-lo muito bem, como sempre.
A respeito do seu comentário sobre as características inerentes à linguagem e da necessidade de se apurar sempre os conceitos, concordo. A respeito da relação que você fez entre homem-mundo mediatizado pela “divindade”, eu ainda precisaria de mais dados para conseguir alcançar o que está querendo dizer.
Um abraço.
Amigo Existenz:
Só posso agradecer sua compreensão. De qualquer modo, continuo com a intenção de manter a troca da nossa correspondência - que reputo como uma ótima oportunidade para mim - e também de manter vivos os assuntos que ficam "pendentes".
Realmente, como você disse, o blog conta a minha história. Mas a troca de opiniões com todos os amigos do blog - e você é um dos que mais se manifesta e, portanto, merece resposta - também faz parte dessa minha história.
Agora, sobre a "relação homem-mundo mediatizada pela divindade", que eu teria citado, nem eu achei essa ideia no post.
Então, faço-lhe um pedido: destaque essa parte do meu texto, para eu poder tentar explicar melhor.
Abração.
Olá Ricardo. Sempre sábio, concordo com o que disse sobre meus comentários.
A respeito do ponto do seu texto do qual eu estava me referindo quando falei sobre a "relação homem-mundo mediatizada pela divindade", é esse aqui:
"Será que se religião fosse 'religar o homem a si mesmo' ficaríamos muito longe de tudo o que já foi dito? Afinal, se o homem é um microcosmo e tem a divindade em si, não estaríamos nos religando a todo esse 'mundão' transcendente reforçando nossa ligação conosco?"
Um abraço.
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