sábado, 27 de fevereiro de 2010

Marx e a "ideologia" (4)

  Continuando nossa "novela"...
  Joaos, no seu primeiro comentário ao segundo post da série, resume seu ponto de vista de que "Marx critica não a Declaração, mas a sociedade burguesa". Penso até que essa deveria realmente ser a ideia correta, mas não me parece ser o que Marx faz... e foi por isso que essa série de posts começou. Lá no primeiro post aparece o seguinte trecho do livro do jovem Marx: "... os chamados direitos humanos, os direitos do homem, ao contrário dos direitos do cidadão, nada mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade". Ou seja, para atacar o "homem egoísta" da sociedade burguesa, Marx se lança, sim, contra a tal "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", de 1789.
  É certo que não podemos ser descuidados e deixar de perceber que, para Marx, o aspecto jurídico vem "a reboque" da estrutura das relações econômicas - justamente a ideia de superestrutura e infraestrutura. Aliás, é o que bem destaca Joaos, logo em seguida ao trecho que já citei do seu comentário, quando diz: "... sociedade burguesa, sem a qual nem a Declaração e nem os direitos do cidadão existiriam nem funcionariam".
  Mas que continua para mim a impressão de que, ainda que sem intenção, Marx acaba por atacar a declaração em questão, isso continua!
  Mudando um pouco o enfoque desta postagem - e, com isso, passando a abordar o comentário do amigo Existenz, também ao segundo post da série -, eu diria que a pretensão de uma declaração "universal",  em seu sentido pleno, realmente é desmedida. A História nos mostra, já antes de Marx, que propostas de socialização dos bens modificariam um pouco a própria declaração. Aliás, quando eu falo em "já antes de Marx", poderíamos chegar até a "República", de Platão, que contém essa visão da ausência de bens particulares, incluindo-se até os filhos nesse rol de "coisas" comuns à sociedade.
  Existenz observa, de modo correto, que "os Direitos Humanos são social e historicamente situados". A pretensão, entretanto, é que se possa alcançar uma "amplitude" histórica que permita que várias sociedades possam se constituir segundo valores tidos - em diversos momentos específicos - como "bons". Nesse contexto, uma vez percebido por determinada sociedade que a propriedade particular não é algo que traga vantagens à convivência em sociedade, nada impede que se divulgue essa ideia, através de um documento de conteúdo semelhante ao da "Declaração...". O mesmo poderia acontecer com os outros "direitos fundamentais" elencados naquele texto... embora eu não ache que, mesmo dentro da nossa relatividade histórico-geográfica, desejemos que se eliminem os direitos à liberdade, à segurança e à resistência à opressão. Aliás, já houve diversos momentos, chamados "de exceção", em que esses direitos nos foram retirados; momentos contra os quais toda a História seguinte se insurgiu. 
  Penso que, se contextualizada e flexibilizada, a tal declaração continua sendo um grande avanço, podendo "ser eterna enquanto durar" - como se fala dos relacionamentos amorosos... em vez de "até que a morte os separe". Rsss. 


  Já que Joaos e Existenz falaram do tema "liberdade" nos seus comentários, a série continua...

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

"Que é filosofia?"

  Concluídas as leituras dos livros de Nelson Saldanha e de Mário Sérgio Cortella - este, com Yves de La Taille -, comecei "O que é filosofia?", do grande Jose Ortega y Gasset.
  O livro é indicado, pelo tradutor, que também escreve o Prólogo, como "o mais famoso livro de Ortega y Gasset". Pensa-se, obviamente, em apenas mais uma opinião. Entretanto, após citar nomes como o de Garcia Morente para fundamentá-la, ele registra que a obra "forneceu subsídios a Jose Ferrater Mora para a exposição do que vem a ser a 'ideia da filosofia' em Ortega". Os nomes em questão têm "lastro" para serem considerados como fidedignos.
  No Prólogo, cita-se Ortega y Gasset, que, em "A ideia do princípio em Leibniz e a evolução da teoria dedutiva", escreve: "A filosofia é um sistema de fundamentais atitudes interpretatórias, portanto intelectuais, que o homem adota em vista do acontecimento enorme que é para ele encontrar-se vivendo"... totalmente representativo do "raciovitalismo" orteguiano, não é?!
  Outro destaque para: "... a doutrina acerca da vida humana é a questão central na filosofia de Ortega, sem ser, porém, a única realidade do universo. Não é nem mesmo a realidade mais importante. É, simplesmente, ... a 'realidade fundamental'. É 'fundamental' (radical) no sentido de que todas as demais realidades - mundo físico, mundo psíquico, mundo dos valores - ocorrem dentro dela e pode-se ainda dizer que somente dentro dela são realidade. Portanto, ... cada vida humana... é, para Ortega, uma realidade sem a qual as demais careceriam de 'lugar' próprio e, consequentemente, ... de 'sentido ontológico'...".
  Essa foi boa, também... hein!
  Uma observação: temos, na pessoa do amigo Existenz, um verdadeiro "entendedor" de Ortega y Gasset. Eu evitei "especialista", pois pode parecer que sua percepção do mestre espanhol é meramente "livresca" e "tecnicista". Não, não é este o caso! Penso que Existenz conseguiu - quem sabe, através do "terceiro gênero de conhecimento" spinozano, a "ciência intuitiva"?! - captar a essência (e a "aparência" também. Rsss) do pensamento orteguiano.
  Ah... um detalhe a mais: se você, Existenz, não tiver este texto em Português, é só escrever aqui, pois o que tenho em mãos é justamente uma edição do "Livro Ibero-americano Ltda", de 1971... esgotadíííííssima, no nosso "lindo" Português!

"Carpe diem"

  É relativamente comum ver as pessoas falarem com muito entusiasmo "Carpe diem!". O "Colha o dia!", no sentido de "Aproveite o dia!" parece a comprovação da energia vital aplicada ao máximo.
  Mas o professor Mário Sérgio Cortella nos mostra uma outra perspectiva a esse respeito, em "Nos labirintos da moral".
  Ele diz: "Aquilo que eu entendo como o pior legado do mundo romano... é a noção do carpe diem, aproveite o dia, aproveite o hoje. Porque as pessoas esquecem que, quando os romanos elevaram o carpe diem a uma natureza de virtude, aquela sociedade já estava em decadência" - ou seja, é como um moribundo, a quem só resta "sorver" as últimas gotas de vida, não por heroísmo, mas por necessidade, diante do seu fim.
  O professor Cortella continua: "Esse não é o lema do século I a.C. (quando Horácio o escreveu nas suas odes), mas dos séculos III e IV depois de Cristo, quando o Império no Ocidente já começava a se esboroar. Na minha opinião, o carpe diem é, talvez, a mais negativa forma de estruturação de valores que se possa ter hoje, especialmente para os jovens. Por quê? Antes de mais nada, porque estamos dizendo aos jovens que não haverá futuro [...] Nós estamos lhes dizendo: 'Vivam o presente, Carpe diem". E essa é a lógica que leva uma parte dos jovens que conheço... a um nível de exaustão do dia. Eles vivem de forma desesperada, aqui no sentido de ansiedade obsessiva. Tudo é agora. Não existe a noção de tempo elástico, nem a de futuro. 'Mas essa pode ser minha última festa. Pai, eu tenho que ir, porque amanhã eu posso morrer. Eu preciso aproveitar a vida'. Creio que essa lógica de alguém aos 15 anos de idade dizer que precisa aproveitar a vida porque ela está se esvaindo como água pelo vão dos dedos é a pior contribuição que o mundo latino recebeu. Há jovens que, em razão disso, começam a consumir substâncias que teoricamente podem acelerar ou intensificar seu 'aproveitamento' - seja ingerindo bebidas alcoólicas em altas doses, seja usando substâncias que aumentariam a capacidade física, que são os energéticos. E aí eles têm de viver a noite como se fosse a última da vida, ficar com o maior número de pessoas possível, dançar até o limite, enfim, é necessário esgotar a vitalidade, porque pode ser aquele mesmo o momento do esgotamento. Aliás, esse modelo do 'aproveite o dia' é seguido por alguns adultos também".
  Serve, ao menos, para refletirmos que, se não somos eternos, podemos viver menos ansiosamente este dia - mesmo que ele possa ser realmente o último.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A "esperança"

  Conforme eu havia registrado no post anterior, Spinoza via a esperança como uma afecção que nos tornava passivos, ou seja, como uma paixão. Num dos livros a respeito do qual eu disse que faria alguns comentários - aquele que registra o diálogo entre Mário Sérgio Cortella e Yves de La Taille - essa ideia está bem registrada.
  Yves diz: "Afinal, entre outras acepções, esperança significa ter um 'desejo sem poder'. O filósofo francês Comte-Sponville diz que é preciso querer 'desesperadamente' - não no sentido da agonia e da dor, mas lembrando que a esperança pode ser uma posição passiva. Eu quero, mas nada faço além de 'esperar'. Perde-se a ideia de ação".
  Se Yves cita o francês Sponville - de quem eu sou fã... e que já apareceu neste blog algumas vezes -, Cortella apela ao brasileiríssimo Paulo Freire, e diz: "Paulo Freire conferiu um sentido novo à palavra 'esperança', lição que a gente deve sempre repetir. Ele dizia que era preciso ter esperança, mas esperança do verbo esperançar, e não do verbo esperar. Porque a esperança que vem de 'esperar' é pura espera, ao passo que quando proveniente de 'esperançar' significaria se unir e ir atrás, não desistir". E Yves completa: "É agir".
 Transmutada nessa concepção freireana, a "esperança" representaria atividade, tornando-se "positiva" segundo a ótica de Spinoza.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Spinoza, por Onfray (6)

  Spinoza enviou-me uma “carta atemporal” reivindicando uma maior participação no blog. Analisando as últimas postagens, contou-me que constatou que até o “traidor” Leibniz aparecia mais do que ele mesmo. E perguntou se eu pretendia mudar o nome do blog para “Marx e amigos”, ou coisa que o valha. Eu respondi à carta imediatamente, dizendo que não era meu interesse abandonar um mestre do quilate dele, mas que sempre fazia questão de abrir espaço para que os “amigos de Spinoza” pudessem participar. Ultrapassados quaisquer desentendimentos, lanço um post sobre o mestre.

  Numa das últimas partes em que trata de Spinoza, no seu “Contra-história da Filosofia – volume 3: barrocos libertinos”, Michel Onfray usa o título “Guerra às paixões tristes”. Ele começa afirmando que “A Ética propõe igualmente uma física das paixões e uma mecânica dos sentimentos”. É uma afirmação complicada de ser feita, pois parece “materializar” completamente os “sentimentos”. É verdade, entretanto, que Spinoza escreve, no Prefácio da Terceira Parte, contra aqueles que “concebem o homem dentro da natureza como um império dentro de um império. Pois eles creem que o homem perturba mais a ordem da natureza do que a segue”. Sob este ponto de vista, pensando na “natura” latina aproximada à “physis” grega, poderíamos forçar o pensamento spinozano a, falando do pertencimento das ações – e paixões – humanas à natureza (“natura”/”physis”), realmente estar falando de uma “física das paixões”. Entretanto, penso, Spinoza só quer destacar que não há uma “exterioridade” absoluta do homem diante da natureza, nem biologicamente – e acho que ninguém nega isso -, nem mesmo em termos de “vontade”, como se o homem fosse um “mini Deus”, com vontade exterior à natureza, porém com limites que não haveria no “Deus verdadeiro”, falando em termos judaico-cristãos.

  Muito mais do que pretender falar de uma “física das paixões”, penso que Spinoza pretende colocar as paixões sob uma “ordem geométrica” – não a fim de “desumanizá-las”, mas de “organizá-las”, facilitando o que pretende dizer. Isso é o que transparece no último trecho do supracitado prefácio, em que está escrito: “... eu considerarei as ações e apetites humanos como se fosse uma questão de linhas, planos ou sólidos”... isto é, geometricamente.

  Voltemos a Onfray. Ele explica que “o corpo é afetado por paixões que aumentam sua potência de agir ou a diminuem”. Mais à frente propõe a pergunta “O que são, pois, as paixões tristes?”, respondendo da seguinte forma: “A vergonha, o ódio, o desprezo, a dor, a melancolia, o horror, a aversão..., o desespero, o desdém, o medo, a humildade..., a indignação..., a inveja, a cólera, a vingança..., a crueldade..., o rebaixamento de si”. A lista de Onfray é enorme e não concorda com uma usual lista cristã principalmente por conta do “humildade”. Entretanto, Onfray segue o mestre Spinoza, visto que este destaca que “humildade” tem a mesma raiz etimológica que “humilhação”, representando, em alguma medida, uma inferiorização do modo de ser humano.

  Onfray fecha muito bem essa parte, dando um viés fortemente existencial ao pensamento spinozano, quando escreve: “Eis o ruim, que reduz minha potência de ser, minha adesão vital ao mundo e ao real”.

  Entretanto, Onfray não é tão feliz quando começa o parágrafo seguinte. Ele escreve: “Em compensação, há que consentir a Alegria, definida por toda paixão que aumenta minha potência”. Na verdade, existem as “paixões alegres”, que realmente “aumentam a potência”, mas através da dependência a uma coisa exterior. A “Alegria” mesmo, do ponto de vista spinozano, só vem através de uma “afecção ativa”, que é o contrário de uma “afecção passiva” (uma “paixão”).

  Pode parecer que é só uma questão de substituir, então, “Alegria” por “paixão alegre” no texto de Onfray, mas o autor escorrega mais feio logo a seguir, quando começa a enumerar quais seriam as tais “coisas” que aumentam a potência. Ele cita: “a glória, a admiração, o gáudio, o amor..., a esperança...”. Paro por aqui! Spinoza deixou claro que não pode haver esperança sem medo. Afinal, “esperança” é a expectativa de que algo futuro venha a ocorrer, mas sem certeza do efetivo acontecimento deste evento. Ou seja, em cada esperança há sempre um “medo” de que a coisa não se concretize. Desta feita, “medo” e “esperança” estão do mesmo lado da balança, isto é, são “paixões”... e tristes. É lógico que podemos distorcer um pouco essa concepção, dizendo que, mesmo que ilusória, a “esperança”, por vezes, nos dá forças para enfrentar a dura realidade. É verdade. Só que Spinoza não está preocupado com o mero enfrentamento da realidade, mas sim com uma potência ativa diante dela... por mais desconfortável que ela seja.

  Lamentável, portanto, o engano de Onfray.

  Por último, Onfray aproxima Spinoza de outro pensador que aprecio muito: Epicuro. Apesar de merecer uma leitura cuidadosa, visto que Onfray é decididamente fã de Epicuro e de seu hedonismo, o trecho é interessante: “A ética de Espinosa... não é prescritiva, mas descritiva. A virtude e o vício (palavras ausentes na obra do filósofo) supõem a utilidade. É bom o que serve ao projeto hedonista, no caso o aumento da minha potência de ser; e mau o que desserve a ele”.

  Fico com a impressão de que “projeto hedonista” parece uma coisa muito ligada à “vontade” como faculdade da mente, enquanto “potência de ser” me parece mais “vital”. Portanto, aproximar apressada e acriticamente as duas coisas é meio perigoso. Mas, de qualquer maneira, a ideia de uma ausência de prescrições – prévias e absolutamente eternas e necessárias – parece atingir bem o cerne da ética spinozana. Além disso, o “bom” e o “mau” como dependentes de uma instância existencial parece tão acertado quanto o “além do bem e do mal” nietzscheano.

  Pronto, querido Spinoza... aí está você novamente!!!

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", de 1789

  A "novela" "Marx e a ideologia" continua. Entretanto, nem sei mais se "ideologia" ainda cabe  no título dos posts; afinal, o assunto se alargou de uma tal maneira que do que menos se tem falado, nos posts e nos comentários, é sobre a "ideologia", segundo a concepção de Marx. De qualquer forma, ainda que, por uma questão de facilidade de referência, continuemos a utilizar o tal "rótulo", há possíveis reflexões paralelas que podem enriquecer o assunto.
  Umas dessas reflexões diz respeito ao texto que Marx registrou como sendo a "Constituição de 1793", em seu "A questão judaica". Nosso amigo Joaos explicou que se trata da "Declaração dos Direitos Humanos", de 1793.
  A Wikipedia me socorreu nessa busca pelo texto. Lá está: "A Assembléia Nacional Constituinte da França revolucionária aprovou em 26 de agosto de 1789 e votou definitivamente a 2 de outubro a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, sintetizando em dezessete artigos e um preâmbulo os ideais libertários e liberais da primeira fase da Revolução Francesa. Pela primeira vez são proclamados as liberdades e os direitos fundamentais do Homem (ou do homem moderno, o homem segundo a burguesia) de forma ecumênica, visando abarcar toda a humanidade. Ela foi reformulada no contexto do processo revolucionário numa segunda versão, de 1793".
  Essa primeira abordagem histórica nos permite contextualizar algumas ideias da tal "constituição". A França saía de uma monarquia absolutista, onde as oportunidades dos homens eram limitadas por decretos emanados de uma figura central, originária e estruturalmente separada do povo, que governava mais para a aristocracia e para si mesma, do que para a população. Justamente por isso, muitas vezes, suas determinações não respeitavam minimamente os desejos populares. Em situações extremas, privava-se o ser humano de tudo que era seu, através de expropriações, e mesmo de sua liberdade, seja pelo cometimento de crimes efetivos - contra a vida e a propriedade alheias -, seja por crimes de opinião - como escrever contra o rei e a corte.
  Nesse cenário "problemático", parece-me que foi uma evolução - depois de uma sanguinária revolução -, no que diz respeito à vida humana, a declaração desses Direitos, não só do cidadão - o que já seria de se esperar em qualquer constituição -, mas também dos seres humanos em geral.
  Obviamente, o grupo que apoiou o movimento popular também tinha interesses na subversão da situação vigente... principalmente, interesses econômicos. Mas, questionado se teria sido somente a burguesia que fomentara a Revolução Francesa, eu responderia que não. Atenderam-se a desejos populares... que, reconheço, podem ter sido realmente manipulados, a fim de que o grupo burguês alcançasse seus objetivos "menores", isto é, meramente financeiros.
  Feito esse preâmbulo, passo aos artigos da declaração:
  "Art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
   Art. 2.º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
   Art. 3.º O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.
  Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.
   Art. 5.º A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.
   Art. 6.º A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.
  Art. 7.º Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer cidadão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário torna-se culpado de resistência.
  Art. 8.º A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada.
  Art. 9.º Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.
  Art. 10.º Ninguém pode ser molestado por suas opiniões , incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.
  Art. 11.º A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.
  Art. 12.º A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada.
  Art. 13.º Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com suas possibilidades.
  Art. 14.º Todos os cidadãos têm direito de verificar, por si ou pelos seus representantes, da necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração.
  Art. 15.º A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração.
  Art. 16.º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.
  Art. 17.º Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização".
 
  Quem ler os artigos com calma perceberá que o "bem comum" e a "sociedade" têm ênfase muito maior do que as "mônadas" egoístas que Marx vê operando livremente - e com respaldo oficial - na sociedade.
  
  Aqui, aproveito para responder ao comentário do amigo Garibaldov - feito no "Marx e a ideologia (2)".
  Garibaldov indica que o conceito de "direitos naturais" é abstruso e que implica uma contradição interna. Pode até ser... mas isso só ocorre quando consideramos essa expressão no contexto das teorias contratualistas, em que há um "Estado de Natureza" - ficção conveniente aos propósitos que pretendem ser alcançados na dita teoria - anterior ao "Estado Civil", este último pactuado através do tal contrato de cessão dos próprios direitos individuais.
  Muito acertadamente escreve Garibaldov que "a natureza permite-me tudo o que estiver ao meu alcance, pela minha força e inteligência. O conceito de direito visa, de fato, limitar as minhas possibilidades, de forma a conviver no mesmo espaço que outros". Entretanto, esses "direitos naturais" a que Garibaldov se refere não são os mesmos "direitos naturais" que o texto, ora em questão, contempla. É certo que "direitos fundamentais" poderia ser uma escolha melhor da Assembleia Constituinte da França Revolucionária, visto que indicaria tratar-se não de pretensos direitos do Estado de Natureza - portanto, anteriores ao estabelecimento do Estado Civil -... mas quem sou eu para discutir com "cortadores de cabeça"?
  Fica claro, observando-se o texto, que os constituintes estão falando de "direitos fundamentais", ou "direitos básicos", que devem ser considerados antes de todos os outros mais específicos. Perceba-se bem o Art. 2.º: "A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão". Já se está falando em "associação política", portanto, fora do âmbito do meramente "natural", a que se refere acertadamente Garibaldov em suas considerações. Ele também escreveu em seu comentário que "Não existe conceito de direito fora da esfera política". E é dentro dessa esfera que se fala dos tais "direitos naturais" - que, como eu já disse, ganhariam em clareza se fossem chamados "direitos fundamentais" ou "direitos básicos".
  E é dentro dessa esfera que os constituintes enumeram os tais direitos - a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Ao contrário do que Marx sugere, não se dá relevo à propriedade, e mesmo o item "segurança" não parece dizer respeito somente à segurança da manutenção dos bens privados, mas também à própria segurança física do indivíduo.
  Como eu já disse antes, nada de estranho que se fale em direito à propriedade em um tempo em que o "bem comum" a todos do povo era apenas a "ausência de bens" de valor - que estavam quase todos na mão da aristocracia.
  Aliás, interessantíssimo o fato de que John Locke - tido como fundador intelectual do liberalismo - indicasse que a propriedade territorial de um homem deveria ser garantida, mas que esta teria apenas a extensão sobre a qual o homem e sua família pudessem trabalhar.
  Querem mais "comunismo" do que isso, gente?!
  E o assunto continua...




segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Mais dois amigos!!!

  Hoje, realmente, eu havia me comprometido a postar algo com conteúdo filosófico. Entretanto, em função de uma ida ao médico com minha mãe - aliás, muito proveitosa -, isso não foi possível.
  Porém, eu não poderia deixar de registrar a minha felicidade em encontrar mais dois "amigos dos amigos" nesse espaço que é de todos nós.
  Sejam bem vindos, Mônica Dib e Ivo Ribeiro - embora ele tenha chegado primeiro, sigo o "Primeiro as damas!" por aqui. Rsss.
  Queridos amigos, sintam-se à vontade para lançarem seus comentários em todos os posts, inclusive, através dos "off topic",  para abrirem novas reflexões que acharem interessantes.
  Muito obrigado pela vinda e espero que gostem de aqui permanecer.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A "falência" do marxismo

  Certa vez, perguntado sobre o "fim" do marxismo, o ótimo professor Leandro Chevitarese comentou que há que se ter cuidado com esse pensamento, visto que, se assistimos ao fim da URSS - principal representante do "marxismo ortodoxo" -, o capitalismo também teve que se modificar - refletindo e operando sobre algumas teses do marxismo - para poder dar essa aparência de vitória. Leandro citou como exemplos dessa "flexibilização" do liberalismo/capitalismo os direitos trabalhistas e a aceitação dos sindicatos.
  Uma passagem de "O capital" demonstra bem as condições reinantes à época, dentro das fábricas britânicas, que esclarecem bem a correção da tese do professor Leandro. Marx escreveu "Às duas, às três, às quatro horas da manhã, crianças de nove ou dez anos são arrancadas de seus leitos imundos e obrigadas a trabalhar até as dez, onze, doze horas da noite, por um salário de pura subsistência; os seus membros se descarnam, a sua figura se contrai, os traços do seu rosto se embotam e a sua humanidade se enrijece completamente num torpor de pedra, que causa horror a quem os vê".
  Se o marxismo morreu, aparentemente "este" capitalismo que Marx descreveu também não teve duração muito maior... ou, pelo menos, tomou alguns dos remédios do "Dr. Marx" a fim de continuar vivendo sob outra forma.
  Independente do que sobreviveu ou morreu, não há como negar a desumanidade do quadro descrito por Marx.

Final do recesso carnavalesco

  Meu Salgueiro não ganhou! Meu Fluminense não ganhou! Ahhhh... Em compensação... a Beija-Flor não ganhou e o Flamengo não ganhou! Ehhhhh!
  Bem... arregacemos as mangas. O carnaval terminou... isso quer dizer que o ano efetivamente começou.
 

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Ortega y Gasset, por Nelson Saldanha

  Em Ortega, a frase que afirma não ter o homem uma natureza, posto que tem história (ressonância da ideia de que "o que tem história não se define"), deixa em aberto a ... pergunta se "ter história" é, no caso, um traço peculiar a um ser de determinada espécie [...] No fundo, tem-se o impreciso retrato do homem visto como ente histórico, mas inteligível por traços constantes, animal sim, mas com outra 'natureza'; e a indagação cai sobre esta, não sobre o retrato impreciso. O que varia na história são 'modos' do ser, com o qual o humano se refaz periodicamente: a substância é mais ou menos a mesma".
  Esse é um ponto que eu sempre destaco quando se quer fugir às famosas "categorias" a serem utilizadas no "homem". Pode-se lançar mão de "existenciais" - que seriam "categorias" específicas para o "existente humano" -, como fez Heidegger, mas não se consegue fugir a uma "estrutura típica", presente em todo "existente humano". Parece-me que essa estrutura, de alguma forma, apesar de toda a liberdade de escolha de um projeto de "modo de ser", acaba, sim, por representar o que, em outro momento da História da Filosofia, se chamou de "natureza" do homem.
  Penso que o prof. Nelson Saldanha compartilha, pelo menos em alguns pontos, dessa minha tese. Basta perceber que ele fala no "impreciso retrato do homem visto como ente histórico" - e, diga-se de passagem, "impreciso" usado, talvez, mais como "indeterminado", pela própria mobilidade do homem no seu fluxo de devires possíveis -, mas reconhece que a inteligibilidade desse "homem" - ou seja o "rótulo" que nele se ponha - se procura nos "traços constantes".
  Post desafiador para o meu querido amigo Existenz, com quem já mantive conversas excelentes sobre esse tema, mas contando com a colaboração de todos os amigos que queiram se manifestar.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Livro de Mário Sérgio Cortella

  Outro livro que estou lendo agora é "Nos labirintos da moral", um diálogo entre nosso professor Mário Sérgio Cortella e Yves de La Taille - professor francês que vive no Brasil há muitos anos.
  Este livro, como o mencionado no post anterior, também é pequeno - pouco mais de cem páginas -, mas tem a grande qualidade de discutir a moral de uma forma bem concreta e bem "encaixada" na nossa realidade contemporânea.
  Outro livro a respeito do qual pretendo lançar alguns post em breve.
  Logo de início, entretanto, gostaria de registrar um dado, citado no livro, que me assustou um pouco.
  Em determinado momento do diálogo, cita-se o livro "O suicídio", de Durkheim, para dizer que "não é a miséria que leva ao suicídio, não são nem o alcoolismo nem a aflição, é sentir-se fora do mundo, sentir-se num mundo... sem sentido". Até aqui, parece-me um diagnóstico perfeito. Entretanto, o que me assustou foi uma estatística apresentada por Yves de La Taille, com base em dados da Organização Mundial da Saúde, do ano de 2000, sobre os fatores que ocasionaram mais mortes no mundo. Yves explica que foram estabelecidas várias categorias, mas se põe a analisar três, especificamente: suicídios, crimes (assassinatos) e guerras.
  Os números que ele revela são de "cair o queixo"! Diz ele: "O que mais mata no mundo, hoje, é o suicídio. Foram 815 mil suicídios, naquele ano, contra 520 mil mortes ocasionadas por crimes e 310 mil em guerras". Ele constata - e isso me "arrepiou" - que seria necessário, praticamente, somar mortes por crimes e em guerras para que o número se igualasse ao das mortes por suicídio.
  É verdade que ele destaca a regionalização das categorias de morte mais relevantes. Assim, no Iraque, por exemplo, a mais presente é a categoria "mortes em guerras"; enquanto no Rio de Janeiro, por exemplo, seria a "mortes por crimes", e no Hemisfério Norte estaria concentrada a categoria "mortes por suicídio"... logo lá, onde a "cultura costuma ser considerada como a mais avançada e a mais desejável do mundo ocidental".
  Mesmo reconhecendo essa regionalização, não consigo perceber  a realidade de um número tão enorme assim! E mais... em sendo corretos esses dados, constata-se quão grande é o número de pessoas que sentem que o mundo perdeu o sentido... ou que elas perderam o sentido no mundo.
  Apavorante!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Que inaugurações eleitoreiras, hein!

  Os jornais de ontem deram conta de duas inaugurações feitas pelo ente "Dilmula" - afinal, não há "Dilma" sem "Lula". Nada muito surpreendente, apesar de ilegal, nesse período pré-pré-eleitoral - afinal, ninguém nem sequer pode se assumir candidato.
  Na primeira inauguração, veiculada pela coluna do Ancelmo Gois, "Dilmula" foi a Minas Gerais inaugurar 98 casas populares. Não é pouco para um ente tão poderoso? Será que os gastos com a "Operação Leva e Traz" da comitiva de "Dilmula" valem o efeito objetivo da obra em questão? O efeito "eleitoreiro", sei que os gastos valem... para eles. Mas nós é que pagamos a conta para essa eleição... "dilmulistas" ou não?!?!
  A observação de Ancelmo Gois é de que "Com todo o respeito, isso não é agenda eleitoral nem para prefeito do interior, quanto mais para presidente do país. O gasto com o deslocamento da comitiva deve ter sido maior do que o investimento da obra".
  A outra notícia tem como manchete: "Lula inaugura universidade que mal consegue funcionar" - Ué, cadê a Dilma?  Pior do que ler a manchete é ler o corpo da notícia. A tal "universidade", na verdade, se refere a dois dos dez prédios previstos no local. Dos oito restantes, cinco ainda estão em obras e três nem saíram do papel. A conclusão da obra está prevista para 2012 - se o mundo não acabar antes, né?! Rsss.
  E ainda falaram mal do prefeito César Maia - nada contra ele... nem a favor! - por ter "inaugurado" a Cidade da Música apenas parcialmente acabada.
  É, pessoal, assim fica difícil votar!

Livro de Nelson Saldanha

  Uma de minhas leituras atuais é um livro bem pequeno - menos de cem páginas -, de título "Filosofia - Temas e Percursos", do professor Nelson Saldanha, da UFPE, membro, não só da Academia Brasileira de Filosofia, mas também da Academia Pernambucana de Letras.
  O autor confessa sua "filiação" filosófica, quando diz, no "Breve prefácio para um breve livro": "Minha relação com os pensadores historizantes, ou historicistas, data dos inícios de minha atividade docente. Aqui destaco a leitura de Ortega [y Gasset], que desde a juventude me ocupou e encantou: Ortega, com sua lucidez e seus exageros. Gostaria de citar uma passagem de El espectador, no qual a obra é ofertada aos leitores que gostam de reler e de repensar, afirmando que seu livro 'é um livro escrito em voz baixa'. Um livro de filosofia deve, realmente, ser escrito em voz baixa".
  Pretendo fazer alguns registros sobre este livro nos próximos posts. Antes, porém, gostaria de destacar uma opinião do autor que poderá interessar ao meu amigo Existenz, dizendo respeito a um livro que eu consegui obter, e do qual compartilhei minha opinião sobre a sua qualidade.
  Escreveu Nelson Saldanha: "Dentre a vasta bibliografia sobre Ortega, menciono o recente Jose Ortega y Gasset: a aventura filosófica da educação, de Margarida Almeida Isaura Amoedo (Imprensa Nacional, Lisboa, 2002)...".
  

"Tudo o que é humano é complicado"

  É com essa frase que começa a última coluna de Roberto Da Matta, em O Globo. Não que seja novidade que o ser humano é complexo - e, talvez por isso, complicado. Mas, se por um lado, esse aspecto multifacetado do ser humano, que dificulta sua apreensão conceitual, o torna "complicado". Por outro, é justamente essa estrutura "poliédrica" que valoriza sua, ou melhor, nossa existência.
  Pascal, por exemplo, expôs muito bem esse quase paradoxo que é o ser humano. Aliás, num dos comentários mais recentes de nosso amigo Joaos, foi dito, inclusive, que Marx se preocupava com a inadequação da redução do homem a apenas uma das suas múltiplas facetas. E mais tantos outros pensaram esse ser "esquisito", tão infinitamente variado na sua simples finitude.
  Mas, passemos ao texto de Da Matta.
  "Tudo o que é humano é complicado; ou melhor: não pode ser simples senão não é humano. O humano é impreciso, enigmático, ambíguo, pérfido e, acima de tudo, espesso como os nevoeiros e as peças de Shakespeare. É, como as máscaras de carnaval e as cebolas, múltiplo; e tem caras, varandas, porões e infindáveis corredores. Tem também o abraço solar, a mão aberta e calorosa, o sorriso que cativa e o beijo apaixonado que promove a vida. Tudo nasce de uma mesma fonte da qual jorram igualmente ódio, inveja, coragem e ressentimento. O transitório que, para Freud e Thomas Mann, é tudo, promove a busca de consistência e do eterno. A saudade articula o instantâneo que é vida e a eternidade do nada. Os deuses nos invejam não só porque não existiriam sem nossas preces e oferendas, pois eles precisam de nós tanto quanto nós necessitamos deles, mas porque vivemos na transitoriedade e na dúvida do aqui e agora, do ser ou não ser e do você e eu que engendram tenacidade, desejo, amor, lealdade e honra".
  Portanto, tudo podemos esperar desse "algo" sem lugar certo na natureza que é o "humano"... tudo de bom ou de ruim!

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Um Montaigne "heideggeriano"

  Eu sempre declarei minha preferência à ideia spinozana de que "o homem livre em nada pensa menos que na morte, e sua filosofia é uma meditação sobre a vida", sobre a heideggeriana de que "o homem é um Ser-para-a-morte".
  Embora Heidegger não seja o único filósofo da História a colocar o tema em relevo, achei um texto de Montaigne, do Ensaios I, que me parece beirar o exagero. É verdade que a "morte" heideggeriana é muito mais metafísica que aquela de que trata Montaigne, que é abordada com um cunho mais psicológico. Sobre essa última, então, a supremacia da ideia spinozana - e também a epicurista - me parece absoluta.
  Vamos ao texto:
  "... Tiremos da morte o que tem de estranho; pratiquemo-la, habituemo-nos a ela, não pensemos em outra coisa; tenhamo-la a todo instante presente em nosso pensamento e sob todas as suas formas. Ao tropeço de um cavalo, à queda de uma telha, à menor picada de alfinete, digamos: se fosse a morte! E esforcemo-nos em reagir contra a apreensão que uma tal reflexão pode provocar. Em meio às festas e aos divertimentos, lembremo-nos sem cessar de que somos mortais e não nos entreguemos tão inteiramente ao prazer que não nos sobre tempo para recordar que de mil maneiras nossa alegria pode acabar na morte, nem em quantas circunstâncias ela sobrevêm inopinadamente. É o que faziam os egípcios, quando em seus festivais e voltados aos prazeres da mesa, mandavam trazer um esqueleto humano para rememorar aos convivas a fragilidade de sua vida: 'Pensa que cada dia é teu último dia, e aceitarás com gratidão aquele que não mais esperavas' (Horácio). Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; sabe morrer toda sujeição e constrangimento".
  É lógico que o reconhecer-se finito é condição fundamental para encarar a realidade. O banimento da morte da reflexão e da vida do ser humano é uma das maiores ilusões criadas pelo pensamento místico-religioso. Entretanto, "viver" a morte em cada ato, em cada momento da existência, não se permitindo sequer aproveitar as alegrias integralmente - como nos indica Montaigne -, parece-me mais uma doença da alma do que uma cura para a vida.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Rita Lee e o amigo de Da Matta

  Outro dia, escrevi sobre a lembrança do amigo de Roberto Da Matta, referente à sua noite de núpcias. Achei muito interessante o vínculo estabelecido, pelo narrador, entre "amor e sexo".
  Nessa "onda", lembrei-me de uma música da qual gosto muito, da Rita Lee, que tem por nome justamente "Amor e sexo". E lá vai a letra...

AMOR E SEXO - Rita Lee

"Amor é um livro
Sexo é esporte
Sexo é escolha
Amor é sorte

Amor é pensamento, teorema
Amor é novela
Sexo é cinema

Sexo é imaginação, fantasia
Amor é prosa
Sexo é poesia

O amor nos torna patéticos
Sexo é uma selva de epiléticos

Amor é cristão
Sexo é pagão
Amor é latifúndio
Sexo é invasão
Amor é divino
Sexo é animal
Amor é bossa nova
Sexo é carnaval

Amor é para sempre
Sexo também
Sexo é do bom...
Amor é do bem...

Amor sem sexo,
É amizade
Sexo sem amor,
É vontade

Amor é um
Sexo é dois
Sexo antes,
Amor depois

Sexo vem dos outros,
E vai embora
Amor vem de nós,
E demora

Amor é cristão
Sexo é pagão
Amor é latifúndio
Sexo é invasão
Amor é divino
Sexo é animal
Amor é bossa nova
Sexo é carnaval

Amor é isso,
Sexo é aquilo
E coisa e tal...
E tal e coisa..."


  Os antagonismos entre amor e sexo são fantasticamente bem engendrados pela Rita Lee. E mesmo que haja um juízo de valores, nenhum dos dois é claramente desvalorizado.
  Cá com meus botões: sexo com amor é muito mais gostoso!

"Saramago e o Haiti"

  Como sabem os que me conhecem há mais tempo, sou fã do Saramago... e, como sabem os que conhecem nossa amiga Maria há mais tempo, ela não gosta do estilo do seu compatriota.
  Sabedor disso, ao ler a nota da coluna "Informe Ideias", de Alvaro Costa e Silva, do Jornal do Brasil de domingo, não pude deixar de lembrar da nossa amiga internacional.
  A nota contava que "Depois de Madonna, Bono, Sting e Stevie Wonder, de Brad Pitt e Angelina Jolie, de Gisele Bündchen, e outros tantos, é a vez de mais uma celebridade faturar em cima da tragédia no Haiti" - esse 'faturar' ficou horrível, mas sigamos... - "José Saramago vai lançar uma nova edição do livro A jangada de pedra, cuja renda será revertida para as vítimas do terremoto. 'Se chegarmos a um milhão de exemplares vendidos, serão quinze milhões de euros de ajuda', calculou o Prêmio Nobel".
  A atitude, sob meu ponto de vista, foi muito bonita. Parabéns, Saramago!
  Para quem pensa que eu só lembrei da nossa amiga por ela e o autor serem naturais do mesmo grande Portugal - "grande", em qualidades e não em tamanho, obviamente - errou. Eu, propositalmente, omiti da nota uma opinião do dono da coluna: "... do livro A jangada de pedra - um dos piores romances que escreveu - ...".
  Eu pensava que nossa amiga era a única a não gostar do Saramago, além daquele autor que o acusou de plágio, mas me enganei.
  E eu não posso nem criticar o crítico - desculpem o trocadilho -, pois esse foi um dos poucos livros dele que não li.
  Mas fiquemos com a qualidade de sua ação filantrópica... e torçamos para que ele consiga vender muitos exemplares - seja ou não um bom livro!

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Esse meu compadre "polímata"...

  Conheço o meu compadre Mundy há três décadas - garanto que nem ele lembrava disso. Rsss -, por isso mesmo sei bem dos seus gostos. Outro dia, conversávamos sobre "samba", e o sujeito deu aula sobre sua concepção de "autoria ilusória" nesta forma musical. Boquiaberto fiquei... e permaneci, quando o douto compadre citava exemplos de músicas com tantos "parceiros" que quase era necessário fazer um "anexo" à letra para registrar o nome de todos esses inspirados amigos.
  Brinquei, então, que a produção devia acontecer mais ou menos como aqueles "repentistas" nordestinos, que se desafiam mutuamente a continuar a "cantoria" de quem o antecedeu, só que, ao contrário de dois, seriam duas dúzias de "poetas populares" em cada produção musical.
  Sem ridicularizar minha humilde e ignara participação na conversa, do alto de sua sapiência, ele explicou que há diversos interesses envolvidos nessas "co-autorias" e que vários deles só escreveram, de verdade, os próprios nomes, e mais nenhuma palavra da peça musical.
  Já não duvidava do meu compadre "polímata", mas obtive a confirmação das suas informações quando li sobre o lançamento recente do livro "Samba de enredo: história e arte", dos pesquisadores e compositores Alberto Mussa e Luiz Antônio Simas, onde os tais senhores defendem justamente a mesma tese. Seria meu compadre "co-autor" do livro?
  Explica-se no livro que "No mundo do samba, o conceito de autoria nunca correspondeu precisamente ao de composição. Há casos em que os parceiros são incorporados ao samba por questões de disputa, por serem membros influentes na comunidade da escola, porque podem financiar".
  Uma ressalva: meu compadre nem gosta de samba...
  Esse sujeito é brilhante, mesmo! Rsss

Marx e a "ideologia" (3)

  Além de registrar a ótima discussão encetada a partir do primeiro post dessa "série", gostaria de destacar como um mesmo texto produz reações interpretativas bastante diferentes.
  Viu-se, por um lado, Existenz "acolhendo" a discussão pelo viés que foi o originalmente imaginado por mim, qual seja: os direitos humanos, segundo Marx. Entretanto, por outro, percebeu-se o movimento de Joaos que, sem deixar de ser pertinente, tomou o caminho do que, para mim, era apenas um "trampolim" para alcançar o cerne do assunto: a ideologia, segundo Marx.
  Ambos, perfeitos em suas críticas, aprofundaram a discussão sobre o tema... considerando-o sob pontos de vista distintos, mas igualmente com qualidade inegável.
  Ao Existenz, eu tentei responder primeiro, através do segundo post da "série". E fechei o mesmo prometendo dedicar-me ao comentário do amigo Joaos. Antes mesmo, porém, que eu o fizesse, ele já lançou um comentário ao comentário. Entretanto, por uma questão metodológica, farei o meu comentário - através deste post - somente ao texto referente àquele que abriu a discussão. Portanto, deixarei, ainda, de fora as considerações de outro participante, o Garibaldolv.
  Começo indicando que, no post inicial, não pretendi dizer que Marx efetivamente considerava burguesia "má" e proletariado "bom", visto que o "maldade" - que aparece entre aspas já lá - tem o sentido figurado de "artimanhas", "planos racionais para impor 'verdades' a toda força trabalhadora".
  Em seguida, quero indicar que reconheço que o termo "ideologia", que aparece já no título de "A ideologia alemã", tem o sentido original de "ideário pertencente aos idealistas e neoidealistas alemães". Marx faz uma crítica a este "ideário", que atinge principalmente Feuerbach, Bauer e Stirner, questionando o fato destes restringirem suas análises às ideias, sem atingir a base material de onde elas se originam.
  Até aqui, tudo bem... e obrigado. Obrigado, além de tudo, por "desdobrar" o jovem Marx do "outro" Marx, permitindo-nos observar o movimento vivo do pensador, através dos seus escritos. Usualmente, "planificamos" o pensador e dizemos "Fulano disse isso", sem nos darmos conta do momento exato daquele pensamento em sua história pessoal, o que reduz e empobrece sua vida filosófica.
  Fiquei, entretanto, em dúvida quando foi escrito que eu estaria certo, se estivesse me referindo ao "materialismo histórico e não a Marx". Eu bem sei que o pensamento de Marx não pode ser absolutamente igualado ao que hoje chamamos "marxismo" - afinal, o que se estabeleceu sob este rótulo seria mais apropriadamente o "marxismo-leninismo", que também assume cores de "maoísmo". Entretanto, a expressão "materialismo histórico", se não foi exatamente cunhada por Marx, pertence ao "marxismo clássico". A ideia de que as causas materiais (causas econômicas), de um dado momento histórico, constituem o fundamento pelo qual se explica toda a "superestrutura" jurídica, política, religiosa, filosófica e científica desta época está em Marx - ainda que não expressamente sob o rótulo "materialismo histórico".
  Estaria eu errado neste aspecto?
  Mais do que esta pequena discordância, entretanto, eu gostaria de destacar a informação que Joaos deu de que, nos "Manuscritos de 1844", Marx "critica a alienação do homem na sociedade capitalista", que acaba implicando "a redução da riqueza multidimensional de sua vida a uma dimensão... empobrecida... que tem dois lados: a dimensão de cidadão... (dimensão política)..." - mas, principalmente, segundo minha visão, e, penso, talvez também para nosso amigo Existenz - "... a dimensão de mero comprador e vendedor de mercadorias... (dimensão da economia)". Aqui, parece-me, a possibilidade do "egoísmo", que combatemos tanto, fica totalmente aberta e potencializada.
  Se, para o jovem Marx, o "comunismo seria a realização multilateral - eu preferiria dizer, como o fez Joaos na primeira parte, 'multidimensional' -, o desabrochar das dimensões multiformes da vida humana", fico com uma impressão de que ele, nessa época, estava bem mais próximo ao socialismo utópico do que de um pensamento próprio. Mas, isso não seria tanto de se estranhar; afinal, sempre se parte de algo... ainda que seja para rejeitar-lhe a validade.
  Agradecemos a aula, Joaos... e queremos mais!
  Curiosamente, entretanto, pergunto-me - e estendo a pergunta aos amigos todos - se Marx também não seria "inocentemente" otimista, como os hegelianos de um modo geral, acreditando num movimento sempre positivo, senão mais motivado pela dialética do Absoluto/Espírito/Eu absoluto, mas agora pela dialética da luta de classes.
  To be continued... (Rsss)

Mais um!!!

  Os amigos do blog podem ter imaginado que eu, inautenticamente, ainda estivesse pensando nos 6 a 0 aplicados pelo Vasco sobre o Botafogo e repetindo o que a torcida gritava naquela ocasião. Aliás, aquilo parecia circo romano com as feras avançando sobre os cristãos. Mas não é isso que quero dizer, não, gente. O fato é que ganhamos mais um amigo, o Goulartfilo.
  Seja bem vindo. Fique à vontade para fazer seus comentários - inclusive, os "off topic".

Aniversário de um dos "amigos dos amigos"

  Apesar desse amigo andar meio sumido, não posso deixar de registrar seu aniversário. Espero que, pelo menos hoje, ele entre no blog para se ver saudado.
  Amigo Júlio, nossos parabéns pelo dia de hoje. Desejo-lhe muita autenticidade existencial! Rsss. Saindo do seu modo heideggeriano de existir e da sua linguagem originária... desejo-lhe muita felicidade.
  Grande abraço... e vê se aparece, rapaz!

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Marx e a "ideologia" (2)

  Sempre que imagino que os comentários dos "amigos" ampliam demasiadamente a reflexão original de um post, gosto de trazê-los para o espaço que aparece mais. No caso específico dos comentários de "Marx e a ideologia", eles foram de tal modo significativos - mais do que o meu post, em si - que vale à pena discuti-los nesse espaço mais "fenomênico".
  Antes de qualquer coisa, agradeço às ponderações e às correções feitas pelos amigos Existenz e Joaos. Deste último, inclusive, eu gostaria de pedir uma participação mais efetiva; afinal, o "marxismo" - ou, pelo menos, o "marxismo-leninismo" - aparece com certa frequência sendo alvo de reflexão nesse blog.
  Num primeiro momento, tentarei trabalhar os questionamentos do nosso amigo Existenz.
  O cerne da ponderação dele gira em torno - penso - da conceituação dos "direitos humanos" como "direitos naturais e imprescritíveis" e de "liberdade" como "fazer tudo que não prejudique os direitos de outrem".
  Eu gostaria inicialmente de dizer que não sei se essa aproximação entre "direitos humanos" e "direitos naturais e imprescritíveis" consta efetivamente da tal Constituição a que Marx se refere, pois, no texto que tenho em mãos fica parecendo - a partir da interposição de reticências e de parênteses - que se trata de uma explicação dada por Marx. Mas mesmo que estejam no texto original, há que se ter o cuidado de não "deslocar" a ideia de "direitos naturais" para aqueles direitos do homem no "Estado de Natureza" dos primeiros pensadores políticos modernos e contratualistas. Nestes, sim, como bem colocou o amigo Existenz, há uma tendência claramente egoísta, já que seria o direito de "ter o poder de possuir, de ser, de fazer à medida que lhe bem entenda" - citando o comentário dele.
  No caso em questão, o da Constituição, o que aparece seriam direitos naturais - que não necessitam ser criados artificialmente por uma lei a mais, por ocorrerem simultaneamente à condição de se ser humano - e imprescritíveis - que não podem ser encerrados em nenhum tempo e a partir de nenhuma norma. Parece-me que, neste caso específico, a linguagem é mais jurídica do que filosófica... o que, aliás, combina bem com o tipo de documento em questão.
  Além disso, a tal Constituição não deixa nossa imaginação correr livre, pensando que esses direitos envolveriam apenas o atendimento dos desejos individuais "para acumulação dos próprios bens, do olhar somente na força dos próprios desejos...", como coloca nosso amigo Existenz, pois ela materializa esses direitos em uma lista - aparentemente fechada, inclusive: à igualdade, à liberdade, à segurança e à propriedade.
  Não chama a atenção que Marx tenha se prendido justamente ao último dos direitos, deixando escapar o primeiro, que versa sobre a igualdade e que, talvez, seja o que mais se destaca num pensamento humanista?
  Mas isso foi apenas um pensamento paralelo. Voltemos a Marx.
  Uma constituição tem que organizar o Estado nas suas diretrizes maiores. Termos jurídicos são utilizados com um sentido "positivo" e "objetivo". É verdade que podemos questionar filosoficamente, por exemplo, o que é a liberdade, mas isso não cabe numa constituição. Nesse ponto, acho, o regramento jurídico em questão foi perfeito e sinalizou que "liberdade é seguir a lei" - fazendo um "resumão" -, pois é deslocar-se num espaço onde todas as suas ações estejam acolhidas pela legislação. Sempre que uma lei entender como pertencente a outrem um determinado direito, o sujeito não poderá se deslocar para lá. Perceba-se que não se falam abstratamente em "ações", mas em "direitos"... que obviamente são regulamentados por uma lei positiva.
  A liberdade, aqui, é uma liberdade prática. Eu posso querer o carro do vizinho, mas não posso tomá-lo e usufruir dele por conta de uma legislação que reconhece que isso é um crime, visto que o proprietário - pois há essa figura na legislação, em função da existência da propriedade privada - não pode ser lesado no seu direito de possuir plenamente aquilo que adquiriu.
  O que Marx parece esquecer é que esse regramento não é uma mera imposição externa, que limita minha ação pelo encontro com uma alteridade que tem mais força que eu, e seria, em tese, tão egoísta quanto eu. Não! Essa limitação é decidida por mim, ao me submeter ao ordenamento jurídico vigente, que me protegerá justamente desse "egoísmo exacerbado", principalmente se ele estiver instalado em alguém com "força" (poder, potência, ou algo parecido) superior ao meu. Ou seja, faz parte do pacto aceitar esse "desconto" na minha liberdade, para que eu possa "lucrar" com mais liberdade, no cômputo geral.
  Eu poderia até dizer que a tal constituição em questão vale para um país liberal - em termos econômicos -, e por isso consagra o direito à propriedade. Marx não precisava criticar a tal constituição por isso, visto que ela pertence a uma sociedade estabelecida historicamente, que fez sua opção econômica. Bastaria, no seu "país sem Estado" escrever uma constituição - seria possível uma constituição que não "constituísse" um Estado? - em que ele repetisse os direitos à igualdade, à liberdade e à segurança e excluísse o tal direito à propriedade. 
  Mas o pior não é isso! Marx erra o alvo quando mistura direitos inseridos numa Constituição positiva - portanto, "direitos civis" - com direitos que valem para qualquer ser humano - "direitos humanos". Esses têm alcance muito mais amplo. Eu não posso prender um "etíope" no Brasil e fazê-lo escravo, justificando que as leis brasileiras só se aplicam a cidadãos brasileiros... e que o tal sujeito só não pode ser escravo lá na Etiópia - se essa for a lei lá - ou se fosse brasileiro, aqui dentro do Brasil. Os "direitos humanos" transbordam a condição de cidadão, alcançando o homem no que ele tem de mais representativo, que é a sua "humanidade".
  Fechando essa primeira parte da questão, basta ler o Artigo 1º da Declaração dos Direitos Humanos - documento de 1948, portanto, bem posterior às considerações de Marx, mas que fixa propostas bem anteriores -, que diz: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade".
  Talvez, se Marx pudesse ter lido esse artigo... com a tal "fraternidade" ao fim, fosse um de seus maiores defensores.
  Agora, é a vez dos comentários de Joaos...

O amigo de Da Matta

  Na mesma coluna de jornal do post anterior sobre Roberto Da Matta, este narra o caso de um amigo, ocorrido na noite das suas Bodas de Ouro - cinquenta anos de casado, hein, gente!
  A estória contada pelo amigo de Da Matta é muito bonita, bem como a utilização das palavras. Coisa de poeta. Preparem os corações e os lenços!
  "Quando fiz as tais Bodas de Ouro... minha mulher estava muito doente. Só o seu corpo permanecia comigo. O seu espírito fugia a cada hora e a cada dia como a luz some quando chega o negrume da noite. Deitei-me ao seu lado no dia das bodas e rememorei a nossa primeira noite de casados [...] Aquele aspirado encontro no qual, finalmente, o amor ia se defrontar livre e abertamente com o sexo e com ele ter um papo cara a cara, uma conversa de homem para mulher, muito mais complicada que as nossas tolas discussões de homem para homem sobre política e futebol. Vi, como num filme, a chegada no apartamento que foi nosso primeiro lar, porque não tinha dinheiro para uma viagem de lua de mel. Chovia muito e o edifício não tinha portaria e elevador, de modo que eu, rapidinho, levei as malas para o quarto, tomado um tanto impudicamente pela cama de casal vestida de linho branco... Um tio querido e sua esposa nos receberam com discrição e cortesia. Mas quando estava para 'subir' - o amor eleva, não é mesmo? - titio me chamou e me obrigou a tomar um cálice de conhaque para 'tirar o nervoso'. Brindamos ao que estava por vir e eu subi resfolegante os degraus que me separavam da tão esperada noite nupcial. Logo abençoamos nossa casa de sexo com amor, tornando-a um lar. Não posso me esquecer da visão encantada de minha esposa com a famosa 'camisola do dia' diante do marido que ia tirando a roupa com aquela impaciência de toda primeira vez. Hoje, vivendo como vivo, eu pediria a Deus apenas uma graça. A de ver minha noiva ao meu lado jovem e linda como naquela noite encantada. Eu não quero voltar a ser jovem, ser jovem é um saco. Eu queria, isso sim, vê-la jovem ao meu lado para poder admirá-la como só os velhos sabem fazer quando se confrontam com a beleza da juventude".
  A estória continua de um modo curioso, pois o amigo conta, uma semana depois, que após umas "bebericadas" teve seu desejo realizado. Da Matta pondera com o amigo sobre a possibilidade de um estado emocional alterado, tanto pela preocupação com a saúde da esposa, quanto pelo próprio álcool ingerido. Mas dá um fechamento bonito às suas considerações ao dizer: "Simbolicamente, acho que foi um trabalho da saudade. A saudade harmoniza ilusão e realidade. Há momentos em que sexo casa com amor". E confessa: "Eu, bêbado que estava, fiquei com os olhos cheios de lágrimas quando falei essas coisas".
  Algumas frases são antológicas... merecendo constar dos tratados amorosos mais sérios, e, no entanto, foram proferidos em uma mesa de botequim - quanta cultura há nesses lugares, hein! Rsss. Uma dessas frases diz respeito à noite de núpcias, "aquele aspirado encontro no qual, finalmente, o amor ia se defrontar livre e abertamente com o sexo e com ele ter um papo cara a cara, uma conversa de homem para mulher". É certo que hoje as coisas já não são tão "românticas" assim, pois normalmente o sexo já está presente quando o amor chega à vida do casal - se chega. Mesmo assim, duas coisas devem ser destacadas. Primeiro, o encontro de amor e sexo é algo maravilhoso, não importa qual dos dois chegar primeiro. Depois, ao contrário do que pensam muitas mulheres, os homens têm muita sensibilidade para experimentar o amor.
  No mais, o texto fala por si só... e minhas considerações são totalmente dispensáveis.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

"Desassossegadas"

  O título do post é o mesmo de um registro feito em O Globo de que "Inês Pedrosa, a grande romancista portuguesa, vem ao Rio dia 8 de março, o Dia Internacional da Mulher. Como diretora da Casa Fernando Pessoa, vai entregar a Ordem do Desassossego à cantora Maria Bethânia e à imortal, ainda não empossada, Cleonice Berardinelli".
  Para quem não lembra, Bethânia já gravou um CD onde declamava trechos da poesia de Pessoa. E sobre a Sra. Cleonice Berardinelli - que já apareceu em diversos posts, aqui no blog - basta lembrar que ela pertencia ao Grupo de Estudos Pessoa, lá de Portugal, e que é respeitadíssima como especialista no ilustre português.
  Parabéns às nossas "desassossegadas"!

Roberto Da Matta, sobre ser avô

  Na coluna de ontem, em O Globo, o nosso antropólogo Roberto Da Matta escrevia sobre seus 48 anos de casado quando, de repente, desviou-se para um outro tema. Esse súbito desvio se deu quando ele se perguntou: "Como é que eu consegui não só ser um pai razoável, mas também um bom avô?". Eu, que sou pai, mas espero levar um bom tempo, ainda, sem ser avô, continuei lendo... e me senti mais relaxado com a frase seguinte: "E digo isso, queridos leitores, sem problemas, porque o laço entre pais e filhos não se resolve, mas os de avô e neto, como o de tio e sobrinho, têm a doçura da ausência das obrigações de educar e impor limites". Ufa... relaxei! Afinal, ser pai é uma "profissão" difícil demais. Nessa "obrigação de educar e de impor limites" fica sempre a dúvida se não carregamos demais na "autoridade" e esquecemos um pouco a amizade. Mas o fato é que Da Matta me sossegou um pouco quando escreveu que "o laço entre pais e filhos não se resolve". Haverá sempre essa "tensão" entre autoridade e amizade em cada ato que envolve os dois... por mais amor que cada um carregue.
  No entanto, a reflexão de Da Matta não para por aí. Já há na passagem anterior a semente para outro tema: o ser avô. E o nosso antropólogo - talvez, escrevendo muito mais como "gente", simplesmente, do que como cientista -, primeiro, constata que "Não há nos Dez Mandamentos nenhuma referência a 'honrar os avós', porque, em primeiro lugar, eles não fazem os netos, no sentido bíblico e corrente do termo" e, depois, conta-nos que "uma vez, Celeste, minha mulher, remarcou, ao observar minha paciência com os netos: 'Como pai sua nota foi zero. Mas dou-lhe dez como avô. Passou com média cinco!'".
  É verdade que, com as médias atuais - seis, em algumas instituições, e sete, em outras -, Da Matta iria apenas para a prova de recuperação... se bem que eu acho que a "fessora" não iria ser tão cruel quanto à primeira nota... quem sabe um dois, só para ajudá-lo a passar direto?!
  De qualquer forma, fica o registro de quão diferentes são essas relações que envolvem pessoas tão próximas e com funções que, apesar de tão distantes, são, no fundo, apenas pais e filhos...  ainda que os pais dos pais e os filhos dos filhos tenham um envolvimento bem mais "doce".
  Aqui do meu lado, mesmo reconhecendo a "dificuldade" de ser pai, prefiro ficar bastante tempo sem a "doçura" de ser avô. Rsss.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Kant... sobre "Ser e Tempo"?

  Diversas e diversas vezes já registrei nesse blog que, segundo meu entendimento, Heidegger não atingiu seu intento ao final de "Ser e Tempo". É verdade que o próprio autor do "estranho tratado", como ele chamava o produto final - inacabado, ressalte-se -, parece ter chegado a essa conclusão, quando, ao perceber o esgotamento da possibilidade de produzir um "Ser" inteligível para nós, pobres mortais, meros leitores imaginativos do que se passava no interior da mente do alemão, passou a valorizar a poesia e sua abordagem deste inefável "Ser".
  Ao final do projeto heideggeriano, ficou-se com a impressão de que ele estaria, de certo modo, retomando a "teologia negativa"... numa forma de "ontologia negativa poética", talvez. 
  Dito isto, que já deve ser motivo bastante para discordâncias apaixonadas, lembro apenas que Kant, em "Fundamentos da metafísica moral", de 1785, escreve aproximadamente, embora se referindo a outro assunto, que "a explicação negativa, do ponto de vista da essência, é infrutífera".
  Antes que alguém "rebata", reconheço que Heidegger não pretendia captar a "essência" do "Ser", mas apenas o seu "sentido". Se bem que... tenho lá minhas dúvidas sobre as intenções não declaradas do alemão. Mas... fica o registro do pensamento de Kant, bem como da possível "infrutiferabilidade" - eu acho que "esterilidade" não ficaria tão representativo! - do "estranho tratado".

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Montaigne e Bergson

  Montaigne, em um dos artigos de seus "Ensaios", já antecipara Bergson em relação à fluidez da realidade e à tentativa da razão de "petrificá-la" para poder conhecê-la. Escreveu: "Assim, estando todas as coisas sujeitas a transformações constantes, a razão, buscando nelas uma real subsistência, se decepciona, não podendo nada apreender na sua busca, nada de subsistente e permanente".
  Ao contrário de Bergson, entretanto, que, primeiro, achava que a razão conseguia, artificialmente, "congelar" esse caudal real a fim de lidar com ele, e, depois, que haveria um acesso possível à realidade móvel, através da intuição, Montaigne se contentou em diagnosticar a decepção da razão frente à impossibilidade de apreender a realidade.

Marx e a "ideologia"

  Marx considerava a "ideologia" algo negativo. É verdade que, para ele, o termo tinha uma conotação de visão de mundo viciada, falsamente racionalizada para atender aos interesses de uma classe.
  Mas será que Marx também não era influenciado por esse "monstro"? Parece que, quando temos prevenção em relação a algo, para todos os lados que olhamos, este algo está lá... uma espécie de ideia fixa. E, justamente sob esse aspecto, é que Marx, parece-me, acabou ficando também refém de uma "ideologia" - a sua -, de que a burguesia estava sempre e sempre e sempre articulando "maldades" para se dar bem.
  Não quero dizer que Marx esteja totalmente errado, pois sabemos que a "mão invisível" do liberalismo, se investigada a fundo, torna-se claramente identificável através dos lobistas envolvidos nas ações "de mercado" - expressão que não tem nada de tão impessoal como se pretende.
  Mesmo assim, apavorado com esse "fantasma ideológico", Marx parecia um tanto quanto "paranoico", em certas ocasiões. Em uma delas, o pensador alemão investe contra os chamados "Direitos Humanos".
  Em "A questão judaica", de 1843, Marx escreve: "Os direitos humanos distinguem-se... dos direitos civis" - avaliação totalmente correta. Parecia, então, que Marx nos explicaria que os primeiros são mais fundamentais que os últimos, mas não é o que ele faz. Continua ele: "Qual o homem que aqui se distingue do cidadão? Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. [...] os chamados direitos humanos, os direitos do homem, ao contrário dos direitos do cidadão, nada mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade".
  Apesar de meio "problemática" essa conceituação, Marx vai à Constituição de 1793, que chama de "a mais radical das constituições", a fim de buscar subsídios para sua argumentação. Escreve, então: "... a Constituição de 1793, proclamou: Declaração dos direitos do homem e do cidadão. Artigo 2 - Seus direitos... (os direitos naturais e imprescritíveis) são: a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade" - ainda amparando-se no texto constitucional, continua - "Em que consiste a liberdade? Artigo 6 - A liberdade é o poder que pertence ao homem de fazer tudo que não prejudique os direitos de outrem". Desse artigo, Marx conclui que se valida um egoísmo, visto que "trata-se de uma liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma". Tomando um viés econômico para esse egoísmo, vinculando o mesmo ao conceito de "direitos humanos" e retornando ao Artigo 2° da Constituição, conclui que: "O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente, sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta".
  Antes de mais nada, não há como fugir à constatação de que Marx fez uma mistura de hobbesianismo - onde o "homem é o lobo do homem" -, por conta do egoísmo do indivíduo, com ideias de Rousseau - onde a sociedade é que retira do homem sua bondade inata.
  Marx não reconheceu que, em qualquer sociedade, "burguesa" ou não, o homem cede sempre parte de sua liberdade a fim de que se realize um projeto maior - social -, no qual ele também será beneficiado... junto com outros. Ou seja, dialeticamente falando, a sociedade faz, sim, com que todo homem encontre noutros homens a realização de sua liberdade, mesmo que isso se faça, basicamente, pela limitação da sua própria liberdade.   A mim parece mais que a tal "mônada isolada, dobrada sobre si mesma" reflete o Estado de Natureza, de Hobbes, do que propriamente um Estado Civil.
  Penso, portanto, que, no afã de rejeitar o liberalismo, Marx confundiu "alhos com bugalhos", enquanto permanecia assolado por seus medos e suas ideias fixas, forçando um conceito que ultrapassa até mesmo regimes políticos - o de "direitos humanos" - a se "aliar" ao lado oposto ao seu nessa batalha socioeconômica.
  Aliás, talvez isso explique por que a China se preocupa tão pouco com esses direitos que só refletiriam a "ideologia burguesa", fazendo barbaridades com aqueles que, se não são a favor do comunismo, são "burgueses"... não merecendo respeito, não só em relação à sua propriedade privada - o que até seria justificável em um país socialista -, mas também em relação à sua "igualdade, liberdade e segurança" - conforme diz o segundo artigo da Constituição citada por Marx.