Há alguns posts, pensava sobre o "rótulo" de "racionalista" para Spinoza - rótulo de que não gosto muito, como meus amigos sabem. Aliás, os "rótulos", de maneira geral, são reducionistas demais.
Então, pensando sobre os racionalismos...
Nosso amigo André Comte-Sponville nos diz que há dois sentidos para o termo. O primeiro, mais lato, diz respeito ao entendimento que o real é racional, e que o irracional não existe - aqui, lembramos obviamente de Hegel, com sua afirmação de que "O real é racional...". Neste sentido, o "racionalismo" se opõe ao "irracionalismo", ao obscurantismo e à superstição.
Nesse aspecto, não há como negar que Spinoza é um racionalista. Afinal, um de seus principais embates era contra a superstição.
Mas o que impõe a Spinoza o rótulo de "racionalista", pelo menos historicamente, tem mais a ver com a doutrina oposta ao Empirismo. Nesse sentido, o termo se refere a "uma doutrina para qual a razão é independente da experiência (porque seria inata ou a priori)", ainda segundo Spoville.
Sob este ponto de vista, acho que o rótulo já não lhe cai muito bem, visto que Spinoza não faz propaganda de nenhum inatismo.
Há, entretanto, mais algumas perspectivas sobre o "Racionalismo".
Roland Corbisier - que me parece um pouco menos "considerado" do que deveria - fala sobre três tipos de racionalismos: um racionalismo psicológico (ou intelectualismo); um racionalismo epistemológico/gnoseológico e um racionalismo ontológico/metafísico.
O primeiro tipo, postulando a divisão da alma humana em Vontade, Sensibilidade e Razão, propõe uma posição hierárquica superior da Razão, em relação às outras faculdades. Especificamente quanto a este tipo de Racionalismo, não acho que ele corresponda ao pensamento spinozano. A Vontade - que, para nosso filósofo, não era livre -, se considerada "impulsionada" pelo desejo, não fica em posição "menor" do que a razão, para Spinoza. E mais, tanto o filósofo não vê superioridade da razão, que não soluciona o dilema da felicidade como possível suspensão do desejo através da ação da razão.
O segundo tipo propõe que apenas a razão é a ferramenta adequada para conhecer a realidade. Quanto a este tipo, parece que Spinoza também não mereceria o tal rótulo. Afinal, o próprio filósofo coloca a Razão - como mecanismo de identificação de um "regramento geral" da realidade - apenas como modo secundário de conhecimento. A superior, como sabemos, era a "intuição".
O terceiro tipo propõe que a razão é a essência da realidade, tanto natural quanto histórica. Sob este ponto de vista, a estrutura do pensamento é determinado pela estrutura da realidade. E, à razão humana, é admitida a apreensão da realidade e a possibilidade de sua reprodução no pensamento.
Sob esse ponto de vista, parece-me que o rótulo se encaixa, pelo menos parcialmente, em Spinoza. Haja vista que ele entendia a razão humana como um modo, ou seja, uma moficação particular, de algo mais geral. Ou seja, a razão repetindo a estrutura do atributo Pensamento da Substância. Entretanto, se formos seguir essa linha, não é só a razão que é modo de um atributo da Substância. Teríamos, então, que dar-lhe também, talvez, o rótulo de empirista. Por mais estranho que pareça, caso fixemos nosso olhar apenas nesse aspecto, talvez coubesse-lhe até o rótulo de mero "materialista".
Com isso, insisto, a aplicação do "rótulo" - mais um - de racionalista a Spinoza tem que ser feita com muito cuidado e reflexão, e não de uma forma apressada e absoluta.
3 comentários:
Racionalismo, para Spinoza, é um rótulo antigo, assim como panteísta e ateu. Aliás, o livro da Juliana Merçon, relacionando Spinoza e a educação, toca rapidamente neste assunto e a sua opinião é muito clara sobre este assunto.
Spinoza é dificil de rotular, como você mesmo já nos afirmou corretamente várias vezes, ideia esta que compartilho contigo.
Belo post (como sempre) Ricardo.
Guilherme:
Inicialmente tenho que agradecer pelos "olhos de amigo" com que tu lês meus textos. Certamente esse é um dos motivos do teu juízo sobre ele.
Em segundo lugar, realmente, "classificar" Spinoza, impondo-lhe um "rótulo" é até humilhante para um pensador da sua envergadura. Fica-se, obrigatoriamente, com uma lacuna imensa quanto a outras possibilidades de leitura.
Entretanto, mesmo não concordando com o tal rótulo de "racionalista", acho difícil afastá-lo definitivamente dos leitores iniciantes. Pois, como tu bem o sabes, não há manual de Filosofia que não "enjaule" nosso querido pensador nessa "prisão do Racionalismo". É lógico que, à medida que passamos da opinião do senso comum para a dos spinozanos, a coisa vai se modificando.
Permite-me apenas discordar um pouquinho da tua opinião de que "racionalista" é um "rótulo antigo", como o são "panteísta" e "ateu". Minha impressão é que "ateu" é uma qualificação já percebida como fruto apenas da rejeição ao nosso pensador, quando de uma época em que isso era uma ofensa e a imputação de algo problemático a determinado pensador. Qualquer historiador atual da Filosofia "descarta" esse rótulo como meramente formal, dando-lhe importância nula.
"Panteísta", por outro lado, é um rótulo que concorre com "naturalista", em Spinoza. Este, sob alguns pontos de vista, ainda me parece vivo.
Já "racionalista", como eu escrevi acima, está muito vivo para o "senso comum filosófico" (se tu me permites usar uma expressão assim). Não há historiador da Filosofia - mesmo os que fazem ressalvas específicas quanto ao luso-holandês - que, nos manuais, não registre que o "Grande Racionalismo" tem como figuras de proa Descartes, Spinoza e Leibniz.
Alguns, como eu disse, ainda são perspicazes o suficiente para "desenrolar" Spinoza desse emaranhado simplório que é chamar-lhe simplesmente "racionalista", mas outros apenas embarcam nessa "canoa furada".
Obrigado pelo comentário.
Abraços.
Concordo Ricardo, mas falo de um ponto de vista não de senso comum... e lembre-se que mesmo entre estudiosos da filosofia também caem em "sensos-comuns filosóficos". Como tu bem sabes, senso comum não é privilégio de "povão ignorante", como alguns acreditam... o senso comum está vívido entre todos nós, filósofos ou não. ;)
O rótulo de racionalista, embora muito utilizado, é fruto de um "encaixe" nas concepções históricas da época e que, em alguns casos, serve muito bem a Spinoza, embora não o defina. Acredito que utilização ainda hoje seja mais por didatismo. De qualquer forma, é muito utilizada realmente e tu tens razão. Embora ainda ache que seja embolorada.
Quanto ao panteísmo, sou adepto da opinião de que Spinoza está mais para "panenteísta" do que panteísta.
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