terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Heidegger, por Arendt (3)

  Continuando... 
  De modo bastante interessante, a inteligente autora estabelece um paralelo entre Heidegger e Platão, utilizando-se das aventuras deste último em Siracusa. Ela escreve: "Ora, sabemos todos que Heidegger também cedeu uma vez à tentação de mudar de 'morada' e de se 'inserir', como então se dizia, no mundo dos afazeres humanos. E, no que concerne ao mundo, mostrou-se ainda um pouco pior para Heidegger do que para Platão, pois o tirano e suas vítimas não estavam além-mar, mas em seu próprio país. No que concerne a ele mesmo, creio que as coisas são outras. Ele era ainda bastante jovem para - a partir do choque resultante da colisão que o lançou, há 35 anos e depois de dez curtos meses de febre, de volta para a morada que lhe cabia - extrair uma lição, em seu pensar, do que experimentara. O que se seguiu para ele foi a descoberta da vontade... sob as espécies da vontade de poder. [...] Sobre a essência... do querer, apesar de Kant, apesar de Nietzsche, pouco se meditou. De qualquer forma, ninguém antes de Heidegger viu o quanto essa essência é contrária ao pensar e exerce sobre ele uma ação destrutiva".
  No afã de defender Heidegger, entretanto, parece-me que Arendt comete uma injustiça com a "classe" dos filósofos. Ela escreve que: "Não podemos ... nos impedir de achar chocante, e talvez escandaloso, que tanto Platão como Heidegger, quando se engajaram nos afazeres humanos, tenham recorrido aos tiranos e ditadores. Talvez a causa não se encontre apenas a cada vez nas circunstâncias da época, e menos ainda numa pré-formação do caráter, mas antes no que os franceses chamam de deformação profissional. Pois a tendência ao tirânico pode se constatar nas teorias de quase todos os grandes pensadores (Kant é a grande exceção). E se essa tendência não é constatável no que fizeram, é apenas porque muito poucos, mesmo entre eles, estavam dispostos, além 'do poder de se espantar diante do simples', a 'aceitar esse espanto como morada'".
  Custa-me crer que Arendt realmente encare Kant como quase  única exceção à "tendência ao tirânico" nos "grandes pensadores". Quantos e mais quantos filósofos, se não na Alemanha de Heidegger e Arendt - mas também de Kant -, mas na própria França, de onde teria vindo a ideia de uma "deformação profissional", foram grandes defensores da liberdade! Citar Spinoza - reconhecidamente, um dos primeiros defensores da democracia - seria muito tendencioso de minha parte; mas Voltaire é um ícone justamente dessa "oposição ao tirânico"... Thomas More é outro! John Locke... e tantos mais!
  Essa foi a parte mais "formal" do texto. Mas há, na nota de rodapé, algo mais emocional.
  Arendt escreve: "Hoje - depois de dissipada a amargura e sobretudo depois que, em certa medida, se fez justiça a inumeráveis falsas informações - [a atitude de Heidegger] que é usualmente chamada de 'erro' [...] O conteúdo do erro se distingue consideravelmente do que então foi a execução de 'erros'. [...] Heidegger, como tantos outros intelectuais alemães nazistas e antinazistas de sua geração, jamais leu Mein Kampf. [...] Esse erro perde importância quando comparado ao erro muito mais decisivo, que consistiu em se esquivar à realidade dos porões da Gestapo e dos infernos de torturas dos campos de concentração. [...] Na verdade, Heidegger se deu conta desse 'erro' após um breve lapso de tempo e a seguir assumiu mais riscos do que até então correra na universidade alemã. Mas não se pode afirmar o mesmo de inúmeros intelectuais e autoproclamados sábios que, não só na Alemanha, ainda e sempre preferem, ao invés de falar sobre Hitler, Aushwitz, genocídio e a 'eliminação' como política permanente de despovoamento, ater-se, cada um conforme sua fantasia e gosto, a Platão, Lutero, Hegel, Nietzsche... [...] Pode-se bem dizer que a fuga da realidade tornou-se, nesse ínterim, uma profissão, fuga não para uma espiritualidade com a qual a sarjeta nunca teve nada a ver, mas para um reino fantasmático de representações e 'ideias', que deslizou para a pura abstração tão distante de qualquer  realidade experimentada e experimentável que, nele, os grandes pensamentos dos pensadores perderam toda e qualquer consistência e se confundem como formações de nuvens, onde uma passa constantemente para a outra".
  Palavras de uma mulher apaixonada? Quem sabe?
 

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