Um dos livros que tenho - e mais um que eu não li - é "O ateu virtuoso". Quando o vi na estante da livraria, imaginei que se tratava de um livro sobre Spinoza. Afinal, foi assim que Pierre Bayle definiu o nosso querido filósofo luso-holandês, no seu famoso dicionário.
Retirando o livro da estante, pude perceber que se tratava de um texto sobre Denis Diderot. À época, pela similaridade do apelido, fiquei curioso em relação àquela figura. Comprei o livro e não o abri mais. Nesses tempos de novas investigações, deparo-me com a necessidade de encontrar o tal livro. É nessas horas que não me arrependo de comprar livros que não leio imediatamente.
Mas esse post é para registrar uma coisa diferente envolvendo Diderot.
Há uma frase famosa, normalmente atribuída a este pensador, que é a seguinte: "O homem só será livre quando o último déspota for estrangulado com as tripas do último padre".
A frase é forte. Como temos conhecimento das limitações à liberdade impostas pelo par Monarquia-Igreja, na época em que se desenvolveu o Iluminismo, podemos entender a reação violenta dos protagonistas do Esclarecimento a essa dupla "coercitiva". E, com isso, podemos entender a afirmação do ateu Diderot.
Mas existem algumas dúvidas sobre a frase. A mais comum é se a mesma pertenceria mesmo a Diderot ou a outro expoente do Iluminismo francês, Voltaire. A verdade é que ela também poderia ter saído da pena deste último. É só lembrar que Voltaire, embora crente em Deus (numa perspectiva deísta) atacava a religião enquanto instituição.
Entretanto, há uma segunda possibilidade sobre a autoria da frase. Esta é um pouco mais curiosa. Ela poderia ter sido proferida por um... padre... e poderia ter tido uma outra forma: "Eu gostaria, e este será o último e o mais ardente dos meus desejos, eu gostaria que o último rei fosse estrangulado com as tripas do último padre". Esse "mais ardente desejo" é pior do que uma simples constatação do fato indicado na frase mais conhecida.
Num artigo de Giba Assis Brasil, a estória é contada direitinho. Vejamos:
"Jean Meslier (1664-1729), cura da aldeia de Étrépigny, passou seus últimos anos de vida rezando missas, celebrando batizados e matrimônios, enquanto, à noite, preparava uma tentativa de extrema unção do Estado católico francês: seu livro de memórias, de título quilométrico, geralmente reduzido para 'Memória dos pensamentos e sentimentos do abade Jean Meslier', tratando dos 'erros e abusos dos governos' e principalmente da 'falsidade de todos os deuses e religiões do mundo'. Foi neste livro que nasceu a frase, o 'desejo mais ardente', as tripas de uns no pescoço dos outros.
Publicado postumamente, o livro do 'padre ateu' Meslier tornou-o um dos precursores do Iluminismo. Voltaire, então com 35 anos, foi seu primeiro editor, fazendo circular por toda a França suas ideias subversivas e anticatólicas numa versão reduzida, 'Extrait des sentiments de Jean Meslier'.
Diderot, que na época tinha apenas 14 anos, mais tarde escreveria (em 'Les Éleuthéromanes') um poema em alusão direta à frase mais violenta e mais conhecida do 'pai do ateísmo': 'E suas mãos arrancarão as entranhas do padre / na falta de uma corda para estrangular os reis'. ('Et ses mains ourdiraient les entrailles du prêtre / Au défaut d'un cordon pour étrangler les rois.') Violento sem dúvida, eventualmente visionário, mas sem a menção aos 'últimos' e menos ainda à necessidade de mortes para a redenção dos sobreviventes.
Foi Jean-François de la Harpe, que só iria nascer em 1739, 12 anos após a morte de Meslier, o responsável pela confusão em torno da autoria da frase. La Harpe, um pós-iluminista que, ao contrário de Voltaire e Diderot, viveu para presenciar a Revolução de 1789 e o terror jacobino, tornou-se no final da vida um reacionário defensor da monarquia.
Em seu 'Cours de Littérature Ancienne et Moderne' (1799), La Harpe alterou os versos de Diderot, citando-os assim: 'E com as tripas do último padre / estrangulemos o pescoço do último rei.' ('Et des boyaux du dernier prêtre / Serrons le cou du dernier roi.') Engano histórico? Talvez. Mas não me parece tendencioso ver aí uma deliberada intenção de acusar os iluministas (e por extensão os intelectuais, as idéias) pelos rumos violentos da História.
Seja como for, a frase seguiu seu rumo, às vezes usada para justificar assassinatos, outras para exprimir ódios mortais ou simples revoltas, às vezes apenas para atribuir culpas.
Publicado postumamente, o livro do 'padre ateu' Meslier tornou-o um dos precursores do Iluminismo. Voltaire, então com 35 anos, foi seu primeiro editor, fazendo circular por toda a França suas ideias subversivas e anticatólicas numa versão reduzida, 'Extrait des sentiments de Jean Meslier'.
Diderot, que na época tinha apenas 14 anos, mais tarde escreveria (em 'Les Éleuthéromanes') um poema em alusão direta à frase mais violenta e mais conhecida do 'pai do ateísmo': 'E suas mãos arrancarão as entranhas do padre / na falta de uma corda para estrangular os reis'. ('Et ses mains ourdiraient les entrailles du prêtre / Au défaut d'un cordon pour étrangler les rois.') Violento sem dúvida, eventualmente visionário, mas sem a menção aos 'últimos' e menos ainda à necessidade de mortes para a redenção dos sobreviventes.
Foi Jean-François de la Harpe, que só iria nascer em 1739, 12 anos após a morte de Meslier, o responsável pela confusão em torno da autoria da frase. La Harpe, um pós-iluminista que, ao contrário de Voltaire e Diderot, viveu para presenciar a Revolução de 1789 e o terror jacobino, tornou-se no final da vida um reacionário defensor da monarquia.
Em seu 'Cours de Littérature Ancienne et Moderne' (1799), La Harpe alterou os versos de Diderot, citando-os assim: 'E com as tripas do último padre / estrangulemos o pescoço do último rei.' ('Et des boyaux du dernier prêtre / Serrons le cou du dernier roi.') Engano histórico? Talvez. Mas não me parece tendencioso ver aí uma deliberada intenção de acusar os iluministas (e por extensão os intelectuais, as idéias) pelos rumos violentos da História.
Seja como for, a frase seguiu seu rumo, às vezes usada para justificar assassinatos, outras para exprimir ódios mortais ou simples revoltas, às vezes apenas para atribuir culpas.
O livro de Meslier, que eu saiba, só foi publicado em português em 2003, pela editora Antígona, de Lisboa, com tradução de Luís Leitão. Em 2004, Paulo Jonas de Lima Piva doutorou-se em Filosofia na USP com uma tese sobre 'os manuscritos de um padre anticristão e ateu: materialismo e revolta em Jean Meslier'.
Uma das muitas e criativas pixações de maio de 1968 em Paris propunha uma variação interessente para o desejo de Meslier: 'E depois de estrangular o último burocrata nas tripas do último sociólogo, ainda teremos problemas?'('Lorsque nous aurons étranglé le dernier bureaucrate avec les tripes du dernier sociologue, aurons-nous encore des problèmes?').
Quanto aos iluministas, eu prefiro ficar com outra frase de Voltaire, sem tripas, sem enforcamentos, sem mísseis: 'Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo.' É só estar preparado para ouvir (e ler) muita bobagem".
Uma das muitas e criativas pixações de maio de 1968 em Paris propunha uma variação interessente para o desejo de Meslier: 'E depois de estrangular o último burocrata nas tripas do último sociólogo, ainda teremos problemas?'('Lorsque nous aurons étranglé le dernier bureaucrate avec les tripes du dernier sociologue, aurons-nous encore des problèmes?').
Quanto aos iluministas, eu prefiro ficar com outra frase de Voltaire, sem tripas, sem enforcamentos, sem mísseis: 'Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo.' É só estar preparado para ouvir (e ler) muita bobagem".
Adorei o texto... e aprendi mais essa.
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