segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

"Guia politicamente incorreto da História do Brasil" (2)

  Em novembro do ano passado, eu registrei que Ancelmo Goes havia publicado em sua coluna alguns comentários sobre o recém lançado, à época, "Guia politicamente incorreto da História do Brasil", de Leandro Narloch.
  Até semana passada, eu havia me contentado em ler esses pequenos comentários. Mas comecei a folhear o livro e me deparei com o capítulo - o último -, entitulado "Três coisas que a tortura não esconde", que se referia à Ditadura brasileira, iniciada em 1964, com a revolução militar. E considerei muito apropriado conhecer, um pouco mais criticamente, essa parte de nossa história, justo agora que está se polemizando tanto em torno do Plano Nacional de Direitos Humanos, que rediscutiria a atuação dos militares nesse período, principalmente no que diz respeito às torturas.
  Antes de qualquer coisa, não posso deixar de dizer que, em minha opinião, a tortura é um crime de alcance muito maior que um atentado contra a individualidade. Considero que, da mesma forma que atentados em locais públicos, a tortura agride a "humanidade" dos homens - até mesmo a do próprio torturador.
  Dito isto, transcrevo, quais seriam as três coisas que a tortura - da época em questão - não esconderia: (1) a guerrilha provocou o endurecimento do regime militar; (2) os guerrilheiros não lutavam por liberdade e (3) o sonho acabou: que bom.
  Em relação ao primeiro tópico, o autor escreve: "É muito repetida a ideia de que os grupos de esquerda decidiram partir para a luta armada porque essa era a única resposta possível à rigidez da ditadura", mas esclarece que "na verdade, antes de os militares derrubarem o presidente João Goulart, já havia guerrilheiros planejando ações e se preparando para elas". Além disso, lembra-nos que "em 1959, quando Fidel Castro chegou ao poder em Cuba, mostrou ao mundo que era possível vencer os governos de direita por meio de uma guerrilha pequena e organizada". E conclui que, em função de determinadas ações planejadas pelos grupos de esquerda, como o Movimento Revolucionário Tiradentes, "quando ações como essas chegavam aos jornais, contribuíam para o clima de golpe iminente: a esquerda ou a direita tomariam o poder à força no Brasil".
  Esse é o clima de "golpe" iminente que o autor nos descreve. Além disso, para confirmar sua tese de que o que se julga ser o efeito - a atuação dos guerrilheiros - era na verdade a causa do excesso pelo lado dos militares, ele escreve que "mesmo depois do golpe militar, não havia tanto motivo assim para aderir a guerrilhas. Apesar de a ditadura ter começado em 1964, até 1968 o governo tinha de levar as leis para serem apreciadas no Congresso e as pessoas podiam responder processo criminais em liberdade. Esperava-se que os militares logo promovessem eleições [...] O regime só endureceu de verdade em dezembro de 1968, com o Ato Institucional nº 5".
  Com relação ao fato de os guerrilheiros não lutarem por liberdade, o autor traz uma tese do livro "A Ditadura escancarada", do jornalista Elio Gaspari, de que "a luta armada fracassou porque o objetivo final das organizações que a promoveram era transformar o Brasil numa ditadura, talvez socialista... Seu projeto não passava pelo restabelecimento das liberdades democráticas". Ele cita ainda dois historiadores, ex-guerrilheiros, Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá, que, no livro "Imagens da Revolução", analisaram estatutos de dezoito grupos de luta armada das décadas de 60 e 70, e chegaram à conclusão que "dos dezoito textos, catorze descrevem o objetivo de criar um sistema de partido único e erguer uma ditadura similar aos regimes comunistas que existiam na China e em Cuba". Não chega a espantar o fato, por exemplo, do grupo "Ação Popular" defender "substituir a ditadura da burguesia pela ditadura do proletariado", afinal essa era uma tese fundamental do próprio Marx. Mas choca um pouco falar em luta para tirar uma ditadura (de direita) para implantar outra (de esquerda)!
  Em relação dessa aproximação ao ideário de China e Cuba, que seriam obviamente as referências normais na época, o autor faz uma consideração interessante, embora pertença claramente ao campo meramente especulativo: "Basta olhar para os países comunistas de hoje para perceber o que os heróis da luta armada fariam com a gente. Os cubanos ... se prostituem para comprar sabonetes [...] A China vigia a internet, prende blogueiros indesejáveis".
  O autor continua nos seus exercícios imaginativos citando, por exemplo, a possibilidade da Amazônia se transformar em uma espécie de "campo de trabalhos forçados" de "inimigos do regime". Mas isso eu deixo de lado, por achar especulativo demais.
  Por último, o autor mostra satisfação com o fato de o sonho comunista ter acabado no Brasil. Ele cita um caso emblemático do  guerrilheiro Márcio Leite de Toledo, que foi julgado e assassinado pelos companheiros, em função do seu pensamento de se afastar da organização. Após o fuzilamento do rapaz de 26 anos, foi lançado um panfleto com os seguintes dizeres: "Uma organização revolucionária, em guerra declarada, não pode permitir a quem tenha uma série de informações... vacilação [...] Um recuo, nesta situação, é uma brecha aberta em nossa organização. [...] Tolerância e conciliação tiveram funestas consequências na revolução brasileira [...] Ao assumir responsabilidade na organização cada quadro deve analisar sua capacidade e seu preparo. Depois disto não se permite recuos [...] A revolução não admitirá recuos!".
  Além desse caso, cita-se a execução, dentro da sala de aula, do professor Francisco Jacques Moreira de Alvarenga, acusado pelos companheiros da Ação Libertadora Nacional de ter revelado informações sobre o grupo. Pouco se considerou o fato disso ter acontecido mediante tortura. Revela-se ainda o fato de que vários guerrilheiros do Araguaia eram tão pouco queridos pela população local que, tão logo passavam por uma comunidade, eram delatados à Polícia.
  Destaco uma passagem que talvez seja válida para qualquer tempo e lugar. Escreve Leandro Narloch: "Movimentos revolucionários costumam colocar seu ideal político acima dos valores individuais e das regras tradicionais da vida. Cria-se assim uma superioridade moral que lembra a dos cristãos nas Cruzadas - um pensamento do tipo 'eu luto por um mundo justo, uma sociedade sem contradições, portanto posso matar e roubar em nome desse ideal sagrado'".
  Aproveitando a comparação entre a ideologia marxista-leninista e a cristã, à época das Cruzadas, vale a citação, feita pelo autor, do filósofo Nietzsche, em O crepúsculo dos ídolos: "Se atribuímos nosso estado ruim a outros ou a nós mesmos - a primeira coisa faz o socialista, a segunda, o cristão, por exemplo - é algo que não faz diferença".
  Por último, sem nenhuma tentativa de "apagar" à força algo que realmente existiu, segue uma comparação do número de vítimas entre a Ditadura brasileira e diversas outras, a fim de mostrar a relativa "brandura" da nossa.
  "O regime militar torturou pelo menos duas mil pessoas, com choques, empalações, palmatórias nos seios das prisioneiras, entre outras selvagerias" - tristíssima rememoração! Apesar disso, a Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos reconhece que "em 21 anos, as ações antiterrorismo criaram 380 vítimas", e o autor compara: "é muito menos que os 30 mil mortos pela ditadura argentina ou estimativa de 3 mil vítimas dos militares do Chile (país com menos de 10% da população brasileira)". Essa comparação não para em ditaduras "de direita", avançando para os dados de Cuba (7.038 mortos), China (700 mil mortos) e Camboja (assustador 1,7 milhão de mortos sobre uma população de 8,2 milhões, ou seja, 21% da população morta!!!).
  Fechando o post, seria importante apenas registrar que o autor, que é jornalista e não historiador, faz uma boa pesquisa, citando as suas fontes e observa que "a história nem sempre é uma fábula: não tem uma moral edificante no final e nem causas, consequências, vilões e vítimas" e que seu livro "não quer ser um falso estudo acadêmico... , e sim uma provocação".
  No mínimo, vale para que possamos pesar melhor nossas opiniões!

Um comentário:

Marise von disse...

Ricardo,
Excelente post!
É necessário conhecer a história, ve-lá de todos os ângulos, e como nas aulas de Sociologia ver com "um olhar estranhamento".
Depois que eu li "1984 - George Orwell ", olho o mundo e os acontecimentos com outros olhos.
E a sociologia ajuda muito neste sentido.
O problema é que muitas vezes, aliás, a maioria das vezes nós não queremos ver as coisas como elas de fato são.
A verdade machuca, dói, mas é o melhor caminho.
O problema é que cada um vive a sua verdade....
Abraços,
Marise.