Ao final da leitura de "Simples filosofia - a história da filosofia em 47 crônicas de jornal", de Pablo Capistrano, continuei com a impressão inicial de que a parte do título que se refere à História da Filosofia em poucas 47 crônicas seria um projeto ambicioso demais. Entretanto, se Capistrano não alcança o objetivo de contar a "História da Filosofia", consegue, sim, contar boas "estórias da Filosofia".
E, com essas estórias, o autor obtém um ótimo resultado.
Algumas informações, ainda que não tão importantes do ponto de vista estritamente filosófico, chamam atenção daqueles que se interessam por mais um pouco de conhecimento. Por exemplo, lembrar que a "República", de Platão, não poderia se chamar "Res publica", do latim, mas que tinha como título "Orthé Politeia", que em grego significa algo como "Governo Correto". Outra, sobre os oooooonze filhos de Hegel!!! Sinceramente, eu nunca tinha lido isso. Prometo acionar minha "rede de informantes" a fim de descobrir a veracidade dessa informação. Mas, em sendo verdade, o homem fazia mais coisas bem do que meramente filosofar, hein!
Outras são filosoficamente bastante interessantes, como, por exemplo, a seguinte: "Quando Sartre dizia coisas como: 'O homem é um ser condenado à liberdade' ou 'A existência precede à essência', ele estava usando a ideia de Pico della Mirandola de que o homem é um ser 'ontologicamente indefinido' e dizendo que isso era uma ideia de Heidegger... Pico, no século XV, retomando uma tradição judaica, dizia que o homem havia sido criado na sexta-feira, no fim da tarde, na hora do acendimento das velas do Sabat... Na interpretação de Pico, Deus já havia encerrado o expediente de trabalho... tudo já estava concluído... Mas Deus percebeu... que faltava um ser que pudesse contemplar e admirar a Sua obra. Entretanto, como tudo estava pronto e a natureza já estava completa, Ele não tinha onde pôr essa criatura. Não havia mais 'espaço ontológico' no mundo... Então, Deus usou uma estratégia: jogar o homem no mundo. Lançá-lo na criação sem um lugar fixo... Deixar que ele fosse livre para escolher ser o que quisesse... O homem não tinha natureza fixa... Essa é a natureza do grande assombro... que o bicho-homem traz consigo. A potencialidade de ser sublime ou miseravelmente hediondo".
Sobre Kant - sempre tratado na História ortodoxa da Filosofia como um exemplo de "racionalista"... embora tenha que se saber que tipo deles, como já falei em um post anterior -, Pablo diz "Kant foi um ... desconstrutor da velha arrogância humana que acreditava poder compreender tudo, ... atingir o âmago do mundo e absorver toda a verdade sobre os mistérios da natureza". E "ataca", ainda usando Kant para sua análise, a sociedade de consumo, dizendo "O objetivo principal de uma sociedade massificada de consumo desenfreado como a nossa é fazer com que você fique doido e consuma... A razão não dá lucro, porque a razão, no entender de Kant, nos liberta. Somos livres na medida em que compreendemos. Conseguimos nos afastar das sombras da ignorância e da superstição quando cultivamos a habilidade crítica de submeter nossos dogmas a uma reflexão sistemática... Mudamos nossos valores quando entendemos que eles são a consequência de imposições externas que não dizem respeito à nossa vontade. A minha liberdade depende disso e a minha humanidade depende dessa liberdade. Sou menos humano quando me transformo numa máquina de consumir porcarias e banalidades. Sou menos humano quando me emburreço diante de uma vitrine virtual de valores e ideias que eu não escolhi para mim".
Por último, uma ótima reflexão sobre o amor... e sua oposição à paixão - neste caso, tida como aquela "explosão" que caracteriza os primeiros encontros dos amantes. Pablo Capistrano escreve: "A paixão não é uma boa medida para o amor. Transformar a intensidade autodestrutiva da paixão numa base sólida para uma vida construída a dois é uma arte que poucos dominam com maestria e que anda esquecida esses dias... Saber transformar a paixão em amor é a chave da arte da convivência. O segredo dessa arte é nunca esquecer que os opostos sempre se distraem, e que apenas os dispostos verdadeiramente se atraem".
Boa essa, Capistrano!
5 comentários:
Discordo da idéia de que consumirmos porque ficamos loucos...
Eu, mesmo compreendendo toda a mecânica capitalista, não deixo de ter vontade de consumir minha cerveja engarrafada, minha porção de salaminho industrializado, sentando em uma cadeira de plástico produzida em grande escala enquanto converso sobre filosofia... Nada disso me é necessário, mas tudo isso me é muito agradável.
O consumismo ao meu ver não existe porque é imposto ou incutido em nossa cabeça pela propaganda e sim porque ele é confortável. Imagine ter que plantar a própria comida, fazer as próprias roupas, andar a cavalo e tomar banho frio, etc...
Mas do post em si, eu gostei bastante... :)
Guilherme:
Eu acho que se estabeleceu uma certa confusão em relação ao conceito de "consumismo".
A utilização de bens de consumo é absolutamente indispensável para um "ser urbano". Não temos possibilidades, a não ser nos valendo de um esforço que beira a "esquisitice", de produzir nossas próprias roupas, alimentos, utensílios, etc. Neste caso, então, a aquisição e uso desses bens passaria quase pelo "natural e necessário" de Epicuro.
Dispor, além desse básico, de um certo "conforto", e dar-se o direito de alguns "mimos"... "além do necessário", também acho que faz parte do jogo capitalista. Afinal, o "excesso" de recursos obtidos pode ser poupado ou consumido.
Agora, bem diferente de "desejar consumir algo" é "desejar o consumir". Quando se muda o foco da "cerveja com salaminho" - que eu adoro, também - para o "consumir em si" é que me parece se tratar do "consumismo".
Conheço, por exemplo, pessoas que pouco usam seus computadores - e quando o fazem, fazem-no mal -, mas que estão preocupadíssimos em trocar suas máquinas, porque a memória, o HD, a versão do Windows, etc. e tal estão "ultrapassados". Ultrapassados? Para que tipo de uso?
Mas o pior é quando essas pessoas que mal usam os recursos de equipamentos que já têm, ainda se "encalacram" em dívidas para comprar algo de que não precisariam efetivamente.
Aí é que me parece surgir o conceito do que eu chamei de "consumismo".
Então mas acho impossível definir o que é necessário e o que não é necessário para outras pessoas. Ex.: A cerveja em um momento de lazer eu considero como necessária. Entretanto uma outra pessoa pode considerar isso superfluo, um luxo desnecessário ou até um vício que deve ser evitado. Da mesma forma que eu posso considerar desnecessário a pessoa viajar de férias ou uma mulher fazer as unhas. Só que essa mulher pode preferir fazer as unhas a tomar cerveja e considerar então a minha cerveja como consumismo.
Somente cada pessoa pode julgar o que é necessário para si e em que gastar o resultado do suor do seu trabalho. E quando a pessoa faz um julgamento errado e desperdiça seus recursos, ela já é punida o suficiente com a perda do dinheiro gasto em uma bobagem.
Amigo Guilherme:
Acho que uma das principais falácias usadas pelos "marketeiros" é justamente essa ideia que tu estás defendendo sobre a "necessidade".
Veja que eu lembrei Epicuro e falei dos bens "naturais e necessários"; não apenas de "necessidades".
A falácia a que me refiro diz respeito justamente a criar no indivíduo a ideia de que ele não vive sem determinada coisa, enquanto o "necessário" de Epicuro se resolve de modo bem mais simples: basta generalizar o objeto, ou seja, descaracterizá-lo de seus traços específicos e verificar se esse "genérico" ainda faz falta.
Vamos aos exemplos:
Eu preciso de meios de transporte - em termos genéricos. Mas não preciso de uma Mercedes Benz na garagem - muito menos de uma Mercedes 0 km, com uma Ferrari e uma Lotus.
Tu até poderias argumentar que, por vezes, a pessoa usa um carro para carregar coisas da sua atividade profissional e necessista de outro de passeio, para transportar a família. Mesmo assim, muito provavelmente, ele não precisa de um Land Rover estendido, de um superesportivo para andar sozinho e de uma Pajero para passear com a família.
Até mesmo a nossa cerveja e salaminho, a bem da verdade, não são necessidades, são superfluos... apesar de serem "bons companheiros" numa mesinha de bar.
Mas eu avançaria um pouco mais nesta discussão.
Além de pensarmos no "excesso" de consumo desnecessário, em termos pessoais, será que também não há um viés ambiental que poderia ser objeto de reflexão, também?
Mas tracemos um exemplo ainda mais espartano sobre a necessidade. O homem como animal necessita apenas de água, algumas centenas de calorias diárias e alguns sais minerais e vitaminas. Assim, um prisioneiro em uma solitária, com alimentação adequada, estaria com todas as suas necessidades mais básicas satisfeitas.
Mas se estendermos a noção de necessidade para incluir luz solar, alguma atividade física e sexo, ainda tudo isso cabe em uma cadeia.
Se formos um pouco mais longe, e incluirmos a liberdade, teremos a condição de vida de uma pessoa classe C ou D do mundo capitalista atual.
Na sequência, podemos ir incluindo os confortos da vida moderna na nossa idéia de necessidade até chegarmos no modo de vida da classe A.
Vamos pegar o seu exemplo sobre meios de transporte:
-Andar a pé
--Transporte coletivo
---Transporte pessoal
----Um helicóptero
Hoje em dia praticamente todo mundo vai considerar que ter um helicóptero não é necessidade, da mesma forma que em 1920, as pessoas diriam que ter um carro também não era e creio eu que em algum ponto do passado o próprio meio de transporte coletivo foi considerado superfluo.
Assim, no meu ponto de vista, a única definição segura de necessidade é a fisiológica (ar, água e comida). Tudo o que passa disso já tem algum grau de conforto.
Então, quem vai passar a régua e dizer até que ponto de conforto consideraremos necessidade e a partir de que ponto as coisas serão consideradas superfluas? E essa pessoa fará isso baseada em que além da própria opinião?
Sobre o meio ambiente, é um outro tópico. Mas para mim é muito mais uma questão de necessidade de avanço científico (capturar carbono em massa, captar energia solar em massa, dessalinizar a água do mar em massa, arrumar um material que substitua a madeira, etc.) do que de economizar coisas.
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