Outro rótulo com o qual não concordo - e meu amigo Existenz discutiu muito comigo sobre ele - é o de "idealismo", para a filosofia de Kant. Em que pese a tradição dizer que o idealismo alemão começa com Kant, acho que o "Criticismo" kantiano tem uma amplitude filosófica muito maior do que o limitado rótulo que lhe querem imputar, mesmo que se observe apenas a "Crítica da Razão Pura".
Entretanto, ao contrário de Spinoza, que tive que defender do rótulo limitante apenas contando com comentadores simpáticos à minha ideia, Kant falou por si mesmo.
Nos "Prolegômenos" (parágrafo 13, observação 2), ele diz: "O idealismo consiste apenas na afirmação de que não existe outro ser senão o pensante; as demais coisas, que acreditamos perceber na intuição, seriam apenas representações nos seres pensantes, às quais não corresponderia, de fato, nenhum objeto fora deles. Eu afirmo, ao contrário: são-nos dadas coisas como objetos de nossos sentidos, existentes fora de nós, só que nada sabemos do que eles possam ser em si mesmos, mas conhecemos apenas seus fenômenos, isto é, as representações que produzem em nós ao afetarem nossos sentidos".
Viu, Existenz? Não sou eu que estou dizendo, não! Quem se defende do incômodo rótulo de "idealista" é o próprio Kant!
A verdade é que nós, leitores posteriores, acabamos por ler o pensador segundo uma perspectiva dos seus seguidores mais próximos. Após Kant, vieram os pós-kantianos... idealistas. Realmente, uma interpretação de Kant pode assumir um viés mais idealista, mas não me parece que essa fosse a intenção do próprio filósofo.
Aliás, eu mesmo tenho que me desculpar com Existenz, pois sempre tendo a falar sobre Merleau-Ponty perspectivando-o a partir do Husserl, pelo (reducionista) rótulo, que serve a ambos, de fenomenólogos. Com isso, acabo interpretando o francês sob uma óptica idealista, também.
Parece que, como os "símbolos", os "rótulos" são maus necessários: ao mesmo tempo que nos permitem um acesso rápido, identificando um cenário circunstancial que nos indica prontamente o que se pretende dizer, falham ao deixar de lado todas as matizes e detalhes que envolvem aquela mesma "mensagem".
8 comentários:
É, com certeza, esse é um assunto do qual já debatemos bastante. Não é a toa que também é um dos mais polêmicos de todos da história dos nossos debates. Não discordo completamente da sua tese: para mim, rótulos são bastante problemáticos. Eles são, geralmente, bastante limitados para caracterizar de uma só vez toda a complexidade do pensamento de um grande autor, sendo que, muitas vezes, até obscurecem certas facetas desse pensamento. Por isso acho admirável seu esforço em mostrar que Kant não cai perfeitamente no rótulo de idealista. No entanto, o rótulo de Kant se mantém firme até hoje não é por acaso. É claro que Kant não pode ser considerado um idealista absoluto como Berkeley, ele mesmo em várias ocasiões critica veementemente o idealismo nesse sentido, mas, também não se pode esquecer que ele fala seguir um "idealismo transcendental" (o que não muda nada o fato de ele também ser um "realista empírico", afinal, o fato dele aderir a um “idealismo transcendental” pressupõe que ele possui divergências com o chamado “idealismo empírico”). E, voltando também à questão de se ligar fenomenologia ao idealismo: como já falei antes, essa aproximação com o idealismo feita por Husserl veio depois (só veio, portanto, no ‘Ideas’, e não nas ‘Investigações Lógicas’). E já citei, também, que essa tendência não foi seguida pelos seus discípulos, o que inclui Merleau-Ponty. Porém, isso não muda o fato de que Merleau-Ponty também era fenomenólogo, e daqueles que pretendia ser bastante fiel ao pensamento de Husserl (o “último” Husserl, na verdade, o que não significa que era o mesmo Husserl do ‘Ideen’ e do ‘Meditações Cartesianas’), e, ao mesmo tempo, não ser idealista.
Só gostaria de esclarecer que esse meu último comentário sobre Husserl e Merleau-Ponty foi mais para complementar o que você disse do que para criticá-lo. Minha intenção foi desembaraçar a relação um pouco intricada entre fenomenologia x idealismo, que, como eu expus, só existe de fato em uma fase da vida de Husserl. Um abraço!
Caro amigo Existenz:
A primeira coisa que me deixa feliz é ler algo como "história dos nossos debates". Isso representa que eu tenho a felicidade de contar com um interlocutor "afiado" nas observações, capaz de argumentações inteligentes, mas, acima de tudo, com uma continuidade temporal, além da própria presença física - afinal, já não nos encontramos há muito.
Aliás, tenho que confessar que não vi que havia enviado a resposta à minha carta. O motivo é que tenho aberto pouco meu e-mail. Justamente pelo motivo de estar mais presente no blog do que na caixa postal. Mas analisarei seus pontos de vista, para ver se consigo "me defender" deles. Rsss.
Voltando ao ponto central do post, rótulos limitam muito o que pretendemos entender de um pensador, apesar de serem um mal necessário.
Continuaremos divergindo sobre o "idealismo" "em si" (não me xingue, por favor!), conforme o entende Kant, e um "idealismo transcendental". Neste último, o "sujeito estruturante" é realmente anterior à experiência, mas não à realidade. E essa seria a minha grande ênfase no pensamento de Kant: a diferença entre experiência - com suas relações causais - e a realidade - como base dos fenômenos.
Já em relação a Husserl e Ponty, eu, de antemão, reconheci uma certa "rotularização" minha. É certo que reajo contra isso. E é por isso mesmo que peço sempre o seu auxílio, a fim de penetrar o pensamento de Ponty.
Com sua ajuda e um certo estudo - que ainda não realizei de modo adequado - chegarei a uma visão mais correta de Ponty.
Obrigado pela participação constante, sempre agregando valor ao blog.
Em breve, registrarei minhas opiniões sobre a sua carta.
Você se importaria de tornar nossa correspondência pública - através do blog... pelo menos dessas últimas cartas?
Ricardo, não vejo problema nenhum em divulgar o conteúdo de nossas conversas, inclusive os mais antigos (apesar do que, quanto mais distante, mais chance haverá de ambos já pensarmos de forma diferente hoje, mas isso também não é problema). A respeito do que falou de Kant, não discordo da sua idéia de que 'o "sujeito estruturante" é realmente anterior à experiência, mas não à realidade'. Afinal, não entrando no mérito se isso é "idealismo" ou não, Kant coloca que os objetos da nossa representação precisam ter um correlato "em si", ou seja, o mundo em si mesmo existe de fato e é a partir dele que trabalha nossa sensibilidade, mesmo que esta venha "arrumar" esse mundo utilizando-se os conceitos de espaço e tempo, que não são imanentes a este mundo em si (o que daria, justamente, a nossa experiência perceptiva o aspecto de representações). Concordo que Kant pense assim, mas, da minha parte, não concordo que as coisas sejam assim. Um abraço.
Caro Existenz:
De início, quero dizer que só ontem achei a sua resposta à Carta 23. Portanto, ainda não consegui me divertir com a leitura. Mas prometo fazê-lo logo.
Sobre a publicidade das cartas, acho que essas últimas podem ser melhores. Ainda que se perca a gênese das argumentações, penso que ganharemos na abordagem mais direta. Tentarei fazê-lo em breve.
Falando do seu último comentário. Gostei muito do ponto em que você disse "não entrando no mérito se isso é idealismo ou não". Afinal, como "os racionalismos", encontraremos diversas definições e nuances para "o idealismo".
Penso, entretanto, que ao definir o que ele entende por idealismo, Kant consegue se afastar claramente daquele tipo indicado. É bem verdade que pode ser capturado por outros tipos. Mas o que me parece mais importante, e que, em certa medida, você concordou é na "realidade preexistente" ao "sujeito estruturante" - que não tem muito de metafísico, a não ser que queiramos; afinal, ele pode ser só uma característica da "natureza humana", como haverá outros "sujeitos estruturantes" para outros tipos de organismos. Essa "realidade preexistente" é menos um "outro mundo", e muito mais este mundo em que somos lançados e ao qual damos sentido através TAMBÉM - mas não somente - do tal sujeito estruturante. Veja que, ao colocar o "também, mas não somente", abro espaço para outros tipos de experiência que não a meramente cognoscitiva.
Grande abraço.
Interessante você dizer que há "outros tipos de experiência que não a cognoscitiva" ou as do "sujeito estruturante". Agora fiquei curioso, afinal não me lembro de você ter feito uma alusão anterior sobre isso nas suas cartas, ou seja, de ter falado quais seriam essas experiências. Fiquei com outra dúvida em relação ao que você falou sobre algo "ter muito de metafísico" ou não: assim, na sua concepção, em que ambiente se poderia "ter muito de metafísico"? Eu, particularmente não discordo plenamente do que você colocou, apesar de ter as minhas ressalvas. Resumindo bastante, seria dizer que definir toda uma realidade anterior e opaca em relação à experiência é uma tese problemática, como também seria o fato de também se definir que não há nada fora do terreno da experiência, ambos são, portanto, problemas irmãos. Outra coisa seria que, para mim, o "estruturante" não concerne somente ao sujeito, mas à relação entre o sujeito e o mundo. Mas, de qualquer forma, aqui não há espaço para debates mais profundos, meu objetivo de abrir essas questões seria mais para você usar de "matéria-prima" em alguns de seus artigos futuros no blog, ou para que você responda, com calma, em alguma carta futura. Um abraço.
Só abrindo um parêntesis: reafirmando que essa "realidade anterior à experiência" que afirmei como problemática é aquela de que fala Kant, de um "em si" que influenciaria nossa sensibilidade, mas que, em nós, estaria de certa forma modificada segundo "intuições puras" a priori de espaço e tempo.
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