segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Racionalismos (2)

Há alguns posts, pensava sobre o "rótulo" de "racionalista" para Spinoza - rótulo de que não gosto muito, como meus amigos sabem. Aliás, os "rótulos", de maneira geral, são reducionistas demais.
Então, pensando sobre os racionalismos...
Nosso amigo André Comte-Sponville nos diz que há dois sentidos para o termo. O primeiro, mais lato, diz respeito ao entendimento que o real é racional, e que o irracional não existe - aqui, lembramos obviamente de Hegel, com sua afirmação de que "O real é racional...". Neste sentido, o "racionalismo" se opõe ao "irracionalismo", ao obscurantismo e à superstição.
Nesse aspecto, não há como negar que Spinoza é um racionalista. Afinal, um de seus principais embates era contra a superstição.
Mas o que impõe a Spinoza o rótulo de "racionalista", pelo menos historicamente, tem mais a ver com a doutrina oposta ao Empirismo. Nesse sentido, o termo se refere a "uma doutrina para qual a razão é independente da experiência (porque seria inata ou a priori)", ainda segundo Spoville.
Sob este ponto de vista, acho que o rótulo já não lhe cai muito bem, visto que Spinoza não faz propaganda de nenhum inatismo.
Há, entretanto, mais algumas perspectivas sobre o "Racionalismo".
Roland Corbisier - que me parece um pouco menos "considerado" do que deveria - fala sobre três tipos de racionalismos: um racionalismo psicológico (ou intelectualismo); um racionalismo epistemológico/gnoseológico e um racionalismo ontológico/metafísico.
O primeiro tipo, postulando a divisão da alma humana em Vontade, Sensibilidade e Razão, propõe uma posição hierárquica superior da Razão, em relação às outras faculdades. Especificamente quanto a este tipo de Racionalismo, não acho que ele corresponda ao pensamento spinozano. A Vontade - que, para nosso filósofo, não era livre -, se considerada "impulsionada" pelo desejo, não fica em posição "menor" do que a razão, para Spinoza. E mais, tanto o filósofo não vê superioridade da razão, que não soluciona o dilema da felicidade como possível suspensão do desejo através da ação da razão.
O segundo tipo propõe que apenas a razão é a ferramenta adequada para conhecer a realidade. Quanto a este tipo, parece que Spinoza também não mereceria o tal rótulo. Afinal, o próprio filósofo coloca a Razão - como mecanismo de identificação de um "regramento geral" da realidade - apenas como modo secundário de conhecimento. A superior, como sabemos, era a "intuição".
O terceiro tipo propõe que a razão é a essência da realidade, tanto natural quanto histórica. Sob este ponto de vista, a estrutura do pensamento é determinado pela estrutura da realidade. E, à razão humana, é admitida a apreensão da realidade e a possibilidade de sua reprodução no pensamento.
Sob esse ponto de vista, parece-me que o rótulo se encaixa, pelo menos parcialmente, em Spinoza. Haja vista que ele entendia a razão humana como um modo, ou seja, uma moficação particular, de algo mais geral. Ou seja, a razão repetindo a estrutura do atributo Pensamento da Substância. Entretanto, se formos seguir essa linha, não é só a razão que é modo de um atributo da Substância. Teríamos, então, que dar-lhe também, talvez, o rótulo de empirista. Por mais estranho que pareça, caso fixemos nosso olhar apenas nesse aspecto, talvez coubesse-lhe até o rótulo de mero "materialista".
Com isso, insisto, a aplicação do "rótulo" - mais um - de racionalista a Spinoza tem que ser feita com muito cuidado e reflexão, e não de uma forma apressada e absoluta.

3 comentários:

Prof. Guilherme Fauque disse...

Racionalismo, para Spinoza, é um rótulo antigo, assim como panteísta e ateu. Aliás, o livro da Juliana Merçon, relacionando Spinoza e a educação, toca rapidamente neste assunto e a sua opinião é muito clara sobre este assunto.

Spinoza é dificil de rotular, como você mesmo já nos afirmou corretamente várias vezes, ideia esta que compartilho contigo.

Belo post (como sempre) Ricardo.

Ricardo disse...

Guilherme:
Inicialmente tenho que agradecer pelos "olhos de amigo" com que tu lês meus textos. Certamente esse é um dos motivos do teu juízo sobre ele.
Em segundo lugar, realmente, "classificar" Spinoza, impondo-lhe um "rótulo" é até humilhante para um pensador da sua envergadura. Fica-se, obrigatoriamente, com uma lacuna imensa quanto a outras possibilidades de leitura.
Entretanto, mesmo não concordando com o tal rótulo de "racionalista", acho difícil afastá-lo definitivamente dos leitores iniciantes. Pois, como tu bem o sabes, não há manual de Filosofia que não "enjaule" nosso querido pensador nessa "prisão do Racionalismo". É lógico que, à medida que passamos da opinião do senso comum para a dos spinozanos, a coisa vai se modificando.
Permite-me apenas discordar um pouquinho da tua opinião de que "racionalista" é um "rótulo antigo", como o são "panteísta" e "ateu". Minha impressão é que "ateu" é uma qualificação já percebida como fruto apenas da rejeição ao nosso pensador, quando de uma época em que isso era uma ofensa e a imputação de algo problemático a determinado pensador. Qualquer historiador atual da Filosofia "descarta" esse rótulo como meramente formal, dando-lhe importância nula.
"Panteísta", por outro lado, é um rótulo que concorre com "naturalista", em Spinoza. Este, sob alguns pontos de vista, ainda me parece vivo.
Já "racionalista", como eu escrevi acima, está muito vivo para o "senso comum filosófico" (se tu me permites usar uma expressão assim). Não há historiador da Filosofia - mesmo os que fazem ressalvas específicas quanto ao luso-holandês - que, nos manuais, não registre que o "Grande Racionalismo" tem como figuras de proa Descartes, Spinoza e Leibniz.
Alguns, como eu disse, ainda são perspicazes o suficiente para "desenrolar" Spinoza desse emaranhado simplório que é chamar-lhe simplesmente "racionalista", mas outros apenas embarcam nessa "canoa furada".
Obrigado pelo comentário.
Abraços.

Prof. Guilherme Fauque disse...

Concordo Ricardo, mas falo de um ponto de vista não de senso comum... e lembre-se que mesmo entre estudiosos da filosofia também caem em "sensos-comuns filosóficos". Como tu bem sabes, senso comum não é privilégio de "povão ignorante", como alguns acreditam... o senso comum está vívido entre todos nós, filósofos ou não. ;)

O rótulo de racionalista, embora muito utilizado, é fruto de um "encaixe" nas concepções históricas da época e que, em alguns casos, serve muito bem a Spinoza, embora não o defina. Acredito que utilização ainda hoje seja mais por didatismo. De qualquer forma, é muito utilizada realmente e tu tens razão. Embora ainda ache que seja embolorada.

Quanto ao panteísmo, sou adepto da opinião de que Spinoza está mais para "panenteísta" do que panteísta.