A última edição de "Filosofia - Conhecimento Prático" trouxe uma entrevista com o filósofo Mário Sérgio Cortella muito boa. Aliás, eu acompanho a revista desde que ela tinha outro nome e esse me parece ter sido um dos melhores números já publicados, no que se refere ao conteúdo.
Acho, inclusive, que alguns dos assuntos abordados podem servir ao nosso blog, tanto no que concerne à abertura de novos debates quanto à retomada de outros.
Por enquanto, gostaria apenas de abordar a entrevista de Cortella, feita por Sheyla Pereira.
A abertura da entrevista utiliza uma citação emblemática de nosso grande educador, Paulo Freire, que foi, aliás, orientador do mestrado de Mário Sérgio Cortella. Freire disse: "A educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda". Essa é para guardar na memória!
As perguntas e respostas da entrevista são muito boas, abordando diversos temas interessantes. Entretanto, eu gostaria de limitar o post à análise de umas poucas questões, como faço a seguir.
Primeiramente, um registro sobre a "divisão de tarefas", entre escola e pais, na educação das crianças. Cortella diz: "Outro dia, um pai de aluno me perguntou: 'Qual o senhor acha que deve ser o papel da família para colaborar com a educação dos nossos filhos na escola?'. Eu disse a ele, com todo o respeito, que havia um equívoco na formulação da questão, porque não cabe à família colaborar com a escola na educação, mas exatamente o contrário, é a escola que colabora; a família é responsável".
Realmente, essa inversão salta aos olhos. Os pais não querem mais "educar" os filhos - o que inclui, muitas vezes, entrar em conflito... um conflito necessário, para impor limites -, restringindo-se a "assistir" às tentativas da escola de fazê-lo. É certo que a escola também tem a missão de colaborar nesse trabalho, mas não deveria precisar ser o ator principal.
Num outro momento, a revista comenta a falta de ética tão presente na mídia e pergunta ao professor Cortella: "Como é possível ensinar o que é ética no mundo-cão que vivemos hoje?". O entrevistado responde: "A primeira coisa é recusar o mundo-cão. Recusar não significa não estar nele, mas recusar os valores que ele coloca. A família é essencial nessa postura e, de forma sequencial, a escola, a mídia e a igreja. Essas quatro instituições sociais têm uma presença enorme na vida das pessoas e também a tarefa de formção de valores que não se subordinem à ética da patifaria e da malandragem. Por outro lado, ética não é uma questão de princípios falados, e sim de natureza exemplar... Ética não pode ser uma coisa de fachada, seja na família, mídia ou escola. Nós temos partes podres na nossa vida social, mas elas ainda são minoritárias, mesmo tendo um grande impacto. Há milhares e milhares de homens e mulheres que são decentes e não podem ser reféns daqueles que não o são".
Lucidez total do professor Mário Sérgio quando nos indica que, ainda que estejamos no mundo-cão, precisamos nos recusar a aceitar os valores deste. Ou seja, mesmo que estejamos "lançados" no mundo-cão, que nos "engajemos" em outro tipo de "projeto" - heideggerianamente falando.
A mesma clareza de pensamento permeia a opinião de que o ensino da ética tem que ser feito por exemplos vividos e não pelo mero discurso, bem como a participação necessária das diversas entidades sociais no destaque aos valores adequados à boa convivência.
Infelizmente - infelizmente mesmo, porque eu gostaria muito de participar da certeza de Cortella quanto a isso -, não consigo ter o mesmo otimismo do nosso professor-filósofo quanto às "partes podres na nossa vida social". Ainda que "minoritárias", acho que o "grande impacto" que elas têm, garante a falta de qualidade ética do todo. Isso me lembra a estória do pequeno passarinho que tenta apagar o incêndio na floresta com a água que recolhe do lago em seu bico. Perguntado se ele não percebe que sua colaboração é "nada", ele diz "Pelo menos, estou fazendo a minha parte!". A moral da estória é bela. Poderíamos extrapolar um pouco e pensar em mil pássaros fazendo o mesmo - tentando salvar a ética no nosso país do incêndio dos diversos comportamentos "corruptos" -, mas um único ser sem escrúpulos, armado de um lança chamas, já seria suficiente para garantir a maior eficácia do comportamento que desdenha dos "melhores" valores em nossa sociedade. E acho que é essa a situação que vivemos: embora minoritária, em números - e nem disso eu tenho certeza -, a parte sem ética está conseguindo conduzir a nossa vida social.
Mário Sérgio apresenta a sua saída para a situação caótica em que estamos, onde se chega a presenciar situações de insubordinação dentro das salas de aula, até com agressões aos professores, dizendo: "Só há uma solução para o problema: o enfrentamento da situação por interméido de um mutirão de responsabilidade, que deve envolver a família, a escola, a igreja e a justiça".
Novamente, espero que o professor esteja certo quanto à existência de tempo para uma saída. Se há, realmente, terá que envolver um "mutirão de responsabilidade". Mas fico pensando quantos desses atores sociais - família, escola, igreja e Justiça - já não estão tão contaminados pela falta de ética e, portanto, tão fragilizados em si mesmos, que lhes seja difícil fazerem o papel de pontos de apoio para alavancar "saídas" para a sociedade em geral.
Por último, uma questão sempre polêmica. E, por isso mesmo, gosto de recolher informações de diversos pensadores honestos e capazes sobre a questão: as quotas para negros.
O nosso educador diz: "Eu sou absolutamente favorável à cota para afrodescendentes como medida emergencial e urgente, mas ela tem que ser provisória, até que se consiga dar uma equanimidade às oportunidades em um país que apenas há 121 anos fez a abolição formal da escravatura e que até hoje entende o negro como um serviçal, com ocupações de natureza inferior. Desse ponto de vista, a cota para afrodescendentes é mais ou menos como uma UTI em um hospital. Ninguém, em nome da igualdade, diz que se deve extinguir as UTIs nos hospitais. Ela existe para quem está em situação mais precária e a precariedade maior no Brasil é para os pobres e quase a totalidade da população pobre é negra. É preciso lidar com os fatos.... Quais são os contras das cotas? Se elas se tornarem uma política permantente, porque, neste caso, ela deixa de ser uma atenção especial para se tornar um privilégio".
Eu sou a favor das quotas... mas não das mesmas que o professor Cortella. Aliás, em determinado momento, parece que seu discurso toma um rumo diferente do inicialmente proposto. Vejamos. Ele desenvolve sua opinião partindo da necessidade das quotas para afrodescendentes, mas "desemboca" na defesa das quotas "para quem está em situação mais precária". E, de modo muito perspicaz, diz: "... e a precariedade maior no Brasil é para os pobres". Depois conclui: "... e quase a totalidade da população pobre é negra". Esse último passo é desnecessário, a meu ver. Se ele já indicou que é necessário oferecer uma "compensação" a quem está em pior situação, e que estes são representados pelos "pobres" - o que poderia nos dar um certo trabalho na conceituação, mas vá lá... -, não há que se adentrar no terreno "racial". O "sujeito" da compensação já foi estabelecido: as "classes economicamente desprestigiadas".
Com essas quotas, eu concordo. Acho que um aluno de escola pública - que vive não tendo aula, por não haver professores, por haver tiroteios próximo à escola, etc. -, vindos de famílias com poucos recursos financeiros - que não dispõem de tempo para estudar adequadamente, que têm que se submeter a situações de pouco estímulo cultural... ou de estímulos de "baixo nível", quando os têm -, são os alvos claros dessa necessidade de compensação, sejam eles "germanodescendentes" ou afrodescendentes.
Mas vale registrar que foi uma ótima entrevista e que, mesmo nesse último aspecto abordado, a comparação das quotas com as UTIs dos hospitais foi muito interessante.
2 comentários:
Que coincidência, eu comprei essa revista ontem também! Você, de fato, conseguiu tirar os melhores momentos da entrevista de Cortella e mostrá-los de forma bastante didática. Eu concordo em relação ao otimismo dele. Mas, para mim, o excesso de otimismo do Corella se coloca por 3 motivos: 1) Para mim, não haveria uma ética única, ou uma ética “certa” e objetiva, que, se resumiria na sua adoção ou não, e poderia criar uma situação do qual cada um poderia concordar com a maior parte dos juízos morais dos demais. Isso pode ficar razoavelmente visível na questão, colocada pelo próprio Cortella, das diferenças de abordagens em relação ao aborto nas diferentes religiões e, inclusive, dentro da mesma religião. (No entanto, isso também não é o mesmo que achar que qualquer ética é tão boa ou tão ruim como qualquer outra) 2) A formulação pessoal de uma ética, assim como os juízos morais pontuais que criamos nas situações concretas envolvem, mais do que qualquer coisa, as nossas visões de mundo, a forma como lidamos com nossas emoções, nossas expectativas e frustrações em relação a nós próprios. E tal conhecimento “de si”, na sociedade atual, é absolutamente nulo, com exceções daqueles que julgamos ser os “profissionais” que tiveram um estudo formal que legitime a busca por esse entendimento. 3) A ética mais comum que existe na sociedade hoje é a ética do “todo mundo”, que se baseia em fazer simplesmente com que a representação que o indivíduo possui de “todo mundo” seja mais importante do que ação com fins morais do indivíduo particular, o que cria uma enorme barreira para que se pense numa ética “de verdade”, afinal, se “todo mundo faz não sou eu que vou deixar de fazer”...
Amigo Existenz:
Também concordo que não há uma "ética única". Aliás, se formos nos ater à própria origem da palavra - que seria algo como "comportamento" -, bastaria olhar o mundo para percebermos que existem diferentes "comportamentos" tido como válidos, de acordo com o momento histórico e geográfico.
Mesmo ignorando a origem da palavra e a simples observação histórica dos fatos, concordo plenamente que não há uma ética "absoluta". Aliás, não imagino como se possa pensar de modo diferente, já que a ética é uma construção dos homens, e, portanto, sujeita ao movimento histórico de todas as criações humanas.
Em relação aos seus outros dois pontos de vista, só posso concordar com eles. A ética vigente é como aquele comportamento "impessoal" do "Das Mann" heideggeriano... "ética do todo mundo", como você bem disse.
Essa ética - como qualquer tipo de comportamento conduzida por ações "impessoalizadas" - totalmente "acrítica", parece-me, interessa àqueles que "conduzem" o povo como um rebanho.
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