sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Marx e a "ideologia" (2)

  Sempre que imagino que os comentários dos "amigos" ampliam demasiadamente a reflexão original de um post, gosto de trazê-los para o espaço que aparece mais. No caso específico dos comentários de "Marx e a ideologia", eles foram de tal modo significativos - mais do que o meu post, em si - que vale à pena discuti-los nesse espaço mais "fenomênico".
  Antes de qualquer coisa, agradeço às ponderações e às correções feitas pelos amigos Existenz e Joaos. Deste último, inclusive, eu gostaria de pedir uma participação mais efetiva; afinal, o "marxismo" - ou, pelo menos, o "marxismo-leninismo" - aparece com certa frequência sendo alvo de reflexão nesse blog.
  Num primeiro momento, tentarei trabalhar os questionamentos do nosso amigo Existenz.
  O cerne da ponderação dele gira em torno - penso - da conceituação dos "direitos humanos" como "direitos naturais e imprescritíveis" e de "liberdade" como "fazer tudo que não prejudique os direitos de outrem".
  Eu gostaria inicialmente de dizer que não sei se essa aproximação entre "direitos humanos" e "direitos naturais e imprescritíveis" consta efetivamente da tal Constituição a que Marx se refere, pois, no texto que tenho em mãos fica parecendo - a partir da interposição de reticências e de parênteses - que se trata de uma explicação dada por Marx. Mas mesmo que estejam no texto original, há que se ter o cuidado de não "deslocar" a ideia de "direitos naturais" para aqueles direitos do homem no "Estado de Natureza" dos primeiros pensadores políticos modernos e contratualistas. Nestes, sim, como bem colocou o amigo Existenz, há uma tendência claramente egoísta, já que seria o direito de "ter o poder de possuir, de ser, de fazer à medida que lhe bem entenda" - citando o comentário dele.
  No caso em questão, o da Constituição, o que aparece seriam direitos naturais - que não necessitam ser criados artificialmente por uma lei a mais, por ocorrerem simultaneamente à condição de se ser humano - e imprescritíveis - que não podem ser encerrados em nenhum tempo e a partir de nenhuma norma. Parece-me que, neste caso específico, a linguagem é mais jurídica do que filosófica... o que, aliás, combina bem com o tipo de documento em questão.
  Além disso, a tal Constituição não deixa nossa imaginação correr livre, pensando que esses direitos envolveriam apenas o atendimento dos desejos individuais "para acumulação dos próprios bens, do olhar somente na força dos próprios desejos...", como coloca nosso amigo Existenz, pois ela materializa esses direitos em uma lista - aparentemente fechada, inclusive: à igualdade, à liberdade, à segurança e à propriedade.
  Não chama a atenção que Marx tenha se prendido justamente ao último dos direitos, deixando escapar o primeiro, que versa sobre a igualdade e que, talvez, seja o que mais se destaca num pensamento humanista?
  Mas isso foi apenas um pensamento paralelo. Voltemos a Marx.
  Uma constituição tem que organizar o Estado nas suas diretrizes maiores. Termos jurídicos são utilizados com um sentido "positivo" e "objetivo". É verdade que podemos questionar filosoficamente, por exemplo, o que é a liberdade, mas isso não cabe numa constituição. Nesse ponto, acho, o regramento jurídico em questão foi perfeito e sinalizou que "liberdade é seguir a lei" - fazendo um "resumão" -, pois é deslocar-se num espaço onde todas as suas ações estejam acolhidas pela legislação. Sempre que uma lei entender como pertencente a outrem um determinado direito, o sujeito não poderá se deslocar para lá. Perceba-se que não se falam abstratamente em "ações", mas em "direitos"... que obviamente são regulamentados por uma lei positiva.
  A liberdade, aqui, é uma liberdade prática. Eu posso querer o carro do vizinho, mas não posso tomá-lo e usufruir dele por conta de uma legislação que reconhece que isso é um crime, visto que o proprietário - pois há essa figura na legislação, em função da existência da propriedade privada - não pode ser lesado no seu direito de possuir plenamente aquilo que adquiriu.
  O que Marx parece esquecer é que esse regramento não é uma mera imposição externa, que limita minha ação pelo encontro com uma alteridade que tem mais força que eu, e seria, em tese, tão egoísta quanto eu. Não! Essa limitação é decidida por mim, ao me submeter ao ordenamento jurídico vigente, que me protegerá justamente desse "egoísmo exacerbado", principalmente se ele estiver instalado em alguém com "força" (poder, potência, ou algo parecido) superior ao meu. Ou seja, faz parte do pacto aceitar esse "desconto" na minha liberdade, para que eu possa "lucrar" com mais liberdade, no cômputo geral.
  Eu poderia até dizer que a tal constituição em questão vale para um país liberal - em termos econômicos -, e por isso consagra o direito à propriedade. Marx não precisava criticar a tal constituição por isso, visto que ela pertence a uma sociedade estabelecida historicamente, que fez sua opção econômica. Bastaria, no seu "país sem Estado" escrever uma constituição - seria possível uma constituição que não "constituísse" um Estado? - em que ele repetisse os direitos à igualdade, à liberdade e à segurança e excluísse o tal direito à propriedade. 
  Mas o pior não é isso! Marx erra o alvo quando mistura direitos inseridos numa Constituição positiva - portanto, "direitos civis" - com direitos que valem para qualquer ser humano - "direitos humanos". Esses têm alcance muito mais amplo. Eu não posso prender um "etíope" no Brasil e fazê-lo escravo, justificando que as leis brasileiras só se aplicam a cidadãos brasileiros... e que o tal sujeito só não pode ser escravo lá na Etiópia - se essa for a lei lá - ou se fosse brasileiro, aqui dentro do Brasil. Os "direitos humanos" transbordam a condição de cidadão, alcançando o homem no que ele tem de mais representativo, que é a sua "humanidade".
  Fechando essa primeira parte da questão, basta ler o Artigo 1º da Declaração dos Direitos Humanos - documento de 1948, portanto, bem posterior às considerações de Marx, mas que fixa propostas bem anteriores -, que diz: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade".
  Talvez, se Marx pudesse ter lido esse artigo... com a tal "fraternidade" ao fim, fosse um de seus maiores defensores.
  Agora, é a vez dos comentários de Joaos...

4 comentários:

Joaos disse...

Já que você pediu, vou entrar nesse debate.

Primeiramente, Marx em nenhum momento critica os direitos do homem e do cidadão com o intuito de substituí-los por algum novo direito. Quem conhece o jovem Marx sabe que ele não acredita que a esfera da política (onde está o direito) tenha autonomia com relação à sociedade civil (a vida cotidiana e prática da sociedade). As mudanças políticas (criação dos direitos, inclusive os "humanos") são determinadas pelas modificações nas relações práticas e cotidianas da sociedade e não o contrário (porém, segundo ele, o contrário sempre ocorre, mas de maneira sempre limitada mais cedo ou mais tarde pelas exigência da sociedade civil)

Pois bem, nesse texto ("A questão judaica") Marx afirma que os direitos do homem e os direitos do cidadão foram sancionados por assim dizer "a posteriori", como subprodutos que consagram uma prática já comum e cotidiana naquilo que ele chama de sociedade burguesa e como forma de combate contra aqueles que se opunham a essas práticas (corporações de ofício,nobreza, senhores feudais). Ou seja, ele afirma que, longe de dizerem respeito às humanidade inteira, eles nunca poderiam ter sido criados senão na sociedade burguesa e só poderiam funcionar nela. Ele procura mostrar isso analizando o que diz a declaração dos direitos humanos de 1793 (provavelmente escolheu a declaração dos direitos humanos por sua pretensa universalidade humanitária):

"A liberdade, por conseguinte, é o direito de fazer e empreender tudo aquilo que não prejudique os outros. O limite dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em direção a outro é determinado pela lei, assim como as estacas marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. [...]o direito do homem à liberdade se baseia [...] na separação do homem em relação a seu semelhante. A liberdade é o direito a esta dissociação, o direito do indivíduo delimitado, limitado a si mesmo.
[...]
A aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade privada. A liberdade individual e esta aplicação sua [prorpriedade privada] constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta.
[...]
La égalité, considerada aqui em seu sentido não político, nada mais é senão a igualdade da liberté acima descrita, a saber: que todo homem se considere igual, como uma mônada presa a si mesma.
[...]
A segurança é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito de polícia, segundo o qual toda a sociedade somente existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade.
"

Resumindo: Marx critica não a Declaração, mas a sociedade burguesa, sem a qual nem a Declaração e nem os direitos do cidadão existiriam nem funcionariam. Para ele, o "ruim" da sociedade burguesa (independente do direito) é que ela é uma sociedade em que a única relação possível entre os homens é a de mônadas abstratamente iguais, ou seja, seres que, socialmente e produtivamente, só podem manifestar sua vida e relacionar entre si da maneira a mais reduzida e abstrata possível, pois a única ligação prática e real entre as mônadas (e delas consigo mesmas) é a abstração quantitativa chamada dinheiro, que igualiza todas as coisas para que possam ser substituídas entre si sob a forma de uma quantidade abstrata, e cuja acumulação é o que domina a todas as práticas da sociedade burguesa e impossibilita toda as outras:

"A venda é a prática da alienação. Assim, o homem [...] só poderá conduzir-se praticamente sob o império da necessidade egoísta, só poderá produzir praticamente objetos, colocando seus produtos e sua atividade sob o império de um ser estranho e conferindo-lhes o significado de uma essência estranha, do dinheiro.

garibaldov disse...

Talvez isto não venha completamente a propósito mas não consigo deixar de dizer que
"Direitos naturais" é para mim o conceito mais abstruso que existe e quase uma contradição nos termos.
Não existe conceito de direito fora da esfera política.

A natureza permite-me tudo o que estiver ao meu alcance pela minha força e inteligência. O conceito de direito visa, de facto, limitar as minhas possibilidades de forma a conviver no mesmo espaço que outros. Visa mesmo, "limitar a minha natureza" de forma a que ela não prejudique um objectivo de organização social e porventura, civilizacional determinado por outras pessoas que só têm poder de atribuir direitos porque podem oprimir pela força militar ou pelo uso dos instrumentos morais/religiosos derivados de opressões passadas que constituem a obediência opressiva das massas.

Não sou nenhum anarco-fascista, pelo contrário, mas mais uma vez digo que juntar os conceitos direito e natureza (no seu sentido extra-humano) não tem,logicamente, qualquer sentido.

Era o que faltava converter-me à lei dessa forma ou aceitar que os valores que regem a minha sociedade (seja ela qual for) podem ser também os que regem a minha alma.

Anônimo disse...

Olá Ricardo. Na minha interpretação, o egoísmo pode estar num “estado” (como no 'Estado de natureza' de alguns contratualistas, do qual eu pessoalmente não compactuo), como também, pelo menos como germe, dentro dos Direitos Humanos (mesmo que, como eu disse anteriormente, já foi dado um grande passo em relação ao que existia anteriormente).

Além disso, no meu entender, falar em uma declaração de Direitos Humanos e dar a ela o status de universal, não pode significar deixar de levar em consideração que poderiam haver culturas e pensamentos que estabeleceriam “direitos universais” distintos deste. Assim, os Direitos Humanos é social e historicamente situado, no entanto, isso não quer dizer que ela não possa vir antes do que as nações particulares instituem como suas normas sociais particulares. Note que são duas coisas distintas, logo, uma coisa não exclui a outra.

A respeito do fato de que uma Constituição não pode questionar a liberdade, sendo algo pertinente somente à filosofia, acho que há alguma “peça” no quebra-cabeça faltando. Qualquer menção à liberdade, esteja ela contida em um tratado de filosofia ou na letra de uma Constituição, já pressupõe alguma noção do que é “liberdade”, e será por esse viés que a menção se colocará. Logo, a Constituição não analisa e critica a liberdade, você está correto, mas não deixa de ser expressão de um pensar que já fez essa crítica, deliberadamente ou não.

É claro que nos Direitos humanos é mencionado, além da liberdade, também a igualdade, mas isso você precisa olhar sobre um contexto. Note onde estas duas estão colocadas: junto à ‘segurança’ e ‘propriedade privada’. Assim, a conotação de ‘liberdade’ e ‘igualdade’ no texto estará subordinada a uma certa visão, e está ainda fechada por um certo conjunto de valores distintos dos propostos por Marx. Isso fica mais claro quando se leva em consideração a distinção dos conceitos de liberdade negativa e de liberdade positiva em Isaiah Berlin. A liberdade e igualdade esboçadas nesses Direitos Humanos tratam-se de valores similares basicamente a uma liberdade negativa, a única liberdade defendida pelos liberais, e não tanto da liberdade positiva, algo muito mais forte para os marxistas.

Os Direitos Humanos é algo obviamente exterior a mim, pois da sua criação eu não participei, e, sendo assim, não foi originada em mim (e nos demais da coletividade) o modo como será dada a liberdade por sobre os bens coletivos e pessoais, o que, de outra forma, poderia ser determinante para alterar drasticamente o desenrolar do exemplo que você colocou. Além disso, ela possui caráter coercitivo e obrigatório, não dando vazão que eu “escolha livremente” se quero seguí-la ou não (a única escolha possível seria: usar o carro do vizinho e apodrecer na prisão, ou não fazê-lo e ao mesmo tempo ficar paranóico de a todo momento outros decidirem pela outra opção e roubarem o meu carro...). Por outro lado, o modo como se dará vazão ao egoísmo nesse tipo de sociedade é de um tipo bem diferente do que você está tratando no seu exemplo (a defesa ferrenha da propriedade privada é justamente uma das maiores bandeiras dos liberais, mas mostrar sua intenção de coincidir isso com “a própria liberdade” não é algo que eles divulguem de forma tão evidente...).
Um abraço.

Joaos disse...

Com relação à polêmica sobre a "liberdade de cada um ser limitada pela liberdade dos outros" versus "a liberdade de cada um se afirma na liberdade dos outros", Marx não está falando de direito. Isso talvez fique mais claro nos trechos dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos (também conhecidos como Manuscritos de 1844) que separei abaixo :

"A propriedade privada tornou-nos tão néscios e parciais que um objeto só e nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando é diretamente comido, bebido, vestido, habitado, etc., em síntese, utilizado de alguma forma; [...] Assim, todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos eles, pelo sentido de ter.
[...]
Tudo o que o economista tira da gente sob a forma de vida e humanidade, devolve sob a de dinheiro e riqueza. E tudo que não se pode fazer, o dinheiro pode fazer para a gente; pode-se comer, beber, ir ao baile e ao teatro. Ele pode adquirir arte, saber, tesouros históricos, poder político; e pode-se viajar. Ele pode apropriar todas essas coisas para a gente, pode comprar tudo; ele é a verdadeira opulência. Mas, apesar de poder fazer tudo isso, ele só quer criar a si mesmo, e comprar a si mesmo, pois tudo mais se lhe submete.
[...]
[Com a propriedade privada, portanto] a desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento de valor do mundo dos objetos.
[...]
Suponhamos que o homem seja homem e que sua relação com o mundo seja humana. [...] Todas as nossas relações com o homem e com a natureza terão de ser uma expressão específica, correspondente ao objeto de nossa escolha, de nossa vida individual real. Se você amar sem atrair amor em troca, i. é, se você não for capaz, pela manifestação de você mesmo como uma pessoa amável, fazer-se amado, então seu amor será impotente e um infortúnio.
[...]
[Com a supressão da propredade privada,] O homem apropria seu ser multiforme de maneira global, e portanto como homem integral. Todas as suas relações humanas com o mundo - ver, ouvir, cheirar, saborear, pensar, observar, sentir, desejar, agir, amar - em suma, todos os órgãos de sua individualidade, como órgãos que são de forma diretamente comunal, são [...] a apropriação desse objeto, a apropriação da realidade humana.
[...]
A anulação da propriedade privada é [...] emancipação porque esses atributos e sentidos tornaram-se humanos, tanto sob o ponto de vista subjetivo quanto sob o objetivo. O olho tornou-se olho humano quando seu objeto passou a ser um objeto humano, social, criado pelo homem e a este destinado. Os sentidos, portanto, tornaram-se direta mente teóricos na prática. Eles se relacionam com a coisa em atenção a esta, mas a própria coisa é uma relação humana objetiva consigo mesma e com o homem, e vice-versa. A necessidade e a fruição, portanto, perderam seu caráter egoísta, e a natureza perdeu sua mera utilidade pelo fato de sua utilização ter-se tornado utilização humana.
[...]
Semelhantemente, os sentidos e os desfrutes dos outros homens tornaram-se apropriação recíproca deles.
[...]
O sentido musical do homem só é despertado pela música. [...] É só por intermédio da riqueza objetivamente desdobrada do ser humano que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva (um ouvido musical, um olho sensível à beleza das formas[etc,...]) é cultivada ou criada. Pois não são apenas os cinco sentidos, mas igualmente os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (desejar, amar, etc.) [...] que só podem vingar através da existência de seu objeto, através da natureza humanizada. O cultivo dos cinco sentidos é a obra de toda a história anterior.
[...]
Não só a riqueza como também a pobreza do homem, adquire, em uma perspectiva socialista, o significado humano, e portanto social. A pobreza é o vinculo passivo que leva o homem a experimentar uma carência da máxima riqueza, a outra pessoa. O ímpeto da entidade objetiva dentro de mim, a rotura sensorial de minha atividade vital, é a paixão que aqui se torna a atividade de meu ser.
"