domingo, 31 de julho de 2011

"100 obras-chave de Filosofia" (5... e último)

   CONCEITOS:

   Afeto : o afeto corresponde ao que modifica nossa potência de agir, seja aumentando-a (fala-se então de afeto alegre), seja diminuindo-a (os afetos tristes). A afetividade diz respeito às  coisas finitas, necessariamente tomadas em relações com os outros seres do mundo que atestam sua passividade. Só os afetos ativos, sendo o principal deles a compreensão, nos permitem ultrapassá-la.

   Substância/atrituto/modo : esses três conceitos, explicados no Livro I, estruturam toda a ontologia da Ética. A substância é "o que é em si e se concebe por si" (I, definição 1), é nisto que Espinosa retoma seus caracteres clássicos. A originalidade está na afirmação de uma substância única (monismo) apreensível através de seus atributos, em número infinito. No entanto, os seres humanos não percebem nela mais do que duas, a extensão e o pensamento, cujas expressões particulares constituem os modos ou maneiras de existir.

   Potência : todo ser pode ser compreendido como um grau de potência, parte cujo todo é Deus, potência absoluta de existir. Cada potência é ato, isto é, tende a afirmar-se produzindo efeitos por ela mesma. A equação original de Espinosa resulta da identificação de potência e virtude, de um lado, que exclui toda definição da virtude em termos de norma transcendente e exterior à nossa natureza; e, no fundo, à liberdade, porque afirmar sua potência é agir só de conformidade com as leis de sua natureza e, portanto, escapar à passividade.

[THE END!!!]

sábado, 30 de julho de 2011

"100 obras-chave de Filosofia" (4)

   O espírito é a ideia do corpo (II,13)
   O corpo é um modo da extensão, o espírito um modo do pensamento, cada atributo exprimindo de maneira original uma mesma coisa. Deve-se, todavia, distinguir a ideia que somos das ideias que temos. Devemos também repensar o sentido da união entre as duas entidades: não há, propriamente falando, exterioridade de um ao outro e, portanto, determinação possível de um pelo outro, tal como dariam a entender, por exemplo, a ideia de um domínio do corpo pelo espírito. Falou-se de paralelismo  para qualificar a identidade de ordem e de conexão das ideias e das coisas: a consequência  é que "a ordem das ações e paixões de nosso corpo vai de par com a ordem das ações e paixões do espírito" (III,2). Espinosa inverte assim a correspondência tradicional entre paixão da alma e ação do corpo, e afirma sua igual dignidade.

   "O ser humano não é um império num império" (III, Prefácio)
   A proposição que tem em vista o estatuto do ser humano tem por pano de fundo uma crítica da natureza concebida como um império que Deus regeria como chefe. As duas ilusões estão ligadas: trata-se de retificar tanto o pensamento de Deus como o da pessoa humana. Deus não é uma pessoa, e muito menos o ser humano se governa segundo os decretos de uma vontade livre de toda determinação. Se o ser humano não é um "império", é que ele é algo singular, finito, capaz de produzir efeitos, mas determinado por sua vez pelo que o cerca; portanto, ele não é inteligível por ele mesmo, desligado do todo natural no qual se encontra imerso. Enfim, é a teoria do livre-arbítrio que Espinosa recusa, tanto nos moralistas como em sua forma cartesiana: ela supõe a crença num domínio possível e desejável das paixões e, além disso, uma disciplina do sensível pela vontade. A Ética III buscará, ao contrário, mostrar a necessidade dos afetos revelando seus mecanismos.

   "O desejo é a essência do ser humano" (III, definição geral dos afetos)
   Afirmar isto é antes de tudo reconhecer a importância e a necessidade do desejo; irredutível a uma imperfeição, uma falta, ele é suscetível de exprimir nossa natureza. Isto tem a ver com a maneira de Espinosa encarar a existência individual: cada uma é caracterizada por uma tendência a afirmar seu ser, o conatus, que no ser humano é consciente de si mesmo. Ele nasce de uma "afeição" de nossa essência, que pode referir-se só ao espírito - neste caso trata-se de uma vontade - ou simultaneamente ao espírito e ao corpo - fala-se então de apetite. Portanto, a existência é afirmação dinâmica de uma potência que se orienta sempre para o que lhe parece útil. O desejo é o suporte desta afirmação. No entanto, nem todo desejo exprime integralmente ou adequadamente minha natureza. Entre os afetos, é preciso distinguir os afetos que são paixões, determinados por uma causa exterior, dos afetos ativos. Desses últimos só podem proceder os desejos que correspondem a uma afirmação de si mesmo.

   "Nada é mais útil ao ser humano do que o ser humano" (IV, 35, corolário 1)
   É útil o que aumenta a nossa capacidade de agir e favorece os afetos de alegria. Entre as coisas singulares finitas, nada convém mais à nossa natureza do que um outro ser humano. A proposição tem evidentemente um alcance político, pois subentende a conclusão seguinte: "O que conduz à sociedade comum é bom" (IV, 40). No entanto, não se deve esperar também de nossos semelhantes o pior? Sim, mas somente se eles são governados por paixões. Pelo fato de um mesmo objeto poder afetar-nos de maneira bem diversa, as paixões criam diferenciações suscetíveis de transformar-se em oposição. Por exemplo, quando Pedro ama o que Paulo odeia. Portanto, o ser humano não é verdadeiramente útil ao ser humano, a não ser na medida em que ele vive sob o comando da razão. Também o aumento de nossa potência de agir passa por uma sociedade que se esforça para cultivar a vida racional; então, e só então, o útil próprio combina hamoniosamente com o útil comum.

[TO BE CONTINUED!]


sexta-feira, 29 de julho de 2011

Aniversário...

   Embora já não esteja mais me dando o prazer de suas conversas, nem a sabedoria de suas lições, hoje é dia do aniversário do homem que mais amei: meu pai.
   Seriam 89 anos, hoje... mas nos despedimos quando ele tinha 77.
   Eita... que falta você faz!
   Beijão, pai! Feliz aniversário!
   Como sempre fazemos, vamos à festa! Tudo marcado... mamãe, mulher, netos... e cerveja, paizão! 

Spinoza "neoestoico" (2)

   Se Spinoza é realmente um "neoestoico" - não stricto sensu, pois, como já vimos em post anterior, o termo tem um significado que não condiz especificamente com a doutrina spinozana, mas, pelo menos, lato sensu -, então teríamos que entender inicialmente o que quer dizer "estoico", a fim de compararmos os sistemas de ambos e chegarmos à tão esperada similaridade.
   O problema começa quando nos debruçamos mais detidamente sobre o Estoicismo. Vemos, logo de início, sem maiores preocupações doutrinárias, mas levando em conta apenas a historicidade, que há três "Estoicismos": o antigo (de Zenão, Cleanto e Crisipo), o médio (de Panécio e Posidônio) e o imperial (de Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio).
   O senso comum liga Estoicismo rapidamente a um dos aforismos mais típicos desta escola: "Domina-te e suporta". Um estoico é aquele que enfrenta corajosamente os reveses da vida. 
   Se não é errado fazer essa ligação, obviamente o Estoicismo não se limita ao que é representado por esse aforismo e, muito mais importante que isso, dispõe de uma fundamentação teórica ampla, a qual faz parte de um sistema muito bem estruturado, que suporta essa "coragem" estoica diante das vicissitudes.
    Para entender o que é o Estoicismo, não há como fugir da avaliação de sua fundação histórica e das circunstâncias em que ela se deu.
   Como todas as escolas helenistas - Estoicismo, Epicurismo e Ceticismo -, a teoria filosófica estoica deveria produzir um efeito prático: a tranquilidade da alma. Portanto, diz-se dessas escolas que elas produziram basicamente sistemas éticos, isto é, referentes ao ethos, ao comportamento prático do indivíduo frente ao mundo em que vivia. Embora liguemos o Ceticismo à Epistemologia, considerando-o sempre um "desconfiar" constante das "verdades" alcançadas pelas outras doutrinas, há que se lembrar que a proposta de "suspensão dos juízos" tem como finalidade última justamente a ataraxia, isto é, a "imperturbabilidade/tranquilidade da alma", conforme as demais escolas do período.
   Entretanto, Zenão de Cício (335-263aC), fundador do Estoicismo, não se limita a estabelecer simplesmente uma filosofia prática; realiza uma divisão de seu sistema em "partes": a Lógica, a Física e a Ética. Há uma analogia que compara o sistema estoico a uma propriedade rural, onde a Lógica é a cerca do terreno; a Física é o solo e a Ética seriam os frutos colhidos. Embora haja um interrelação absoluta entre as partes, pode-se perceber que elas exercem papéis diversos. Se a Lógica protege a doutrina de enganos e a Física dá suporte teórico, através do entendimento do mundo, às árvores que irão produzir, é a Ética, efetivamente, que fornecerá os frutos doutrinários, que poderão ser colhidos pelo sábio estoico. Apesar da imediata constatação, por conta da analogia, que a parte "principal" é a Ética, Zenão se furta a indicar isto, afirmando que todas as partes são igualmente importantes, bem como estabelecendo que, em realidade, não há "entrada" privilegiada para estudo da doutrina. Cada uma das "partes", sendo bem compreendida, permitiria acesso ao Estoicismo como um todo. De qualquer forma, pelo menos em termos pedagógicos, começava-se sempre pela Lógica, seguindo-se para a Física, até que se chegasse efetivamente à Ética.
   O Estoicismo tem início de um modo, na Antiguidade, mas logo recebe alguns retoques e inovações. Essas modificações vão se tornando mais severas, ao longo dos tempos, até que desembocamos em uma doutrina que praticamente abandona os aspectos lógico e físico - pelo menos enquanto especulação teórica, utilizando destes somente os aspectos imediatamente ligados à Ética -, no seu período dito "Imperial".
   A Lógica estoica é muito mais que um mero instrumento (organon) para a Filosofia, como fora para Aristóteles, dizendo respeito a toda uma Teoria do Discurso, incluindo uma poderosa Filosofia da Linguagem e, em certa medida, uma Teoria do Conhecimento. Em relação a ela, eu diria que acharemos poucos contatos com a filosofia spinozana.
   A Física e a Ética estoicas parecem produzir mais pontos de contato com a doutrina spinozana. E é isso que analisaremos em um próximo post.     

"100 obras-chave de Filosofia" (3)

   TESES ESSENCIAIS:

   "Deus, isto é, a natureza" (IV, Prefácio)
   Afirmação importante do sistema de Espinosa, a fórmula alimentou as acusações de ateísmo e de panteísmo. Deus é a única substância, infinita e eterna, inclusive "tudo está em Deus" e procede de sua essência. Esta definição derruba as bases de um Deus pessoal e transcendente, concepção muito difundida e que seria apenas, segundo o autor, uma projeção antropomórfica que procede da imaginação. Ao mesmo tempo, é todo o pensamento da natureza em termos de criação divina que é recusado: Deus é causa imanente de tudo o que existe, ele não poderia reger a natureza pelos decretos de sua vontade. Sua perfeição se exprime no encadeamento necessário das causas e dos efeitos na natureza, que não é o terreno de nenhuma intenção e não pode, portanto, ser apreendida em termos de causas finais.

   Três gêneros de conhecimento (II,40)
   O conhecimento não é contemplação, mas afirmação da ideia de uma coisa em nós. Espinosa distingue três formas de conhecimento segundo a maneira como esta afirmação se produz. No primeiro gênero, a afirmação procede do encontro do meu corpo com um corpo ou um sinal exterior de onde resultam imagens. Esta é a imaginação ou opinião, modo espontâneo mas confuso de conhecer. No segundo gênero, a afirmação procede de um dedução racional das propriedades gerais de uma coisa; o ser é apreendido através das "noções comuns" sempre adequadas e, portano, certas. Enfim, no terceiro gênero, a afirmação procede da intuição da essência apreendida, contrariamente às noções comuns, na sua singularidade. A ruptura essencial se situa entre o primeiro e o segundo gêneros. Se eles são hierarquizados, não é em função de um critério de verdade, mas de atividade do espírito: ele só é plenamente o autor do que se afirma nele em 2 e 3. Libertar-se da imaginação e da opinião é, por conseguinte, tornar-se causa adequada de seus próprios pensamentos, em outras palavras, compreender.

[TO BE CONTINUED!]
  

   

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Sêneca e Machiavelli

   Aliás, outro "proto-machiavellismo" de Sêneca aparece no texto Da tranquilidade da alma. É aí que Sêneca constrói a oposição entre virtude e fortuna.
   Mas que não se pense apenas em "virtude" como "bondade", aos moldes cristãos. Sêneca explica, em suas Cartas a Lucílio, que "a virtude é a fortitudo animi, a força da alma", bem ao modelo da "virtù" machiavelliana. Será essa força que permitirá "resistir" à fortuna quando for impossível vencê-la. Essa virtude é o traço característico do sábio, para os estoicos.

"O Príncipe", de Sêneca

   Sabemos que, ao tempo de Machiavelli, os textos aconselhando os monarcas sobre a boa arte de governar eram comuns. Quem começou essa "moda", entretanto, está vários séculos distante do florentino. Trata-se do filósofo estoico Lúcio Aneu Sêneca ( 4 aC - 65).
   Conta-nos Marilena Chauí, em "Introdução à História da Filosofia" - volume 2 - As escolas helenísticas:
   "Sêneca se dispõe a educar o príncipe: escreve o Da clemência, na expectativa de fazer de Nero um homem virtuoso. Com esse tratado, Sêneca inaugura um gênero político-literário que só desaparecerá com a obra de Maquiavel: o espelho dos príncipes ou a formação do governante virtuoso do qual dependerá a virtude da cidade e dos cidadãos. Esse gênero de discurso tornar-se-á, a partir da Idade Média, o fundamento da teoria política do Bom Governo, definido pelo conjunto das chamadas virtudes principescas (clemência, constância, magnanimidade, justiça, liberalidade, fortaleza, coragem)."
   É certo que o nosso querido florentino subverte a ordem das coisas, deixando de ditar ao governante as "virtudes principescas" - que formariam o "ideal" do bom governante -, para apresentar-lhe a realidade dos fatos, incentivando-o, isso sim, a agir em conformidade com as circunstâncias políticas efetivamente dadas e não segundo aqueles padrões de valores meramente desejados pela imaginação.
   Importante lembrar que, se para o estoico "a política é uma expressão da ética", para o florentino, política e ética/moral são duas instâncias autônomas.
   Talvez o "imperador maluquinho" Nero preferisse Machiavelli a Sêneca como "amigo de César".

"100 obras-chave de Filosofia" (2)

   PROBLEMÁTICA:

   Retomando a questão central do Tratado da Reforma do Entendimento, a ideia é compreender como elevar sua natureza a uma maior perfeição.
   Espontaneamente tomada em determinações que lhe escapam, é a passividade, tanto a do corpo como a do espírito, que marca a condição natural do ser humano. A servidão é primária e se apoia no menosprezo das coisas. Inclusive, nenhuma sabedoria poderá elevar-se se não for ao mesmo tempo libertação. Mas, ao inverso, nenhuma libertação é pensável sem um trabalho especulativo que permita recuperar a natureza humana a partir do conjunto da natureza: "Não sabemos com certeza se é bem ou mal senão aquilo que nos serve verdadeiramente para compreender, ou o que pode impedir-nos de compreender" (IV,37)
   Daí um trabalho demonstrativo que parte do conhecimento de Deus (I), isto é, da natureza, constrói em seguida uma teoria geral do espírito (II) e dos afetos (III) para esclarecer a possível passagem da servidão (IV) à liberdade (V). Condição de possibilidade da liberdade, a apreensão da essências das coisas é ao mesmo tempo um fim sem restrições, uma vez que ela corresponde a um grau de atividade máxima cujo corolário é a alegria.

[TO BE CONTINUED!]

quarta-feira, 27 de julho de 2011

"100 obras-chave de Filosofia"

   O título do post é o mesmo de um livro publicado pela Editora Vozes, em 2010. Vale a pena adquiri-lo, pois ele permite um acesso ultra-rápido a determinadas obras... pelo menos para se ter uma ideia do seu conteúdo, antes de proceder à pesquisa mais séria, ou até à própria leitura da mesma.
   Só para se ter uma ideia, aí vai o conteúdo da parte referente à Ética de Spinoza:

   REFERÊNCIAS:

  Obra fundamental de sua filosofia, Espinosa (1632-1677) construiu durante anos esta exposição sistemática concebida segundo o método geométrico, isto é, sintético, onde definições, axiomas e postulados servem de base a um encadeamento de demonstrações filosóficas. Profundamente original, a Ética abala as concepções tradicionais sobre Deus e recusa a antropologia dos moralistas. Além disso, a obra critica a metafísica cartesiana, tanto por seu dualismo como por sua teoria do livre-arbítrio. Pelo fato de não se ter avaliado sua singularidade e sua complexidade, Espinosa foi tido durante muito tempo por um materialista ateu, negador da liberdade humana; é que não foi reconhecido o profundo trabalho de reelaboração de nossas categorias de pensamento, subentendido nestas páginas.

[TO BE CONTINUED!]


terça-feira, 26 de julho de 2011

Spinoza "neoestoico"

   Ouve-se, vez por outra, o adjetivo "neoestoico" ligado ao nome de Spinoza. Aliás, realmente, é mais fácil ouvir do que ver/ler essa vinculação.
   Se há algumas razões para estabelecer essa ligação, parece-me que há muitas outras mais para que ela não seja realizada.
   A partir de algumas considerações sobre o Estoicismo, pretendo comprovar essa minha opinião.
   Antes de entrar especificamente nesse possível "neoestoicismo spinozano", há que registrar que já existe na Filosofia a expressão "Neoestoicismo", com um significado preciso, o qual não remete certamente a Spinoza.
   A expressão parece ter sido cunhada por Calvino, no seu Institutio Religionis Christianae, de 1536, onde ele faz referência aos "novos estoicos", que estariam tentando reviver o ideal da "apatia", em vez da virtude cristã de receber heroicamente o sofrimento enviado por Deus, que seria uma espécie de teste.
    O termo, entretanto, ficou associado a um movimento que tentou reunir, nos séculos XVI e XVII, o Estoicismo e o Cristianismo, propondo um modo de vida baseado nessa união. Obviamente, algumas "partes" do Estoicismo tiveram que ser rejeitadas, especialmente aquelas que diziam respeito ao materialismo e ao determinismo, na Física.
   Figura central desse movimento foi o humanista Justus Lipsius, que, em 1584, apresentou a doutrina do Neoestoicismo no texto De Constantia. Outra personagem de destaque no movimento neoestoico foi Guilhaume Du Vair. 
   Sabendo do que não trata o "neoestoico" referente a Spinoza, no próximo post, discutiremos exatamente onde se encontraria esse possível Neoestoicismo spinozano.  
  

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Dia do Amigo

   Conforme lembrado pelo compadre Mundy, hoje é Dia do Amigo. Num blog chamado "Spinoza e AMIGOS", nada melhor do que comemorarmos juntos - nós os amigos, tanto de Spinoza quanto uns dos outros.
   Agora, mais do que a todos, há que se fazer uma saudação especial para um dos nossos amigos, o Guilherme, de quem eu esqueci o aniversário que ocorreu há pouco - neste último dia 18.
   Então, um abraço em cada um dos amigos... e dois, no Guilherme.
   FELIZ DIA DO AMIGO!

terça-feira, 19 de julho de 2011

"Década" significa...

   Como eu tenho escrito muito sobre Machiavelli, resolvi dividir minha ignorância com os amigos.
   Obviamente, a primeira coisa que li do florentino foi "O príncipe". Depois que me identifiquei com a percepção realista da política dele, passei a ler mais sobre este pensador italiano. Passado algum tempo, li "Mandrágora" e "O arquidiabo Belfagor". Mais algum e folheei "A arte da guerra".
   Parei por aí... mais por falta de tempo do que por desinteresse.
   Fato é que, em qualquer texto sobre o florentino, sempre via alguma referência aos "Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio". Se me livrei, logo nas primeiras leituras sobre Machiavelli, da falsa impressão de que "Tito Lívio" era um governante, e que o florentino estava falando dos discursos proferidos pelo tal sujeito - "Aaaai, Santa Ignorância!" -, descobrindo logo que Tito Lívio fora um historiador italiano que vivera entre 59 aC e 17 dC, e que os "discursos" eram os comentários de Machiavelli sobre a História de Roma, contada pelo seu conterrâneo, restou-me algo ignorado, que só fui descobrir esses dias.
   Comprei meu exemplar dos Discorsi, todo feliz. Abri-o. Fui lendo a Apresentação: "O historiador romano Tito Lívio nasceu... blá-blá-blá... Sua história de Roma compreende 142 livros, abrangendo um largo período... blá-blá-blá... Dessa obra, habitualmente dividida em DÉCADAS, ISTO É, CONJUNTO DE DEZ LIVROS, só conhecemos o texto integral de 35 deles, inclusive A PRIMEIRA DÉCADA, que vai da fundação (ab urbe conditia), por volta de 750 aC... até o ano de 294 aC..." e por aí vai.
    Portanto, uma "década" contém, nesse sentido, aproximadamente 460 anos! Isto porque a "década" em questão é a divisão de dez em dez livros. E a primeira divisão cobre quase 460 anos da História de Roma.
   Ufa... livrei-me de mais um "buraco negro da ignorância"! Confessar isso me deixou mais leve. Rsss. Obrigado a quem me lê. Rsss.


"10 Lições sobre Maquiavel"

  Gostaria de registrar, em separado, aquilo que chamei de "conclusão", no livro de Vinícius Soares de Campos Barros.
   Antes, porém, devo fazer a ressalva de que há um capítulo intitulado "A religião como instrumento do Estado", que nos remete ao assunto abordado no post "eSPINzofrenia...". Nesta "lição", inclusive, o professor Vinícius S. C. Barros responde a uma questão muito discutida "Maquiavel era ateu?".
   Vejo, constantemente, os mais apressados responderem afirmativamente. Mas teremos que ver que tipo de "ateísmo" está em jogo. Se este disser respeito às doutrinas formais da Igreja romana, certamente a resposta será "Sim, Machiavelli era ateu!". Entretanto, poderíamos pensar em um Machiavelli simplesmente anticlerical, mas não necessariamente "ateu", como um "crente na inexistência do Deus judaico-cristão".
   Mas isso é papo para outro post. Vamos, então, à "conclusão"!
  Lá se explica a tese de que Machiavelli era realmente um republicano, apesar do que lemos na sua obra mais divulgada, "O príncipe". Até porque, esta perderia em conteúdo para os chamados "Discursi", os "Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio", onde a defesa da República está fortemente bem estabelecida.
   Citando o autor, então:
   "Chegamos neste ponto a algumas conclusões que enfeixam todas as ideias até aqui explicitadas: Maquiavel é um republicano e patriota que admira a ideia de um Estado livre, porém - a fim de alcançá-lo - constrói em O príncipe a figura de um ditador de transição - do príncipe novo - capaz de unificar sua pátria, dotá-la de leis justas e preparar o porvir republicano; essa figura ditatorial é inspirada na instituição da ditadura romana, que era acionada - em situações excepcionais - a fim de, subtraindo direitos e liberdades, manter a paz e assegurar a salvação pública; essa instituição republicana da Antiguidade Romana, que é um modelo para nosso autor, seria a inspiração do que conhecemos modernamente como Estado de Sítio, Estado de Exceção, Lei Marcial, etc.
   Portanto, O príncipe trata da excepcionalidade daquele momento por que passa a Itália e que requer o uso da força a fim de instaurar uma ordem estatal moderna, estável e segura. Já os Discursos sinalizam para a real propensão política de nosso secretário: a defesa intransigente do viver livre sob os auspícios de um república bem-ordenada. A primeira obra retrata o presente - uma situação de crise - e almeja uma solução; a segunda, fala de estabilidade e pujança, logo, do passado e do futuro. Do passado grandioso da antiga República Romana e do futuro desejado por Maquiavel para a sua Itália. O príncipe, assim, traduz seu frio realismo; os Discursos, seu idealismo cívico e comovente."
   Fantástico!

Machiavelli e Foucault

   Quem se interessou pelo post porque pensou, a partir do seu título, que eu traçaria paralelos entre as Filosofias Políticas de Machiavelli e Foucault, pode desistir... pelo menos por enquanto.
   Escrevo basicamente para dizer que concluí a leitura de dois livros, um sobre o florentino, outro sobre o francês, que achei ótimos.
   Ambos são pequenos na extensão, compartilhando também a característica de serem formados por artigos não necessariamente conectados por uma ordem que precise ser rigorosamente seguida.
    Aconselho ambos para aqueles que quiserem se aproximar tanto do pensamento de um filósofo quanto do outro. Leves no quesito "leitura", têm a qualidade de possuírem bastante conteúdo... apesar de algumas diferenças específicas.
   O livro "Como ler Foucault", de Johanna Oksala, foi publicado pela Zahar, agora, em 2011, é composto por dez artigos que, com as limitações do formato, cobrem todos os "três Foucaults" - o arqueologista, o genealogista e o ético-político.
   O primeiro dos artigos, intitulado "A liberdade da filosofia" descreve Foucault respondendo à pergunta que já fizera várias vezes, considerada por ele mesmo, a "questão essencial da filosofia", que era "Qual é a natureza do presente?". O livro indica que "Ao responder, Foucault revela entender que a filosofia abre um espaço para a liberdade. O papel do intelectual é expor novos modos de pensamento: fazer as pessoas verem o mundo à sua volta sob uma luz diferente, pertubar seus hábitos mentais e convidá-las a exigir e instigar a mudança. O intelectual não é a consciência moral da sociedade, seu papel não é emitir julgamentos políticos, mas nos libertar, ensejando maneiras alternativas de pensar". 
   Gostei dessa! Depois postarei outras deste livro.
   Desse mesma coleção "Como ler...", há um livro sobre Lacan, escrito por ninguém mais, ninguém menos que Slavoj Zizek.
   Já o livro sobre Machiavelli faz parte de outra coleção de livros, todos no formato "bolso". Trata-se da coleção "10 lições sobre...". 
   O "10 lições sobre Maquiavel" é escrito por Vinícius Soares de Campos Barros, publicado pela Editora Vozes, no ano de 2010.
   Grata surpresa ter um livro contendo tantas referências à pesquisa bibliográfica como este, num formato tão "palatável". O livro não é, em absoluto, um conjunto de recortes. Muito pelo contrário: o texto é bem concatenado pelo autor, mas recebe uma fundamentação muito forte e precisa nos apelos que faz a comentadores já estabelecidos e, principalmente, aos próprios textos do florentino.
   Coincidentemente, com relação ao livro citado antes, são dez artigos - como o próprio título indica. Os textos tratam desde o cenário renascentista até de conceitos específicos da filosofia macheavelliana - como "verdade efetiva" e "virtùfortuna". 
   O ponto alto do livro, entretanto, é sua "conclusão" - que, na verdade, aparece antes do que o autor efetivamente intitula "Conclusão" . Chamei de "conclusão" em função de me parecer ser a conclusão em relação à tese apresentada pelo próprio autor. O que ele chamará de "Conclusão" será, em realidade, a explicação de como se deu a recepção da doutrina de Machiavelli, desde o seu tempo e, depois, através dos séculos que se seguiram à sua morte.
   O livro é excelente. Eu só faria uma pequeníssima ressalva quanto à escolha de uma palavra - uma única "palavrinha" - para traduzir "politeia", uma das formas de governo puras de Aristóteles. O professor Vinícius Barros optou por "democracia". É verdade que essa é uma forma corriqueira de traduzir politeia, mas não é a melhor. Na ausência de uma boa escolha, que parece se configurar com o uso da palavra "constituição", haveria a opção pela simples transliteração do grego, usando politeia mesmo.
    É preciso registrar que se para nós, hodiernos, "democracia" significa a melhor das formas de governo possíveis, para o Estagirita, esta seria uma das três formas corruptas - tirania, oligarquia e democracia. Muitos, por essa simpatia que devotamos à democracia, no seu sentido atual de "governo de participação mais ampla da sociedade", usam, para as três formas puras "monarquia, aristocracia e democracia", modificando as três corruptas para "tirania, oligarquia e demagogia/oclocracia".
    De minha parte, ainda prefiro registrar "monarquia, aristocracia e politeia".
   Fora esse mínimo, quase imperceptível detalhe, que faz parte do critério de escolha do autor, mas não significa, de modo algum, um erro, o livro é nota dez!
   Por uma pequena quantia, estão garantidos os acessos privilegiados aos pensamentos de Foucault e de Machiavelli.
   E... boa leitura! 
 

eSPINzofrenia... (2)

   Poucos dias depois daquela primeira conversa narrada no post anterior, encontro casualmente o professor Serra.
   Ele vindo de lá, eu indo de cá. Cumprimento-o. Trocamos algumas palavras de apreço e ele fez um comentário muito engraçado. Disse-me que, assim que me viu, lembrou-se de um quadro chamado "Spinoza caminhando", pois eu estaria com o mesmo "ar reflexivo" representado na pintura.
    Brincamos, então, sobre o fato de eu estar tão ligado mentalmente a Spinoza que meu corpo - de cuja alma é a ideia -estaria se tornando mais próximo ao dele. Rimos juntos, e eu disse que antes "internalizara" Spinoza, e que agora estava a "externalizá-lo". Despedidas feitas, segui caminhando, à la Spinoza, talvez.
     Resolvi o que tinha que resolver e, assim que pude, fui procurar conhecer a tal pintura. Ei-la abaixo.
  Igual, igual mesmo, só o livro sob o braço... e, com um máximo de boa vontade, a postura e o ar compenetrado.
  Espero que não houvesse ninguém tão aterrorizado com minha presença, quanto aqueles que se espremem ao fundo da pintura.
  De qualquer forma, se não posso parecer intelectualmente com Spinoza, que seja, pelo menos, fisicamente.
   Agora, cá entre nós, professor Serra, a cabeleira do Spinoza certamente é um ponto que não me aproxima a ele! Rsss.


   

eSPINzofrenia...

   Dia desses, senti-me meio estranho, durante uma conversa com o insuperável professor Serra - não aquele do PSDB; até porque esse  de quem falo simpatiza mais com a Dilma.
   Sabedor de que sou um spinozano "convicto", o "polímata filosófico" Serra perguntou-me como iam minhas pesquisas sobre o luso-holandês. Informei-lhe que estava estudando mais profundamente o Estoicismo, para ver até que ponto realmente vão as semelhanças com Spinoza, que, inclusive, motivam muitos a dizerem que ele seria um "neo-estoico".
    Satisfeita a curiosidade de Serra, retomei um bate-papo anterior sobre Foucault como sociólogo e emendei: "Mestre, estava lendo sobre Durkheim, e achei coincidências com Spinoza em relação a alguns fatos". Ele me olhou de modo curioso, e antes que dissesse qualquer coisa, apresentei as tais "coincidências".
   Vejamos.
   Ambos nasceram em famílias judias e, ao que parece, estudaram para o rabinato. É verdade que, no caso de Spinoza, hoje em dia, já se questiona isso. De qualquer forma, ainda faz parte do "senso comum filosófico" que ele teria tido um início de preparação para tornar-se rabino.
   Além disso, Durkheim e Spinoza, embora em épocas diferentes de suas vidas, teriam abandonado a crença numa religião formal. Mesmo assim, o fenômeno religioso interessava a ambos. Durkheim chegou a ver a religião como uma chave para a compreensão da vida social. Em seu "Formas elementares da vida religiosa", indica que "certas representações coletivas 'sagradas'... servem à função de dar aos membros da sociedade uma identidade comum e favorecer a fidelidade". Não há como deixar de ouvir Spinoza "dizendo", na Introdução do "Tratado Teológico-Político", que "as leis reveladas por Deus a Moisés não eram senão o direito particular do Estado hebraico". Uma comparação leve, dá-nos a entender que ambos julgam a religião como fenômeno que mantém a trama social íntegra - seja sob o nome de "sociedade", em Durkheim, seja de "Estado", em Spinoza.
   A noção de "consciência coletiva" de Durkheim, em alguma medida, remete a uma certa falta de "livre-arbítrio", tese marcante - e muito problemática - em Spinoza. É certo que a noção durkheimiana não dá conta de todo o alcance da proposta spinozana. Se para o francês está se falando de um "determinismo psicológico", ditado por uma construção social, o luso-holandês radicaliza seu ponto de vista, tratando mesmo de um "determinismo metafísico".
   Em Durkheim, a ideia de "solidariedade orgânica" - aquela em que a divisão de funções numa sociedade estabelece uma solidariedade entre os indivíduos-componentes da mesma -,  que acaba por comparar o "todo", que é a  sociedade, a um organismo vivo, lembra, em certa medida, o que é a sociedade para Spinoza, visto que ele também percebe o "todo" como um ser vivo, com seu próprio conatus - aqui, um "conatus social", diria eu.
   Nem me lembro se fiz mais aproximações entre ambos. Mas parei, em determinado ponto. Vi o mestre olhando-me com um ar pensativo. Logo em seguida, ele disse algo como "Quando nos apaixonamos por algum pensador, vemos traços de suas ideias em vários lugares". Não pude deixar de concordar que é o que faço mesmo.
   Seguimos a conversa, com um viés mais específico: o judaísmo de Durkheim e Spinoza.
   Concluímos que outros pensadores judaicos, talvez por suas experiências pessoais no interior da comunidade, quando têm que "dialogar" com o mundo "extra-judaico" - seja ele secular ou cristão, por exemplo - parecem sempre colocar em perspectiva o fato de que a religião é algo fundamentalmente "organizador" da sociedade. Ou seja, esse não seria um ponto de vista deste ou daquele pensador exclusivamente, mas uma espécie de estofo comum a todos os egressos do Judaísmo.
    Pode ser verdade... mas o fato é que está nos dois; e que ambos têm alguns pensamentos que se "arranham", pelo menos.
   O fato é que saí da conversa com aquela afirmação - "Quando nos apaixonamos por algum pensador, vemos traços de suas ideias em vários lugares" - martelando minha cabeça. Surgiu, então, uma "preocupação": Será que estou vendo o mundo todo sob "óculos" spinozanos? Essa gerou outra questão: Será que estou "eSPINzofrênico"?
    Reflexões de cá; reflexões de lá... cheguei a uma "conclusão-diagnóstico": Estou eSPINzofrênico!
   Mas será que isso é realmente ruim? Enquanto uma espécie de "doença", certamente sê-lo-ia. Mas o que propõe um filósofo senão uma certa "visão de mundo", ou, talvez mais contemporaneamente - depois de Nietzsche, a Fenomenologia e etc. - uma "visada do mundo". 
   É essa "visão de mundo" proposta pelo filósofo que, ao fazer sentido para quem dela toma conhecimento, nos faz aderir ao seu "sistema" - por menos sistemático que ele possa parecer.
    Enchi o peito, ao final da minha reflexão, e gritei: "Eu sou um eSPINzofrênico!".   

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Lembrei-me do Nietzsche... também

   Além do Silvério, a leitura de "O amor", de Sponville, à qual já me referi no post anterior, evocou-me a memória de Nietzsche.
   A passagem é pequena, mas me fez lembrar fortemente a "transvaloração de todos os valores" nietzscheana. Foi quando Sponville escreveu "Somente um sábio pode prescindir da moral. Somente um louco pode pretender prescindir dela".
   Para não ser totalmente injusto com Nietzsche - evitando que alguém pergunte se, afinal, ele era sábio ou louco; e eu tenha que optar pela segunda hipótese -, há que se reconhecer que ele pretendia fundamentalmente opor-se à "moral de rebanho", plenamente efetivada, segundo ele, pela "moral cristã", instaurando a "moral do nobre/do cavaleiro/do senhor", cujos valores são baseados na "potência" realizadora e não na "impotência" submissa.

Lembrei-me do Silvério...

   O título do mais recente livro de André Comte-Sponville é "O amor". Este filósofo francês, nosso contemporâneo - todos os amigos sabem -, é um dos meus preferidos. É bem verdade que seu trabalho de divulgador da Filosofia é muito mais famoso do que aquele de pensador original, como o que se refere ao conteúdo das obras "O capitalismo é moral?", "O ser-tempo", "Tratado do desespero e da beatitude" e "A felicidade, desesperadamente", por exemplo, entre outros mais. Mas talvez seja justamente esse "duplo acesso" ao terreno da Filosofia que ele nos disponibiliza aquilo o que corresponde ao seu maior mérito.
   Esse livro tem uma grande curiosidade: está sendo publicado antes em Português - aqui no Brasil - que no idioma natal de Sponville. Ou seja, temos um texto de um francês cuja primeira edição mundial se dá no nosso "tão íntimo" Português. Originalmente, tratava-se de uma longa palestra sobre o amor, proferida em francês por Sponville, disponível em CD, lá na França. A Editora WMF Martins Fontes - a quem agradeço entusiasticamente! - pediu, então, que ele produzisse uma versão escrita da mesma. O autor reviu a transcrição e fez algumas alterações, compondo justamente o que temos à nossa disposição.
   Feitas essas considerações pré-textuais... adicionando a elas o fato de que apenas li o "comecinho" do livro - pois ainda tenho dois outros para concluir -, vamos ao porquê de eu ter lembrado do nosso amigo Silvério.
   No último "Notas Filosóficas", Silvério falou da moral kantiana, aquela "famosa" - e, para mim, inaceitável - moral deontológica. Como sempre, as apresentações - tanto do Silvério, quanto do Caetano Veloso, a quem nosso querido professor "convidou", via vídeos, para conduzir musicalmente o tema proposto - foram ótimas. Mas isso já não é novidade. A "novidade" foi quando, ao ler "O amor", vi uma tese semelhante à levantada por Silvério: "Quando existe amor, já não é preciso preocupar-se com a moral... já não há dever".
   A tese é muito interessante, mas os argumentos são mais ainda.
   Sponville, com mais espaço do que Silvério, pode começar propondo que "O amor não é um dever", para, depois disso, tomar a explicação de Kant de que "o amor é uma questão de sentimento e não de vontade". O francês mostra, apoiado no alemão, que "não se pode ordenar um sentimento". Um exemplo bem simplório é evocado para confirmar isso. Sponville faz o leitor imaginar que, como pai zeloso, dá espinafre ao seu filho. Este recusa-o dizendo: "Não gosto [não amo] espinafre!". Sponville mostra que não há sentido o pai retrucar: "Ordeno que você goste [ame] espinafre!". É verdade que ele poderia dizer "Ordeno que você coma espinafre!"; afinal, uma ação é passível de um comando, ou seja, de uma expressão da vontade.
   Sponville dá um exemplo a mais. Mas penso que já deu para captar a ideia.
   Nosso pensador escreve, então: "Eis o problema: se o amor não é um dever, se o amor não pode ser ordenado, que sentido pode ter o mandamento evangélico 'Ama ao próximo como a ti mesmo'?".
   Sponville vai então pensar nesse mandamento como representando um "amor prático". O que se espera, segundo ele, é que se aja "como se amássemos, quando o amor está ausente". Conclui nosso autor, então, que "a moral é uma aparência de amor". Afinal, escreve ele: "É forçoso reconhecer que, quando saímos do âmbito da família [pouco depois, Sponville incluirá os amigos mais próximos também], amar é nos pedir demais. Foi por isso que se inventou a moral".
   Silvério - e Sponville, penso, concordaria - propõe que a saída para não nos sentirmos apenas "seres de deveres" - a expressão é minha, mas franqueio-a ao questionamento do próprio Silvério, caso ele imagine que ela não expressou bem sua própria ideia - é o "amor". Ainda que não possa ser "aqueeeele amor" que sentimos por nossos pais ou filhos, será, pelo menos, um "amor prático".
   Assim, se for verdade que "Quando existe amor, já não é preciso preocupar-se com a moral... já não há dever", produziremos um mundo bem melhor de se viver... sem nem a necessidade da moral e do dever.

"Confessional"

   Já há algum tempo, li uma coluna de José Castello, no caderno Prosa & Verso, do jornal "O Globo", que me chamou muito a atenção. Logo após a leitura, pensei em descrever o lido aqui no blog. Mas, tempo vai, ocupações vêm, e não realizei o pensado. Ponho, entretanto, agora, a fazê-lo. Não sem antes dizer que lembrei imediatamente da nossa amiga Maria, esta lusitana que, além de professora de História, é muito envolvida com teatro... incluindo a produção de peças com seus alunos.
    Pois bem, o fato é que José Castello contava que, em 1990, encenou-se uma peça sobre a vida de Van Gogh, sob a direção de Márcio Vianna. Nada estranho, até aqui. Afinal, o "atormentado" pintor mereceria estar presente em várias "mídias" culturais.
    A curiosidade é que a peça, de nome "Confessional", tinha duas versões. Na primeira, apresentada num teatro em Copacabana, os treze atores conduziam pessoalmente os espectadores da peça - que também eram apenas treze - aos seus assentos, que, depois, eles percebiam simular a parte interna de um confessionário. Como confessor, o espectador ouvia o que dizia cada um dos personagens - o próprio Van Gogh, seu irmão Téo, seus pais, o psiquiatra Paul Gachet, etc. - contando suas experiências pessoais do e na relação com o pintor.
   Encerrado esse primeiro momento, os espectadores tinham vivenciado uma exposição fragmentária, e até mesmo contraditória, do pintor.
   As luzes se acendiam e os atores, com seus trajes de época, conduziam os espectadores até um ponto de ônibus, onde estes tomavam um veículo que os levava até um outro teatro em Ipanema. Aí, eram colocados em seus assentos, e assistiam aos mesmos atores apresentando, agora numa versão clássica, oficialmente consagrada pelos biógrafos, outra peça sobre a vida de Van Gogh.
    José Castello escreve que "os espectadores sentiam um grande desconforto, quando não irritação, diante daquela impecável encenação... [pois] a narrativa realista expunha, de modo escandaloso, seus aspectos não só artificiais, mas fraudulentos".
   Imaginem que experiência estética maravilhosa participar de uma montagem assim.
   Que tal a dica, minha querida amiga Maria?   

Heinrich Heine

  Heinrich Heine (1797-1856) é chamado de o "último romântico". Este poeta alemão, além da sua qualidade literária, se destacou pelo engajamento social e político.
  Suas críticas à sociedade alemã valeram-no um exílio na França, para onde havia ido, inicialmente, de modo voluntário. Heine, que liderava um grupo chamado "Movimento da Jovem Alemanha de 1835", era tido, pelas autoridades alemãs, como um subversivo, tendo sofrido censura de vários de seus textos.
   Conheceu Marx e Engels. Aliás, a ideia de que "a religião é o ópio do povo", estabelecida por Marx na Crítica da filosofia hegeliana do Direito, de 1844, já aparece, em certa medida, na obra de Heine, em 1840, quando ele, um crítico mordaz da religião, escreve: "Bendita seja uma religião, que derrama no cálice da humanidade sofredora algumas doces e soporíferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, fé e esperança".
    Apesar de sua crítica à religião, converteu-se ao Luteranismo próximo dos 28 anos de idade. Aliás, isso envolve uma curiosidade sobre seu nome. Ele foi batizado como Harry Heine e, quando da sua conversão, adotou o nome de Christian Johann Heinrich Heine.
   Em relação às citações marcantes, deixou outra bastante famosa: "Aqueles que queimam livros, acabam cedo ou tarde por queimar homens".
    Além desta, outra da qual eu gosto muito, e que poderia ter vindo da pena de um filósofo, é: "Larga as parábolas sagradas,/ Deixa as hipóteses devotas/ E põe-te em busca das respostas/ Para as questões mais complicadas".

terça-feira, 12 de julho de 2011

Michel Foucault

   Nestes últimos meses tive que me dedicar ao pensamento de Michel Foucault. O francês, nascido em 1926 e morto em 1984, foi um dos pensadores mais influentes do século XX, com uma produção que cobre diversas áreas.
   Querido por muitos, ele é igualmente detestado por outros tantos.
   Se não dá para aderir pacificamente a todas as suas propostas, algumas parecem ser bastante "lúcidas". Eu citaria algumas destas últimas: (i) as "verdades" são históricas e dependem do "solo epistemológico" de determinada época para se estabelecerem como tal; (ii) para que um determinado conhecimento se estabeleça como "verdadeiro", outros tantos são "silenciados", permanecendo como "saberes sujeitados"; (iii) vivemos uma época em que as "ciências" são considerados os únicos "saberes" válidos; (iv) este nosso tempo também é uma época da "normalização" - onde, a partir do estabelecimento do que é "normal" ou "anormal", classificam-se os indivíduos -; (v) o poder gera saber e o saber é um dos instrumentos de atuação do poder e (vi) em alguma medida, o indivíduo é produzido pela "norma".
   Existem diversas outras mais dessas... como também há aquelas ideias mais problemáticas, que são criticadas por pensadores de peso, como Jürgen Habermas, por exemplo. Uma crítica forte vem do intelectual palestino Edward Said - cuja própria obra se apoia bastante nas ideias de Foucault - que destacou que "a história não é um território francês homogêneo", e também que "a disciplina [o poder disciplinar] também foi usada para administrar, estudar e reconstruir - e, subsequentemente, ocupar, governar e explorar - quase todo o mundo não europeu".
   O mais importante, entretanto, é dar-se ao trabalho de ler o pensador francês, a fim de perceber o que há de bom nele.
   De qualquer forma, foi bastante interessante o desdobramento desse estudo para mim, que foi a aproximação à Sociologia. E aí surge a pesquisa, por exemplo, de Durkheim.
   Em breve, falo mais sobre isso.    

Ainda sobre "Filosofia - ciência & vida" nº 60

   Numa parte dedicada à Literatura, na revista citada no título do post, a professora Ana Maria Haddad Batista escreve o artigo "Temporalidades esvaziadas". A professora Ana fala do "desmoronamento dos valores" e da "abundância de desmemórias", no seu texto. Em determinado momento, a autora introduz a ideia da necessidade da Filosofia, como meio de "pensarmos em coisas que nunca havíamos cogitado". Depois de citar alguns pensadores, chega ao nosso querido Spinoza. Escreve, então: "Espinosa, via Marilena Chauí e outros grandes pensadores, não traz em suas obras uma dimensão política, definitivamente, para ser colocada na prática de cada um? Na prática das relações? Na prática de nosso trabalho e de nossa forma de ser? O que dizer das paixões em Espinosa? Como desmascarar os tiranos, as submissões, a escravidão, a falta de liberdade em todos os sentidos, se não fosse Espinosa? Como potencializar nossas ações sem Espinosa?".
   Quando pensamos na poderosa Metafísica spinozana, parece não haver espaço para uma absorção existencial do pensamento do luso-holandês. Mas a verdade é que a filosofia spinozana engloba essa dimensão, não sendo à toa, inclusive, que sua opus majus, se chama "Ética". É necessário entender Spinoza como alguém que nos fala fundamentalmente sobre nossa realidade existencial, sobre aquilo o que somos, e que as ferramentas metafísicas que ele utiliza são parte da caminhada até esse "comportamento" prático, esse ethos, que se materializa numa ética quotidiana.
   Por último, aparece, no texto da autora, uma imagem de Spinoza que eu não conhecia, a qual reproduzo abaixo.

Baruch Spinoza (a statue in the Ralli museum yard, Caesarea)




Amauri Ferreira

   Fiquei satisfeito em ler no último exemplar da revista "Filosofia - Ciência & Vida", a de número 60 - com a qual se comemoram os cinco anos da publicação -, que Amauri Ferreira, cujo blog consta na página principal deste nosso espaço, como um local que merece ser acompanhado, apresentou em 04 de junho a palestra gratuita "Corpo e pensamento em Nietzsche e Spinoza".
   Aliás, esses dois, Nietzsche e Spinoza, têm andado muito juntos, ultimamente. Rsss.
   Parabéns, Amauri!

Niccolò Machiavelli

   Impossível falar de política - principalmente no Brasil - sem pensar em Machiavelli. Esse florentino brilhante pensou a Política como algo real e não como um ideal. É verdade que é muito mal entendido, tendo seu nome sempre associado a algo pernicioso.
   Hoje em dia, sabemos que a recepção negativa de Machiavelli se deve basicamente a alguns enganos, que, uma vez corrigidos, mudam radicalmente a percepção que dele temos. A primeira correção de "curso" que devemos fazer é lê-lo como alguém interessado em unificar seu país, e não como um aproveitador, pronto a se aproximar de quem quer que subisse ao poder. Depois, devemos entender que Niccolò era republicano, sendo sua defesa de uma monarquia, em "De principatibus", apenas uma etapa provisória nesse processo de unificação pretendido para o que viria a ser a Itália.
   Lido com cuidado, Machiavelli é bastante coerente. Ele não ensina ninguém a ser "vilão". O que ele faz é um diagnóstico preciso do funcionamento efetivo do "mundo da política". A partir desse diagnóstico - sempre tendo em mente o objetivo a ser alcançado -, ele propõe as ações que são realmente operantes nesta realidade em que vive - alías, em que vivemos até hoje.
   Peguei a dica, lá no blog do amigo Roberson Marcomini, o "Nicolau Maquiavel", do lançamento do livro "Maquiavel ou A confusão Demoníaca", de Olavo de Carvalho. Uma mente brilhante - embora "polêmica"- comentando outra - que, infelizmente, foi absorvida, também, como polêmica.


   Aliás, aproveitando o post, começo hoje um minicurso sobre o pensador político florentino, na Casa do Saber da Lagoa, com Júlio Pompeu, o autor de "Somos maquiavélicos". Aguardem comentários...

Nietzsche pouco nítido

   Como eu postei há algum tempo - um pouco antes de eu desaparecer mais uma vez -, participei de um simpósio sobre Nietzsche.
   Num evento assim, normalmente, só são apresentados trabalhos que "dizem amém" para o pensador que motiva o tal simpósio. Mesmo uma opinião heterodoxa, se aparece, normalmente vem de um profundo estudioso do pensador tematizado, referindo-se usualmente a apenas mais uma leitura possível do mesmo. Nesse sentido, lembro-me até de uma comunicação que ouvi, no I Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche, ocorrido em 2006, em que se apresentava "a transcência em Spinoza". Nem preciso dizer a enxurrada de questionamentos que nosso comunicador recebeu. Bem, ainda sobre Spinoza, eu mesmo escrevi recentemente o artigo "O 'empirista' Spinoza" - e, apesar de aparentemente "esquisito", acho até que o luso-holandês ficaria satisfeito com o que leria no texto. Rsss.
   Mas, dessa vez, vou comentar algo sobre Nietzsche. Trata-se do segundo dia do simpósio. Neste dia, tivemos como palestrantes matutinos, ninguém menos que Gilvan Luiz Vogel, da UFRJ, e a fantástica Maria Cristina Franco Ferraz, da Uff. À tarde, ouvimos Vânia Dutra de Azeredo, da PUC-Campinas, e Sílvia Velloso Pimenta Rocha, da Uerj. O interessante foi que os temas da parte da manhã e da tarde se encaixaram tão perfeitamente, que fecharam um dia "perfeito" no evento. O tema da manhã era "Interpretação" e o da tarde "Perspectivismo".
   A professora Maria Cristina nos brindou com um texto fluente sobre as três metamorfoses do espírito - camelo, leão e criança - no "Zaratustra", dando-lhes uma interpretação bastante interessante.
   O professor Gilvan Vogel não levou texto pronto, apenas aforismos de Nietzsche, que leu, para colocar em questão o tema da realidade como interpretação.
   À tarde, a professora Vânia de Azeredo, tratou do perspectivismo comparando-o com as "visadas" de um modelo a ser representado por desenhistas, e a professora Sílvia Pimenta, em certa medida, retomou o desenvolvimento da palestra anterior para conduzir seu pensamento.
   Comunicações feitas, passamos à parte dos questionamentos. E, agora, é que se explica o "trocadilho" aludido no título deste post. Isso porque os próprios nietzscheanos se digladiam tentando dar sustentação a algo tão pouco nítido quanto o pensamento de Nietzsche.
   Primeiramente, é difícil explicar que a realidade é composta, não de fatos, mas apenas de interpretações... ainda que não haja "interpretadores". Além disso, se só existem interpretações - mesmo que sem interpretadores - todas elas são igualmente válidas?
   O problema é que perguntar pela "validade" de uma interpretação já implica reconhecer uma "verdade" objetiva à qual aquela interpretação diz respeito de modo adequado. Mas, lembremos, não há "a verdade", para Nietzsche.
   Mas se todas as interpretações devem ser igualmente tidas como válidas, já que não há um "Critério Objetivo de Verdade", por que não pensarmos, por exemplo, que Nietzsche era alguém inconsequente, sem pretensão nenhuma de filosofar?
   Calma, calma! Eu não estou afirmando isso! Eu só pondero que essa também é uma interpretação... e, se estas é que compõem a realidade, a realidade está nela também.
   Um questionamento que se mostrou difícil de contornar, foi o de que Nietzsche poderia estar dando "munição" aos "revisionistas", que negavam a existência do Holocausto, na II Guerra Mundial. "Absurdo!", gritariam alguns. Mas se não há fatos, só interpretações, por que as interpretações dos judeus deveriam ter mais valor que a dos nazistas?
   Várias tentativas foram feitas de explicar o "inexplicável"... ou - para continuar com a semelhança de sonoridade - o pouco nítido em Nietzsche.
   Esse tema se desloca levemente quando falamos do "Perspectivismo". Mas aí também continua como pano de fundo.
   A professora Vânia, por exemplo, ao comparar as diferentes visadas de um mesmo modelo para diversos pintores, parece acabar por afirmar, mais aos moldes da Fenomenologia husserliana que propriamente do Perspectivismo nietzscheano, que há "algo" - uma espécie de "coisa em si", com uma essência específica - que se "dá a ver" fenomenicamente através de diversos "perfis" - o termo é da Fenomenologia -, isto é, através das diversas "perspectivas" - aí sim, nietzscheanamente falando.
   "Absurdo!", gritariam os mesmos que já se manifestaram antes. Eu até tendo a concordar que não foi exatamente isso o que Nietzsche quis dizer, mas... lá estava uma nietzscheana a dar a sua "interpretação", ou olhando por mais uma "perspectiva" possível.
   Se todo filósofo constrói um corpus tido como ortodoxo, Nietzsche, ao questionar a validade de uma perspectiva sobre as demais, ou da consideração de uma interpretação como mais próxima ao "fato" - que, a bem da verdade, não existe, para o alemão - coloca como problema até mesmo a "opinião correta" - daí, "orto doxa" - sobre o seu pensamento.
   Conclusão: se nem os nietzscheanos se entendem sobre Nietzsche, quem sou eu para me atrever a fazê-lo?
  

Planeta Extremo

   No domingo passado, um dos quadros do "Fantástico" - programa semanal da TV Globo -, que é apresentado pelo repórter Clayton Conservani, o "Planeta Extremo", relembrou uma história de extrema emoção, ocorrida em 1972.
  Jovens de um time de rugby do Uruguai, acompanhados de parentes e amigos, viajavam de avião, para jogarem no Chile. Na parte argentina da Cordilheira dos Andes, o avião caiu. Eram 45 pessoas a bordo, das quais 29 morreram imediatamente. 
    Os sobreviventes não tinham roupas adequadas para enfrentar os - 30°C, restando-lhes, ainda, pouca água e comida. Em determinado momento, para quem não lembra, ou não conhece a história, acossados pela fome, eles tiveram que lançar mão de um expediente bastante "complicado": alimentar-se daqueles que não sobreviveram ao desastre.
   Contado assim, parece até óbvio que eles acertaram na decisão. Afinal, foi possível manterem-se vivos, e, aos mortos, pouca diferença faria essa "profanação" de seus corpos já inservíveis em si mesmos.
    Problema maior do que romper as tradições culturais que vetam o consumo de carne humana, parece-me, diz respeito ao fato de que havia um laço emocional com aquelas pessoas que já não tinham vida. Não se tratava, portanto, simplesmente de se alimentar de carne de um ser humano, mas de alguém que lhe era caro, sentimentalmente falando. Além disso, para aliviar um pouco a culpa que deveria pesar-lhes no coração, fez-se um pacto entre os sobreviventes, de que, se algum deles morresse, sua "contribuição" para com o grupo seria justamente a de servir-lhes de alimento.
   Decisão tomada e ação empreendida, em prol da manutenção da vida, alguns dos sobreviventes caminharam em condições absolutamente adversas, por cem quilômetros, até encontrarem alguém que os ajudou a se comunicarem com equipes de busca, as quais conseguiram resgatar os que ficaram aguardando próximo à fuselagem do avião.
   Um dos sobreviventes foi Gustavo Zerbino, então com 19 anos, que retornou ao local do acidente e deu uma entrevista emocionante ao repórter Clayton Conservani.
   Além de falar do acontecido e da memória dos amigos e parentes, ele jogou uma partida de rugby naquele frio todo, como uma homenagem aos companheiros que não sobreviveram.
   Conto tudo isso, apenas para registrar uma frase de Zerbino que me marcou muito. Disse ele: "Quem reclama da vida é quem está bem. Quem realmente está mal, cerra os dentes e vai em frente!".
   Lição para toda a vida! Obrigado, Gustavo Zerbino.