Conforme eu havia escrito antes, passo a descrever o capítulo "Martin Heidegger faz oitenta anos", do livro "Homens em tempos difíceis".
O capítulo é aberto com uma citação que nos faz lembrar muito essa avidez pela chegada do "Ano Novo", que promete uma série de mudanças fantásticas, mas que, se analisado friamente, não significa nada além do início de mais um "ciclo natural", que, muito mais do que grandes transformações, poderia sugerir algo como aquela letra do Cazuza, "um museu de grandes novidades".
Voltando, então... Arendt cita Platão: "O começo é também um deus que, enquanto permanece entre os homens, tudo salva". E, então, fala sobre o "começo" de Heidegger, indicando que "o renome de Heidegger é mais antigo que a publicação de Sein und Zeit, em 1927, e pode-se até perguntar se o insólito êxito desse livro ... teria sido possível sem... o êxito professoral que o precedeu e foi por ele apenas confirmado".
Questionamento interessante o de Hannah, afinal, já nos acostumamos a ver Heidegger "nascer" para o mundo filosófico com Ser e Tempo, sem conseguirmos vivenciar exatamente - e não apenas "ouvir dizer" - o que foi seu tempo "pré-Ser-e-Tempo" (parodeando o modus heideggeriano de escrever. Rsss), quando costumeiramente só sabemos que foi assistente de Husserl.
Arendt diagnostica que "havia algo de estranho nessa primeira glória... [antes] não existia nada em que sua fama pudesse se apoiar, nenhum texto e apenas notas de cursos, que circulavam de mão em mão; e os cursos tratavam de textos universalmente conhecidos, sem conter nenhuma doutrina a ser tomada e transmitida".
A nossa querida autora mostra, então, a chave para o tal "êxito professoral" de Heidegger, quando conta que "Havia nas universidades alemãs... uma grande insatisfação... A filosofia não era um ganha-pão, era antes a disciplina... dos muito exigentes... A universidade em geral lhes oferecia as escolas - os neokantianos, os neo-hegelianos, os neoplatônicos, etc. - ou a velha disciplina escolar... dividida em compartimentos, com a teoria do conhecimento, a estética, a ética, a lógica, etc.", e cita Husser e, a seguir, Karl Jaspers, ao dizer que "havia... mesmo antes do aparecimento de Heidegger, um pequeno número de rebeldes".
Sobre o primeiro, Edmund Husserl, a própria história nos conta que houve um momento em que ele teria dito "A Fenomenologia somos eu e Heidegger!", o que demonstra o respeito do pensador mais velho por seu pupilo. A respeito de Jaspers, Arendt conta que ele "por longo tempo manteve laços de amizade com Heidegger, exatamente porque o que havia de rebelde no desígnio de Heidegger lhe interessava como algo radicalmente filosófico em meio ao falatório acadêmico sobre a filosofia". Ou seja, Heidegger não falava, simplesmente, sobre Filosofia, mas filosofava, efetivamente.
E, justamente por esse último aspecto, conta-nos Arendt, que "os que... consideravam a erudição nas coisas da filosofia como um jogo ocioso" eram atraídos a Freiburg, e pouco depois a Marburg, dizendo: "há alguém que efetivamente atinge as coisas que Husserl proclamou; sabe que elas não são um assunto acadêmico, mas a preocupação do homem pensante". Particularmente, escreveria "homem existente" em vez de "homem pensante", por achar que ficaria mais de acordo com o "espírito" heideggeriano... mas quem sou eu para discordar dos alunos de Heidegger e de frau Arendt?
E ela continua discorrendo sobre "a diferença" de Heidegger: "O decisivo no método era que, por exemplo, não se falava sobre Platão... , mas seguia-se e se sustentava um diálogo durante um semestre inteiro, até não ser mais uma doutrina milenar, mas apenas uma problemática altamente contemporânea... Agora, muitos procedem assim; antes de Heidegger, ninguém o fazia. A novidade... : o pensamento tornou a ser vivo". E os seus "seguidores" teriam pensado, segundo Arendt: "Há um mestre; talvez se possa aprender a pensar".
A afirmação de que, antes de Heidegger ninguém procedia desta forma deve ser verdadeira, mas não garanto, pelo menos no Brasil, que nossos mestres se prontifiquem a discutir exaustivamente a filosofia de alguém, em vez de simplesmente apresentá-la, em forma de história e de conceitos... mas são as marcas da atualidade, onde o tempo (empírico e científico) se esvai rápido demais!
Arendt afirma, de maneira, até certo ponto, "bombástica": "pois não foi a filosofia de Heidegger, e pode-se com justiça indagar se ela existe (como o faz Jean Beaufret), mas sim o pensar de Heidegger que contribuiu para determinar tão decisivamente a fisionomia espiritual do século XX".
Hannah também indica em seu texto o que teria sido o "único resultado imediato levado em consideração", a partir do "pensar ativo" de Heidegger: "ter derrubado o edifício da metafísica existente, onde, em todo caso, ninguém mais, há muito tempo, se sentia realmente à vontade", e indica que "é a ele... que se deve agradecer que tal desmoronamento tenha ocorrido de maneira digna".
Outra observação interessante que faz a autora é a seguinte: "Por toda a vida, tomou os textos dos filósofos como base de seus seminários e cursos, e é só na velhice que avança e se arrisca a realizar um seminário sobre um texto seu. Zur Sache des Denkens contém o 'Protocolo para um seminário sobre a conferência Ser e Tempo' ".
Alguém pode pensar num motivo para isso? Será que o grande pensador da Floresta Negra reverenciava tanto os filósofos de outrora que não conseguia se ver a altura deles, em se tornando, como eles, objeto de suas próprias palestras?
Alguém pode pensar num motivo para isso? Será que o grande pensador da Floresta Negra reverenciava tanto os filósofos de outrora que não conseguia se ver a altura deles, em se tornando, como eles, objeto de suas próprias palestras?
Para o post não ficar muito "cansativo" e, atendendo ao meu espírito de autor de novelas, conto mais em "Heidegger, por Arendt (2)". Rsss.
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