Normalmente, lá em casa, é assim: eu leio de um lado e a minha pequena lê do outro.
Numa das "nossas" últimas leituras, eu me debruçava sobre os problemas do convencionalismo e do naturalismo no Crátilo de Platão, e minha filhota relia Marcelo, marmelo, martelo de Ruth Rocha.
No Crátilo, para quem não lembra, Hermógenes defende a tese convencionalista - que afirma que a linguagem é mera convenção representacional das coisas significadas -, enquanto Crátilo defende a tese naturalista - que afirma que a linguagem, mais especificamente os nomes, é a expressão da essência das coisas significadas. Sócrates entra na estória... e faz o de sempre: tumultua as coisas, com aquele brilhantismo dialético, e não chega a lugar nenhum... a não ser em mais uma aporia... e ficamos sem saber a qual doutrina Platão se alinha. Se bem que, particularmente, acho que ele teria que estar ao lado do naturalismo, do contrário, aquela tese que é atacada no Górgias, de um relativismo moral, onde os valores seriam baseados única e exclusivamente nas convenções, acabaria por sair vitoriosa... contrariamente ao desejo de Platão, ao enfrentar os sofistas.
Para quem não lembra, ou nunca leu, Marcelo, marmelo, martelo, o garoto do título, de modo muito engraçado, faz as vezes do "nomoteta" platônico. Enquanto o "nomoteta" olha as Ideias e escolhe os nomes para elas, numa língua original, expressando a essência, ou seja, a natureza íntima das coisas sensíveis que participarão daquela Ideia, o menino Marcelo olha as coisas do mundo e tenta nomeá-las segundo o mesmo paradigma. Desta forma, o seu cão de estimação vira o "Latildo", a casinha do mesmo se transforma em "Moradeira", e quando esta se incendeia, Marcelo grita para seu pai: "Pai, a moradeira do Latildo está embrasando!".
A estória do Marcelo é bem engraçada mesmo, e chama atenção para o fato de como há uma tendência a achar que, procedendo dessa maneira naturalista, expressa-se melhor do que da forma convencional a coisa ou o fato em questão.
Acho que se Platão pudesse ter lido Ruth Rocha, usaria o Marcelo como defensor da tese naturalista, em vez do Crátilo... e, então, teríamos o diálogo Marcelo de Platão.