sábado, 27 de fevereiro de 2010

Marx e a "ideologia" (4)

  Continuando nossa "novela"...
  Joaos, no seu primeiro comentário ao segundo post da série, resume seu ponto de vista de que "Marx critica não a Declaração, mas a sociedade burguesa". Penso até que essa deveria realmente ser a ideia correta, mas não me parece ser o que Marx faz... e foi por isso que essa série de posts começou. Lá no primeiro post aparece o seguinte trecho do livro do jovem Marx: "... os chamados direitos humanos, os direitos do homem, ao contrário dos direitos do cidadão, nada mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade". Ou seja, para atacar o "homem egoísta" da sociedade burguesa, Marx se lança, sim, contra a tal "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", de 1789.
  É certo que não podemos ser descuidados e deixar de perceber que, para Marx, o aspecto jurídico vem "a reboque" da estrutura das relações econômicas - justamente a ideia de superestrutura e infraestrutura. Aliás, é o que bem destaca Joaos, logo em seguida ao trecho que já citei do seu comentário, quando diz: "... sociedade burguesa, sem a qual nem a Declaração e nem os direitos do cidadão existiriam nem funcionariam".
  Mas que continua para mim a impressão de que, ainda que sem intenção, Marx acaba por atacar a declaração em questão, isso continua!
  Mudando um pouco o enfoque desta postagem - e, com isso, passando a abordar o comentário do amigo Existenz, também ao segundo post da série -, eu diria que a pretensão de uma declaração "universal",  em seu sentido pleno, realmente é desmedida. A História nos mostra, já antes de Marx, que propostas de socialização dos bens modificariam um pouco a própria declaração. Aliás, quando eu falo em "já antes de Marx", poderíamos chegar até a "República", de Platão, que contém essa visão da ausência de bens particulares, incluindo-se até os filhos nesse rol de "coisas" comuns à sociedade.
  Existenz observa, de modo correto, que "os Direitos Humanos são social e historicamente situados". A pretensão, entretanto, é que se possa alcançar uma "amplitude" histórica que permita que várias sociedades possam se constituir segundo valores tidos - em diversos momentos específicos - como "bons". Nesse contexto, uma vez percebido por determinada sociedade que a propriedade particular não é algo que traga vantagens à convivência em sociedade, nada impede que se divulgue essa ideia, através de um documento de conteúdo semelhante ao da "Declaração...". O mesmo poderia acontecer com os outros "direitos fundamentais" elencados naquele texto... embora eu não ache que, mesmo dentro da nossa relatividade histórico-geográfica, desejemos que se eliminem os direitos à liberdade, à segurança e à resistência à opressão. Aliás, já houve diversos momentos, chamados "de exceção", em que esses direitos nos foram retirados; momentos contra os quais toda a História seguinte se insurgiu. 
  Penso que, se contextualizada e flexibilizada, a tal declaração continua sendo um grande avanço, podendo "ser eterna enquanto durar" - como se fala dos relacionamentos amorosos... em vez de "até que a morte os separe". Rsss. 


  Já que Joaos e Existenz falaram do tema "liberdade" nos seus comentários, a série continua...

9 comentários:

Anônimo disse...

Olá Ricardo. A Declaração ser social e historicamente situada quer dizer que o que está ali escrito possui um ponto de vista particular sobre as pessoas e as sociedades, e esse ponto de vista nasceu em um contexto social e histórico específico. Mesmo assim, isso não quer dizer que ela representará os direitos humanos daquela sociedade específica do qual ela nasceu. Então, ela seria mais o reflexo da visão de mundo que estava se tornando a dominante da época (e é a dominante até hoje), que eu poderia toscamente chamar de “visão burguesa de mundo” do que a da sociedade como um todo da época (que era muito mais ampla do que a classe burguesa).

Tentando deixar claro essa visão de mundo particular, vemos que a Declaração visa mais proteger os que já possuem bens, e dar-lhes segurança para acumularem mais sem serem importunados (mesmo pelo Estado) do que garantir que todos possuam bens e condições indispensáveis para a dignidade e para a vida. Há uma ênfase em dar direitos que protegessem as “coisas” individuais já adquiridas (não importa a que preço para os demais elas foram adquiridas, contanto que não fossem pela força ou pelo roubo), do que garantir essas “coisas” a todos. Há, nesse sentido, um incentivo à individualização, à atomização, a uma busca “livre” e desimpedida pelos próprios desejos, mas diminuindo a força de visões que olhassem pela igualdade em termos de condições a todos, do interesse pela situação alheia, e até dando algum limite à própria “liberdade de acumular” em favor de algo além somente do “si mesmo”. Com essa outra visão em mente, veja que os “direitos universais” seriam distintos da Declaração, e isso seria possível que ocorresse na mesma sociedade do qual foi redigida a Declaração. Quero colocar que não necessariamente concordo com essa outra visão, apesar de achar que ela possui algum futuro se melhor analisada, no entanto, acho importante abrir outros valores a discussão para conseguirmos ver um horizonte maior do que estamos normalmente acostumados.
Um abraço.

Joaos disse...

Oi Ricardo. Se vc olhar o contexto em que Marx fala da declaração, vc verá que ele está criticando um jovem hegeliano (Bruno Bauer, se não me falha a memória) por este considerar a declaração como uma tábua da salvação. Marx critica Bruno Bauer porque a emancipação que ele considera fundamental é a emancipação política (e as declarações do homem e do cidadão exprimem essa emancipação política sob sua forma mais "pura", na visão de Marx). Para Marx, a emancipação fundamental não é a emancipação política, mas a emancipação humana. A crítica de Marx é que a emancipação política é na realidade a emancipação da política enquanto esfera separada e alienada dos homens em sua vida cotidiana, a política sendo um complemento necessário para o funcionamento de uma sociedade dilacerada na oposição recíproca dos proprietários privados , um laço de união abstrato, exterior ao relacionamento dos homens entre si, ao invés de ser imanente a suas relações. Se a associação dos indivíduos é imanente a suas relações, a política e a economia seriam abolidas como esferas separadas e isso seria a emancipação humana. Marx não nega que a sociedade burguesa é "mais melhor" do que as anteriores, mas ele busca o futuro e, para ele, não se pode se contentar com a mera emancipação política, deve-se buscar a emancipação humana.

Joaos disse...

Ricardo, reparei que vc diz que Marx propõe a "socialização dos bens" e "ausência de bens particulares,". Me desculpe te avisar, mas Marx jamais defendeu nada parecido com isso.

Ele defendia a socialização dos meios de produção, o que é totalmente diferente. Toda a crítica de Marx ao capitalismo era que, nele, a população é quase totalmente privada de seus meios de vida, privada de acesso a seus meios de produção, tendo assim que vender a si mesma para sobreviver, fazendo de suas próprias aptidões uma mercadoria (força de trabalho) que ela vende aos proprietários desses meios (capitalistas) em troca do salário. Quanto mais a população, reduzida a proletários, exerce suas aptdões, mais ela produz a propriedade que priva ela mesma de meios de vida, ou seja, a propriedade privada aumenta, o capital se acumula.

Da forma que vc diz, parece que vc entende que Marx critica o capitalismo porque "as pessoas que tem bens não querem dividir", e novamente te digo que também essa idéia moralista enfadonha só se aplica ao "marxismo", que vê o problema do capitalismo como um problema de "distribuição dos bens" (ou "distribuição de renda", ou "equalização do consumo"). Marx, em todos os seus textos é incisivo e deixa absolutamente claro que não compartilha de qualquer idéia de "distributivismo", que para ele é inútil e ilusória. Toda a questão de Marx é o "modo de produzir" a vida, todo o resto advem dessa questão.

Parece uma coisa tola escrever esse texto todo por causa daquela frase tua, mas se vc fala de Marx (que é inclusive o título do tópico), a meu ver, deveria conhecer minimamente o básico do básico de Marx.

Ricardo disse...

Amigo Existenz:
Ainda que reconhecendo um certo favorecimento ao egoísmo em uma sociedade onde há possibilidade de os homens acumularem bens particulares, sobre outra em que não existissem bens privados, tenho uma tendência a achar que isso é mais um atributo da "natureza humana" - sei que você não aprovará a expressão, mas vou usá-la dentro dos limites em que você usaria algo como "visão de mundo"... mas que tem se perpetuado ao longo da história da humanidade.
De qualquer forma, gostaria de colocar em relevo três artigos da tal Declaração que não me parecem influenciar positivamente essa "busca livre e desimpedida pelos próprios desejos", que você citou.
São eles:
Art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum;
Art. 5.º A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade; e
Art. 6.º A lei é a expressão da vontade geral.
No primeiro artigo, a "igualdade em direitos" não parece alcançar apenas os que já têm bens e a fundamentação das distinções sociais apenas com bases na "utilidade comum" parece justamente valorizar o que é de importância para todos, e não apenas para alguns.
No segundo artigo citado, a função da lei voltada para coibir ações "nocivas à sociedade" parece, novamente, destacar a importância das relações sociais, tentando limitar ações egoístas a um mínimo possível.
No terceiro artigo citado, a ideia de "vontade geral", muito bem conceituada por Rousseau não apenas como a "vontade da maioria", mas sim a vontade que pode empurrar a sociedade para um objetivo comum parece descartar totalmente - pelo menos em teoria - essa individualização exagerada que você está encontrando como produto dessa "visão burguesa do mundo" como sendo a mola mestra do documento.
Parece-me, a partir da minha opinião de que o homem é "egoísta" por natureza, que seria impossível "regular" esse "sentimento" a partir de legislações. O melhor caminho, penso, talvez fosse o uso da razão, a fim de demonstrar o quanto é importante a manutenção de uma sociedade harmônica para uma relativa felicidade geral. E nisso, penso, consiste a ideia da "vontade geral" de Rousseau - que acaba por dar sinais de vida nessa Declaração.
Mas... há controvérsias. Rsss

Ricardo disse...

Joaos:
Conforme eu já registrara antes, sua indicação de que Marx procurava "totalizar" o homem, em vez de "fragmentá-lo" em dimensões apenas políticas ou econômicas é um "caminhão" de pontos a favor de Marx. "Desalienar" o homem de perspectivas particulares de ver o mundo, mostrando-o que é necessário "ser humano" - com toda a riqueza e complexidade que isso acarreta - foi uma chamamento seu, sobre Marx, de que gostei muito.
Aliás, a expressão que você usa no seu comentário - "emancipação humana" - é ótima.
Eu só me pergunto até que ponto é possível excluir determinadas dimensões desse "relacionamento entre homens". Ou seja, será que realmente as relações das forças produtivas representam a dimensão fundamental desse "restante" que é a superestrutura - conforme a opinião de Marx - ou será que ela também já não está mergulhada nesse caldeirão de "relações humanas" - tão rica e tão multidimensional quanto você colocou?
Esse não é apenas mais um jogo de forças no teatro das relações humanas, enquanto sociedade constituída, em vez de a componente principal?

Ricardo disse...

Joaos:
Ótima observação essa sobre a diferença entre a "socialização dos bens (de um modo geral)" e a "socialização dos meios de produção".
Eu realmente não pretendi dizer que Marx criticava o capitalismo apenas porque "as pessoas que têm bens não querem dividir", mas gostaria de saber se, em tese, a divisão dos meios de produção não levaria a um "achatamento" do perfil do "estoque" de bens privados. Se isso ocorresse, realmente não seria preciso "dividir" nada... afinal, mesmo todos sendo donos, por exemplo, de carros, a grande maioria seria apenas de "Lada Niva".
Não seria um modo efetivo de "distributivismo", sem apelar a esse mecanismo de forma declarada?
Outro dúvida minha é se a chegada "forçada" dos inicialmente proletários à posse - fugindo do termo "propriedade" - dos meios de produção já não teria representado esse "distributivismo".
Continuo agradecendo por sua paciência em explicar o "básico do básico" de Marx.

Joaos disse...

Ricardo, primeiramente, não sou eu que uso a expressão "emancipação humana". Se vc leu o "A Questão Judaica" para saber o contexto onde Marx fala da declaração, vc deveria saber disso.

Sobre a ênfase nas "forças produtivas" em Marx, como eu já disse, toda a questão para Marx é o "modo de produzir", isto quer dizer que ele não considera nada na sociedade como uma "coisa", mas como algo que é produzido, criado pelos homens (eles próprios também produzidos por suas próprias ações de modificação das suas situações). Não é reducionismo à esfera econômica, pelo contrário, toda a obra de Marx é uma crítica à economia como esfera que se separou e se tornou o modo coercitivo reducionista de produzir os aspectos da existência individual e social (e isso Marx fala explicitamente não só nos Manuscritos de 1844 e na Questão Judaica, como tb na Ideologia Alemã).

Joaos disse...

Ricardo sobre o que vc falou sobre um possível "achatamento do perfil do estoque" decorrendo da socialização das forças produtivas, é justamente o contrário que Marx diz. Ele diz que o comunismo (ou seja, a socialização dos meios de produção) seria uma "livre associação de indivíduos", isto quer dizer que se os indivíduos tem alguma necessidade ou algum desejo, os meios existentes de realização dessa necessidade ou desejo não seriam mais separados deles através de cercas e muros (propriedade privada), o que significa que no comunismo os indivíduos se associariam com base em seus desejos e necessidades utilizando os diversos meios de produção existentes, cujo acesso deixou de ser privado para eles. A coisa é bem "Do it yourself" mesmo. Tudo isso, Marx fala de forma explícita, principalmente no "A Ideologia Alemã".

Anônimo disse...

Olá Ricardo. Como já falei anteriormente: 1) o egoísmo pode se manifestar das formas mais distintas, e algumas serão mais estimulados em um certo modo de pensar do que outros; 2) o sentido para palavra “liberdade” e “direitos” pode variar de acordo com aquele que a pronuncia, trazendo representações e limites de associações distintos; 3) houve nítidas melhorias entre o que existia antes e o que veio com a Declaração. Seguindo com esses pressupostos vamos ao comentário propriamente.

Sendo sucinto: falar em “direitos iguais” e “condições iguais” são coisas distintas, pois os “direitos iguais” podem ser, por exemplo, usados para se manter as diferenças nas condições, e direitos diferentes podem ser usados para se convergir essas mesmas condições; falar em “ações nocivas à sociedade” é algo perigosamente vago, pode ser usado, por exemplo, por governantes inescrupulosos para defender sua manutenção no poder a força; a “vontade geral” (como também o conceito de “utilidade comum”) é algo próximo do irrealizável, afinal, a discordância das vontades é uma característica inerente a uma sociedade plural e de indivíduos autônomos, e se não há um ambiente fértil a uma sociedade plural e autônoma a vontade genuína de poucos (por exemplo, daqueles que escreveram a Declaração) poderia, por exemplo, se fazer valer como sendo a “de todos”. Logo, os artigos que está citando da Declaração não necessariamente produzem uma sociedade nos moldes do qual você está defendendo.

Assim, o egoísmo terá ainda campos frutíferos para agir, isso não é algo que a Declaração não tentou resolver, sua preocupação era outra: com os ditames repressores e parasitários de uma “casta” particular, e do Estado que assim a legitimava – aquilo que, justamente, existia no Antigo Regime -, e de forte inspiração de pensadores iluministas. Uma prova disso é a sociedade atual, do qual é filha desse modelo da Declaração e também do próprio iluminismo: não deixa de promover um estilo de vida “livre” – principalmente no que tange a defesa da propriedade privada e da livre manifestação da opinião (o que é diferente, por exemplo, de condições iguais para a sua manifestação) - e contrário à interferência do Estado sobre assuntos particulares (as vezes sendo contrário até demais...) ou de “saqueadores” sobre os bens privados (lembrando que “saqueadores” não é o mesmo que “indivíduos maus”, a realidade ética é mais complexa na “vida real” do que esse maniqueísmo), mas ainda fomentado um tipo egocêntrico e demasiadamente competitivo de indivíduo, e, com isso, sem resolver boa parte das mazelas sociais e ambientais que não deixaram de nos perseguir até hoje. Logo, ainda tenho ressalvas ao que colocou (como você disse ainda “há controvérsias”), mas concordo bastante com o que disse no final do seu texto: “O melhor caminho, penso, talvez fosse o uso da razão, a fim de demonstrar o quanto é importante a manutenção de uma sociedade harmônica para uma relativa felicidade geral.”.
Um abraço.