O título do mais recente livro de André Comte-Sponville é "O amor". Este filósofo francês, nosso contemporâneo - todos os amigos sabem -, é um dos meus preferidos. É bem verdade que seu trabalho de divulgador da Filosofia é muito mais famoso do que aquele de pensador original, como o que se refere ao conteúdo das obras "O capitalismo é moral?", "O ser-tempo", "Tratado do desespero e da beatitude" e "A felicidade, desesperadamente", por exemplo, entre outros mais. Mas talvez seja justamente esse "duplo acesso" ao terreno da Filosofia que ele nos disponibiliza aquilo o que corresponde ao seu maior mérito.
Esse livro tem uma grande curiosidade: está sendo publicado antes em Português - aqui no Brasil - que no idioma natal de Sponville. Ou seja, temos um texto de um francês cuja primeira edição mundial se dá no nosso "tão íntimo" Português. Originalmente, tratava-se de uma longa palestra sobre o amor, proferida em francês por Sponville, disponível em CD, lá na França. A Editora WMF Martins Fontes - a quem agradeço entusiasticamente! - pediu, então, que ele produzisse uma versão escrita da mesma. O autor reviu a transcrição e fez algumas alterações, compondo justamente o que temos à nossa disposição.
Feitas essas considerações pré-textuais... adicionando a elas o fato de que apenas li o "comecinho" do livro - pois ainda tenho dois outros para concluir -, vamos ao porquê de eu ter lembrado do nosso amigo Silvério.
No último "Notas Filosóficas", Silvério falou da moral kantiana, aquela "famosa" - e, para mim, inaceitável - moral deontológica. Como sempre, as apresentações - tanto do Silvério, quanto do Caetano Veloso, a quem nosso querido professor "convidou", via vídeos, para conduzir musicalmente o tema proposto - foram ótimas. Mas isso já não é novidade. A "novidade" foi quando, ao ler "O amor", vi uma tese semelhante à levantada por Silvério: "Quando existe amor, já não é preciso preocupar-se com a moral... já não há dever".
A tese é muito interessante, mas os argumentos são mais ainda.
Sponville, com mais espaço do que Silvério, pode começar propondo que "O amor não é um dever", para, depois disso, tomar a explicação de Kant de que "o amor é uma questão de sentimento e não de vontade". O francês mostra, apoiado no alemão, que "não se pode ordenar um sentimento". Um exemplo bem simplório é evocado para confirmar isso. Sponville faz o leitor imaginar que, como pai zeloso, dá espinafre ao seu filho. Este recusa-o dizendo: "Não gosto [não amo] espinafre!". Sponville mostra que não há sentido o pai retrucar: "Ordeno que você goste [ame] espinafre!". É verdade que ele poderia dizer "Ordeno que você coma espinafre!"; afinal, uma ação é passível de um comando, ou seja, de uma expressão da vontade.
Sponville dá um exemplo a mais. Mas penso que já deu para captar a ideia.
Nosso pensador escreve, então: "Eis o problema: se o amor não é um dever, se o amor não pode ser ordenado, que sentido pode ter o mandamento evangélico 'Ama ao próximo como a ti mesmo'?".
Sponville vai então pensar nesse mandamento como representando um "amor prático". O que se espera, segundo ele, é que se aja "como se amássemos, quando o amor está ausente". Conclui nosso autor, então, que "a moral é uma aparência de amor". Afinal, escreve ele: "É forçoso reconhecer que, quando saímos do âmbito da família [pouco depois, Sponville incluirá os amigos mais próximos também], amar é nos pedir demais. Foi por isso que se inventou a moral".
Silvério - e Sponville, penso, concordaria - propõe que a saída para não nos sentirmos apenas "seres de deveres" - a expressão é minha, mas franqueio-a ao questionamento do próprio Silvério, caso ele imagine que ela não expressou bem sua própria ideia - é o "amor". Ainda que não possa ser "aqueeeele amor" que sentimos por nossos pais ou filhos, será, pelo menos, um "amor prático".
Assim, se for verdade que "Quando existe amor, já não é preciso preocupar-se com a moral... já não há dever", produziremos um mundo bem melhor de se viver... sem nem a necessidade da moral e do dever.
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