terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Marx e a "ideologia"

  Marx considerava a "ideologia" algo negativo. É verdade que, para ele, o termo tinha uma conotação de visão de mundo viciada, falsamente racionalizada para atender aos interesses de uma classe.
  Mas será que Marx também não era influenciado por esse "monstro"? Parece que, quando temos prevenção em relação a algo, para todos os lados que olhamos, este algo está lá... uma espécie de ideia fixa. E, justamente sob esse aspecto, é que Marx, parece-me, acabou ficando também refém de uma "ideologia" - a sua -, de que a burguesia estava sempre e sempre e sempre articulando "maldades" para se dar bem.
  Não quero dizer que Marx esteja totalmente errado, pois sabemos que a "mão invisível" do liberalismo, se investigada a fundo, torna-se claramente identificável através dos lobistas envolvidos nas ações "de mercado" - expressão que não tem nada de tão impessoal como se pretende.
  Mesmo assim, apavorado com esse "fantasma ideológico", Marx parecia um tanto quanto "paranoico", em certas ocasiões. Em uma delas, o pensador alemão investe contra os chamados "Direitos Humanos".
  Em "A questão judaica", de 1843, Marx escreve: "Os direitos humanos distinguem-se... dos direitos civis" - avaliação totalmente correta. Parecia, então, que Marx nos explicaria que os primeiros são mais fundamentais que os últimos, mas não é o que ele faz. Continua ele: "Qual o homem que aqui se distingue do cidadão? Simplesmente, o membro da sociedade burguesa. [...] os chamados direitos humanos, os direitos do homem, ao contrário dos direitos do cidadão, nada mais são do que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade".
  Apesar de meio "problemática" essa conceituação, Marx vai à Constituição de 1793, que chama de "a mais radical das constituições", a fim de buscar subsídios para sua argumentação. Escreve, então: "... a Constituição de 1793, proclamou: Declaração dos direitos do homem e do cidadão. Artigo 2 - Seus direitos... (os direitos naturais e imprescritíveis) são: a igualdade, a liberdade, a segurança, a propriedade" - ainda amparando-se no texto constitucional, continua - "Em que consiste a liberdade? Artigo 6 - A liberdade é o poder que pertence ao homem de fazer tudo que não prejudique os direitos de outrem". Desse artigo, Marx conclui que se valida um egoísmo, visto que "trata-se de uma liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma". Tomando um viés econômico para esse egoísmo, vinculando o mesmo ao conceito de "direitos humanos" e retornando ao Artigo 2° da Constituição, conclui que: "O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente, sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, a limitação desta".
  Antes de mais nada, não há como fugir à constatação de que Marx fez uma mistura de hobbesianismo - onde o "homem é o lobo do homem" -, por conta do egoísmo do indivíduo, com ideias de Rousseau - onde a sociedade é que retira do homem sua bondade inata.
  Marx não reconheceu que, em qualquer sociedade, "burguesa" ou não, o homem cede sempre parte de sua liberdade a fim de que se realize um projeto maior - social -, no qual ele também será beneficiado... junto com outros. Ou seja, dialeticamente falando, a sociedade faz, sim, com que todo homem encontre noutros homens a realização de sua liberdade, mesmo que isso se faça, basicamente, pela limitação da sua própria liberdade.   A mim parece mais que a tal "mônada isolada, dobrada sobre si mesma" reflete o Estado de Natureza, de Hobbes, do que propriamente um Estado Civil.
  Penso, portanto, que, no afã de rejeitar o liberalismo, Marx confundiu "alhos com bugalhos", enquanto permanecia assolado por seus medos e suas ideias fixas, forçando um conceito que ultrapassa até mesmo regimes políticos - o de "direitos humanos" - a se "aliar" ao lado oposto ao seu nessa batalha socioeconômica.
  Aliás, talvez isso explique por que a China se preocupa tão pouco com esses direitos que só refletiriam a "ideologia burguesa", fazendo barbaridades com aqueles que, se não são a favor do comunismo, são "burgueses"... não merecendo respeito, não só em relação à sua propriedade privada - o que até seria justificável em um país socialista -, mas também em relação à sua "igualdade, liberdade e segurança" - conforme diz o segundo artigo da Constituição citada por Marx.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá Ricardo.
Eu não discordaria completamente de você, mas tenho algumas ressalvas. Acho que Marx exagerou no tom da crítica aos Direitos Humanos, principalmente comparando-se com que o que existia antes dele ser criado, mas vejo nesse texto dos Direitos Humanos um “germe” de um certo individualismo atomista que se radicalizou hoje em dia, e que se relaciona de forma perigosa, em muitos casos, com o egoísmo.

Se esses “direitos naturais” é ter o poder de possuir, de ser, de fazer a medida que lhe bem entenda isso pode significar se fechar somente para si mesmo, para acumulação dos próprios bens, do olhar somente na força dos próprios desejos, dos benefícios dos próprios poderes, e isso será o suficiente para se fechar dentro somente de si mesmo. Não que esse modo de ver a liberdade não seja de alguma forma valoroso, mas, limitando-se a isso (ou seja, que a própria liberdade só termina a medida que interfere na do outro, como parece dizer o texto), então devo concordar de alguma forma com Marx: o outro, em vez de ser um aliado da minha liberdade, na verdade a atrapalha. Se estou aberto (não necessariamente garantido a isso, é bom deixar claro) a sempre possuir mais, poder mais, desejar mais, conforme somente o meu arbítrio então como isso se harmonizará com essa mesma abertura do outro? O que acaba acontecendo na prática, é a presença de uma limitação exterior a si mesmo – ou seja, a “interferência” do outro nos próprios planos -, estranha a própria liberdade e, o que quer dizer, opaca em relação aos próprios quereres pessoais e privados que a impulsionam. No final, é claro, o outro se transforma em um antagonista, mas que, por uma espécie de “ética do dever” (que, diga-se de passagem, é importada, ou seja, é uma lei completamente exterior a própria liberdade), se deve aturar.
Cria-se, na teoria, uma liberdade pessoal sem limites internos, mas, na prática, uma liberdade que a todo momento é vítima de influências externas que não a levam em consideração. Assim, cria-se um pêndulo nefasto: ora uma sensação de liberdade absoluta e incondicionada; e ora um profundo sentimento de vulnerabilidade, solidão e impotência de caráter bastante aflitivo. Será que esse é então o caminho?

A sociedade, concordo com você, inevitavelmente, em algum nível acabará limitando a liberdade de cada indivíduo de forma a que se realize a dos demais, porém, poderá fazer isso somente em parte. Se assim não fosse, todas as formas de sociedade criadas até hoje, - inclusive as escravistas e as mais aristocráticas – seriam tão justas como qualquer outra. Há algo mais, que não está envolvido somente na reunião de um conjunto de indivíduos em uma sociedade, que faça haver distribuição justa da liberdade entre cada membro dela.
Um abraço.

Joaos disse...

Há tempos venho lendo este blog e parabenizo-te pelas informações nele contidas.

Mas, sem querer ser polêmico, Marx, em nenhum texto seu que li, nunca fala que a burguesia é "má"e os proletários são "bonzinhos". Além disso, quando no texto chamado "A ideologia Alemã", ele fala de ideologia, ele está criticando os jovens hegelianos que acreditavam que apenas com uma simples mudança das idéias a sociedade mudaria, e com isso eles acreditavam que as idéias eram um sistema (uma "ideologia") que determina a realidade. Não tem nada a ver com dizer que os ideias não valem nada como o seu texto dá a entender (você estaria certo se estivesse se referindo ao chamado "materialismo histórico", e não à Marx).

A questão Judaica é um texto de juventude, e, nesses textos (como os manuscritos e 1944), ele critica a alienação do homem na sociedade capitalista que ele entendia como a redução da riqueza multidimensional de sua a vida a uma dimensão mínima, abstrata, empobrecida, uma dimensão que tem dois lados: a dimensão de cidadão (dimensão destacada das demais demensões vida e dominando-as que é a política), por um lado, e, por outro, a dimensão de mero comprador e vendedor de mercadorias (dimensão destacada das demais dimensões vida e dominando-as que é a economia).

Nos manuscritos de 1944, Marx defende que o comunismo seria a realização multilateral, o desabrochar das dimensões multiformes da vida humana (para ele, a história é a história do desabrochar dos sentidos da humanidade, sentidos esteticos, gustativos,artísticos, auditivos,alfativos, ético..., que surgem e se desenvolvem no indivíduo juntamente com a produção material do objeto do sentido, daí a afirmação que a liberdade de cada um afirma a liberdade dos outros e não a limita, pois a produção dos objetidos dos sentidos por um afirma o sentido dos outros e vice-versa), que transbordaria as dimensões que foram separadas e alienadas na sociedade capitalista sob a forma de economia e de política. Em resumo, Marx critica a economia e a política porque elas dominam, reprimem e encaixotam todas as demais dimensões da vida humana. E é esse encaixotamento, essa atomização das dimensões que faz com que a dimensão da política e da economia unifiquem e dominem todas as demais, que passam a ser empobrecidas.

A tua crítica seria correta se estivesse se referindo ao materialismo histórico, ao leninismo, trotskismo, ao maoismo e coisas do tipo.