sábado, 11 de julho de 2009

Nietzsche admirador de Spinoza

O título do post poderia ser "Desfazendo um engano", pois escrevi erradamente que Nietzsche teria deixada registrada sua admiração por Spinoza em um livro, contrariando a informação correta de Guilherme de que teria sido em uma carta.
A informação correta é a de que Nietzsche registra seu apreço por Spinoza em carta endereçada a Franz Overbeck, datada de 30 de julho de 1881.
Para matar a curiosidade sobre o conteúdo da carta, transcrevo parte do que ela continha.
"Estou profundamente surpreso, encantado; tenho um precursor e que precursor! Eu conhecia pouco Spinoza: que eu me tenha voltado para ele justamente agora, me foi inspirado pelo instinto... Sua tendência suprema é a minha, que faz do conhecimento o mais potente dos afetos... Em suma: minha solidão, que, como sobre cumes elevados, com frequência tornou minha respiração difícil e esvaziou meu sangue, é ao menos uma dualidão".
Nietzsche registra, também, os pontos em que se identifica com Spinoza, na seguinte passagem: "Me reencontro em cinco pontos primordiais de sua doutrina: ele nega o livre arbítrio, a finalidade, a ordem moral do mundo, o desinteresse e o mal".
Sinceramente, não entendi o tal "desinteresse", que Nietzsche registrou. Mas...
Mais tarde, como sabemos, Nietzsche se voltará também contra nosso simpático filósofo luso-holandês. Mas seria pedir muito a constância em Nietzsche! De qualquer forma, mesmo na referida carta, o bigodudo alemão já demarca seu "território" filosófico do de Spinoza, quando diz: "É verdade que as distâncias [entre nós] são também enormes, mas elas se devem sobretudo às diferenças de época, de cultura e de ciência".
O fato é que, ao que me parece, novamente Nietzsche cometeu uma injustiça em suas críticas, da mesma forma que já o fizera em relação à acusação da radical conceitualização presente em Sócrates. O professor André Martins, especialista em Spinoza, aqui no Rio, escreveu algo sobre isso, no artigo "Nietzsche, Espinosa, o acaso e os afetos": "Nietzsche passará a criticar Espinosa, por interpretar que este consideraria o conhecimento como algo oposto aos instintos (ou afetos) - quando, todavia, Espinosa propõe que o conhecimento é justamente o que permite uma transmutação dos afetos de tristes, porque passivos, a alegres, porque ativos. O maior incômodo de Nietzsche deve-se, sem dúvida, ao racionalismo das obras espinosianas e, em particular, à ordem geométrica de demonstração pela qual Espinosa apresenta sua Ética. Estas crítcas começam a aparecer em Gaia ciência. Podemos concluir que Nietzsche não considerava o intelectualismo de Espinosa uma forma alegre (um gaio saber) para se chegar à alegria. A crítica de Nietzsche a Espinosa dirige-se sobretudo ao método deste, e não às suas ideias; não invalidando, portanto, seus pontos em comum".

4 comentários:

Prof. Guilherme Fauque disse...

Realmente Ricardo... já tinha observado, embora ainda não tenha realizado uma comparação mais apurada entre os dois pensadores, que a questão da diferença está muito mais num entendimento errado de Nietzsche quanto a Spinoza e na sua crítica ao racionalismo.

Creio que se ele, Nietzsche, vivesse nos dias de hoje e tivesse acesso aos atuais estudiosos de Espinosa, ele repensaria sua posição.

De qualquer forma, Nietzsche não é um pensador de sistema, mas de posições. Não podemos falar de um "sistema nietzscheano". Tanto é que se chega a dividir suas obras em três grandes épocas de sua vida. Portanto, como você diz, Ricardo, seria pedir muito de Nietzsche que ele mantivesse a mesma posição em toda a sua obra - rsrsrsrs.

Ricardo disse...

Caro Guilherme:
Primeiramente, acho que, apesar de Spinoza ser um filósofo "de sistema" e de Nietzsche ser justamente o contrário disso, acho que ainda caberia, segundo uma crítica mais desapaixonada - embora eu saiba que Nietzsche não se permitiria isso -, uma grande aproximação entre a ética spinozana e a nietzscheana. Nem falo de conceitos específicos, como o "conatus" e a "vontade de potência" ou o "amor intellectualis Dei" e o "amor fati". Falo efetivamente de pontos como aqueles que o próprio Nietzsche listou: negação do livre arbítrio, da finalidade, da ordem moral do mundo, do não-egoísmo e do mal.
Aliás, diga-se de passagem, a negação do "desinteresse", que eu havia registrado, ficou entendido, e se refere à negação da existência de uma ação humana que se desse sem nenhum apelo afetivo. Isto é, sempre agimos segundo afecções prévias, nunca desinteressadamente, conforme um mero ente calculista utilizando a equação do Pragmatismo
Voltando... Essas características, mesmo dentro do plano spinozano de falar de sentimentos como se falasse de geometria, não se afastam tanto do que Nietzsche defenderia. Portanto, segundo penso, há aproximações válidas entre as duas morais. Embora elas não sejam, obviamente, plenamente intercambiáveis.
Além do mais, não sei qual a sua opinião sobre o que vou dizer, mas acho que é possível "enriquecer" entendimentos de um sistema, com partes de outros sistemas, recontextualizando esses últimos, segundo o primeiro.
Não defendo a criação de Franksteins, mas acho que isso é possível. Por exemplo, acho que Spinoza pode ter esclarecido pouco sobre sua epistemologia. Talvez a tenha deixado "psicológica" demais - a menos da possibilidade do conhecimento de terceiro gênero, bastante "metafísico". Desta feita, cabe, segundo penso, uma "complementação" kantiana.
Aliás, como você já deve ter percebido, sou epistemologicamente um kantiano... apesar de eticamente spinozano. Rsss.
Concordo, então, que as releituras spinozanas mais recentes poderiam ter livrado o nosso amigo Spinoza de algum preconceito de Nietzsche.

Prof. Guilherme Fauque disse...

Belas reflexões Ricardo!!!! Concordo plenamente contigo! Embora não seja algo fácil de fazer, por diversos fatores, estas aproximações são sempre muito interessantes.

Normalmente é muito mais comum vermos justamente o oposto, ou seja, pontuações de erros ou pontos negativos a partir de determinados pensadores. Kant criticava Espinosa e aí, o pessoal pesquisa estes pontos de divergência. Mas, convergências são raras. Nize de Oliveira fez um livrinho fininho, mas muito legal focalizando nestas convergências a partir do pensamento de Espinosa. Com certeza você já leu ;)

Júlio disse...

Ricardo, gostei de saber dessa proximidade das éticas de Spinoza e Nietzsche. Acho Nietzsche muito atual. Mas ele parece um pouco o Sócrates, pq só questiona a sociedade, sem chegar a uma conclusão. O Sócrates questionava as interpretações das pessoas sobre os conceitos, mas não dizia o que eles eram de verdade.
Mas eu gostei de saber dessa proximidade, pq talvez fique mais fácil entender Spinoza me apoiando no Nietzsche. Lógico que estou falando do lado ético.
Agora tem uma coisa. Eu não consigo entender pq o Spinoza não é mais divulgado. O Nietzsche é um dos filósofos mais pops hoje. Se o Spinoza tme algumas semelhanças com o alemão, pq não está no foco?
Gostei de ver a sua 'afinação' com o Guilherme no Spinoza.
Acho que ainda vou descobrir muita coisa sobre o Nietzsche tb.
SDS