Na última sexta-feira, fui a uma festa infantil. Entre algumas brincadeiras, tive a oportunidade de conversar assuntos "sérios" com amigos. Papo vai, papo vem e caímos em Míriam Leitão. Tive que me conformar em ser voto vencido quanto à afirmação de que a achava boa articulista. Outros dois amigos - um deles, meu compadre - mantiveram-se firmes em suas convicções de que ela era uma jornalista volúvel, que defendia suas opiniões ao sabor dos ventos econômicos que soprassem.
Coincidentemente, neste fim de semana, li um artigo da jornalista Míriam Leitão que poderia justificar minha opinião. O assunto, é verdade, não era economia, mas uma reflexão sobre o Rio e seus problemas de segurança.
Gostaria de utilizar apenas um pequeno trecho do artigo intitulado "O destino do Rio", publicado no jornal O Globo.
"A semana passada foi difícil. A derrubada do helicóptero da Polícia Militar pelo tráfico de drogas, a morte do Evandro do AfroReggae e o comportamento criminoso dos policiais militares trouxeram de volta a consciência dos fracassos e os dilemas nacionais em relação à segurança pública.
Conversei com pessoas em pontos diferentes desta questão, e a única conclusão geral é que estamos prisioneiros de várias armadilhas.
A Polícia sente que briga em condições desiguais. Não tem armas, os salários são baixos... Enquanto isso, os traficantes compram armas potentes por telefone... A solução é simples: equipar a Polícia.
A tragédia do AfroReggae lembrou que nada é simples. Que polícia vamos armar? A que deixa agonizandte na calçada um cidadão, rouba o fruto do roubo e libera os assassinos?"
O artigo é bem maior, e traz outros pontos passíveis de serem objeto de reflexão, entretanto, essa parte é suficiente para minha proposta.
O ponto chave da minha discussão gira em torno da afirmação de que "nada é simples". Eu me limitei a citar dois dos aspectos abordados por Míriam - o das armas e o dos salários -, porque esses, que pareceriam saídas simples para o problema, já se transformam em um ponto polêmico se atentarmos para a pergunta feita a seguir pela jornalista: "Que polícia vamos armar?"... e, extrapolando, "Que polícia vamos aumentar?".
A questão das armas envolve não apenas a maior possibilidade de ação da instituição "Polícia" - o que é favorável ao cidadão -, mas também envolve a maior disponibilidade de poder de fogo para ser usada no abuso de poder pelo mau policial - ou seria melhor dizer, pelo "pseudopolicial"? Realmente, este é um dilema.
O segundo aspecto versa sobre "salário". Outro ponto delicado.
Num debate sobre Segurança Pública, ao qual assisti há pouco tempo, um ex-comandante falava sobre o absurdo que é um policial militar ingressar nos quadros percebendo remuneração de pouco mais de oitocentos reais, o que, em certa medida, justificaria os "bicos" como segurança de lojas, por exemplo, com um "salário extra" em torno de mil e quinhentos reais - quase o dobro da remuneração oficial.
Num primeiro momento, pensamos algo como "Ah... mas ele não está prejudicando ninguém... e ainda, de certa forma, está prestando um serviço à comunidade, visto que protege as redondezas do negócio!".
Logo depois, veio um estudioso no assunto e nos fez pensar um pouco mais criticamente. Ele propôs a seguinte pergunta: "Será que se um policial que faz serviço de segurança particular, ganhando seus R$ 1.500,00, se passar a ganhar de soldo R$ 2.000,00, cessará sua atividade 'oficiosa'?". Sua conclusão é de que muito provavelmente, não. O dito policial simplesmente chegará à conclusão de que pode gastar um pouco mais. Isso porque, são difíceis os casos em que policiais se contentam com o soldo. O nosso pesquisador afirmou que já existe uma certa "vocação" institucional para o "bico"... pelo menos no Rio de Janeiro e em algumas outras localidades. Dados foram apresentados sobre Estados em que os policiais percebem remunerações menores que aqui e que não se inclinam a participar de atividades "extras", ainda que "lícitas" - as aspas são por conta de que, em termos legais, o policial tem dedicação exclusiva ao seu trabalho na instituição, não podendo trabalhar externamente ao quadro da Polícia.
Há uma lógica, clara, ainda que moralmente incorreta, de que não basta ter um segurança particular ágil, inteligente, assertivo... melhor é ter alguém que pode desfrutar de uma estrutura oficial, ainda que utilizada de maneira "silenciosa", a favor do contratante particular.
Pior ainda é quando essa "estrutura oficial" não está apenas à disposição do comerciante, mas do infrator. Aí, então, a lógica do aumento de salário vai mais para o "ralo", ainda. Vejamos, o tal policial que tem soldo de oitocentos reais e se farta com cinco mil do seu "contratante infrator", mesmo que passe a ganhar três mil oficiais, não desejará afastar-se da sua maior fonte de renda... ainda mais quando sabe que haverá vários "colegas" dispostos a substituí-lo nesse "emprego".
Prova maior de que a remuneração, como fator único - embora importante-, não pode vincular a atuação do policial à estrita legalidade é a de um administrador do Estado Maior da Polícia Militar, que, mesmo tendo soldo de coronel, responde a processo por deixar de reprimir ilicitudes quando era capitão, comandante no Batalhão de Jacarepaguá.
Pior ainda, parece-me, é o caso do rapaz do AfroReggae, que foi "assaltado" duas vezes, pelos ladrões, que o atingiram mortalmente, levando-lhe os pertences, e por um capitão, que mesmo com remuneração bem maior do que a citada anteriormente, "assaltou" os assaltantes, privando-lhes do fruto do roubo anterior. Ou seja, um capitão - que já não ganha tão mal - furtando um casaco e um par de tênis.
Como disse Miriam Leitão: "Nada é simples".
Há uma lógica, clara, ainda que moralmente incorreta, de que não basta ter um segurança particular ágil, inteligente, assertivo... melhor é ter alguém que pode desfrutar de uma estrutura oficial, ainda que utilizada de maneira "silenciosa", a favor do contratante particular.
Pior ainda é quando essa "estrutura oficial" não está apenas à disposição do comerciante, mas do infrator. Aí, então, a lógica do aumento de salário vai mais para o "ralo", ainda. Vejamos, o tal policial que tem soldo de oitocentos reais e se farta com cinco mil do seu "contratante infrator", mesmo que passe a ganhar três mil oficiais, não desejará afastar-se da sua maior fonte de renda... ainda mais quando sabe que haverá vários "colegas" dispostos a substituí-lo nesse "emprego".
Prova maior de que a remuneração, como fator único - embora importante-, não pode vincular a atuação do policial à estrita legalidade é a de um administrador do Estado Maior da Polícia Militar, que, mesmo tendo soldo de coronel, responde a processo por deixar de reprimir ilicitudes quando era capitão, comandante no Batalhão de Jacarepaguá.
Pior ainda, parece-me, é o caso do rapaz do AfroReggae, que foi "assaltado" duas vezes, pelos ladrões, que o atingiram mortalmente, levando-lhe os pertences, e por um capitão, que mesmo com remuneração bem maior do que a citada anteriormente, "assaltou" os assaltantes, privando-lhes do fruto do roubo anterior. Ou seja, um capitão - que já não ganha tão mal - furtando um casaco e um par de tênis.
Como disse Miriam Leitão: "Nada é simples".
3 comentários:
Não entendi, Ricardo, você não concluiu, não mostrou, no final das contas, o que pensa dos assuntos tratados ou da sua avaliação final sobre a própria Leitão. A minha conclusão seria, para começar: a “segurança pública” virou simplesmente uma brincadeira de “gato e rato”, o que, para mim, se não se atentar para outras questões - como as causas mais profundas e estruturais que envolvem os ambientes político, social, econômico e até ético - será sempre o que está sendo hoje: “enxugar gelo” (com ou sem policiais corruptos), pois prender alguns criminosos não implica que não haverá mais crimes (sendo, ilusoriamente, uma vontade da classe média e da própria Leitão que isso se dê, e se dê, na verdade, de forma absolutamente “mágica”, por simples “vontade política”) ou mesmo que a criminalidade caia. Não há Scotland Yard ou instituição policial qualquer que resolva, por si mesma, o problema da “segurança”. Para variar, o ambiente privado acaba cada vez ganhando mais espaço e força com essa situação (afinal, essa coisa de “bico” na área de segurança privada está crescendo assustadoramente), algo semelhante com o que observamos com o “mercadização” da saúde, da educação, dos transportes e até da cultura. Um problema seríssimo, e que, novamente, a Leitão não vislumbra. Outra coisa: bom salário não é garantia de profissionais não corruptos - vide o caso de juízes, políticos e fiscais -, mas de qualquer forma ajuda(assim como a melhoria da qualidade de vida e do ambiente de trabalho do policial), afinal, a falta de grana para suprir as necessidades mais básicas da família já não serviria mais como uma razão para procurar o crime ou os “bicos”. O salário é um simples fator, no meio de diversos, e, novamente, são fatores bem mais profundos. Além disso, salário e condições dignas, em si mesmos, precisam ser direitos inalienáveis para qualquer ser humano, o que, novamente, não é vislumbrado pela Leitão. E terceiro, que a opinião da Leitão em si não me parece ser o problema, afinal sua opinião é tão boa ou tão ruim quanto qualquer outro economista que os principais jornais e emissoras TV gostam de dar mais espaço.
Caro amigo Existenz:
Dividirei meu comentário em dois.
Primeiro assunto: Miriam Leitão.
Acho, sim, que registrei minha opinião sobre ela, logo no início. Gosto do trabalho dela como articulista. Lembro que o articulista disponibiliza um assunto, normalmente complexo, ao público em geral. Lembro mais, Míriam não é economista. Seu trabalho, como articulista, então, é bom, na minha humilde opinião. Infelizmente, perde-se profundidade para "popularizar" um assunto técnico. Vemos isso, inclusive, na Filosofia, onde há vários autores acusados de "banalização", por conta dessa intenção de divulgação maior do pensar mais crítico. Inclusive, André Comte-Sponville sofre essa acusação, sob meu ponto de vista, absolutamente injusta. Mas, são universos diferentes, até porque ele é filósofo, e dos melhores.
Mas, voltando...
Não vou entrar no mérito de opiniões erradas que ela possa vir a externar, pois essas seriam inescusáveis - mesmo que eu a admirasse muito. Por outro lado, gostaria que percebesse que muitos economistas - e falo daqueles com doutoramento em Harvard, etc., por exemplo - não conseguem capturar "exatamente" o dinamismo do devir econômico.
Concluo dizendo, então, sobre a Míriam, que aprecio o seu trabalho, não só "técnico", mas também quando externa sua afetividade, opinando sobre assuntos difíceis, como já postei aqui antes, sobre a violência contra a mulher, e agora, quando ao problema da segurança pública.
Como você bem disse, a coluna deixou de avaliar diversos outros tópicos pertinentes à questão, e eu mesmo fiz uma glosa na matéria. E, ainda como você bem percebeu, ela é tão boa ou tão ruim quanto outros que tem "voz" na Imprensa. Aliás, certamente, haverá os que fariam melhor do que muitos colunistas fixos. Diversas vezes, por exemplo, vi colunas escritas por pessoas que não escrevem nos jornais rotineiramente e que eram aulas sobre vários assuntos. Pena que eles não tenham esse veículo de forma quotidiana.
Mas voltando...
Antes a Míriam, do que um Franklin Martins, por exemplo, que negociou suas convicções, ganhando um bom cargo público em troca.
Mas, certamente, antes um Villas Boas Côrrea que uma Míriam. Não só pelas posturas políticas, como pela profundidade das análises, quanto pela maior vivência histórica do país.
Por enquanto, é isso.
O outro comentário, especificamente sobre a segurança pública no Rio, fica para depois.
Sábias palavras, como sempre. Concordo contigo, portanto.
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