Um conselho muito comum nos meios acadêmicos é "Não fique lendo comentadores, vá direto ao texto do filósofo!".
Normalmente, esse conselho é dado por alguém que já venceu o estranhamento inicial e a impenetrabilidade das primeiras "muralhas" conceituais que se põem diante do novato. Ora, a menos que alguém de boa vontade se predisponha a auxiliar essas primeiras explorações, não é tão fácil ingressar no mundo de um pensador, até então, desconhecido.
Rotineiramente também, quem mais dá esse conselho são aqueles que não se mostram tão "abertos" ao monte de questões - algumas até realmente óbvias - que o neófito apresenta. Respostas como "Você tem que continuar lendo, pois assim entenderá este ponto" não ajudam muito... até pelo contrário, visto que se arrastam dúvidas desnecessárias por vários capítulos, podendo, inclusive, comprometer o entendimento de toda a tese e argumentação de um livro.
Um exemplo absolutamente contrário a isso é o de Kant. Ciente de que seu "Crítica da Razão Pura" (1781) era um livro que poderia ser censurado pela "falta de popularidade" - no sentido, aqui, de falta de acessibilidade ao público -, Kant se propõe a melhorar as coisas na segunda edição, a de 1787. No Prefácio, ele mesmo declara ter feito "o possível para remover as dificuldades e obscuridades", mas confessa que, "no tocante ao estilo, ainda há muita coisa a ser feita".
Kant poderia muito bem pensar, como nossos professores modernos - ou como Hegel -, que o leitor é que tem que se "virar". Afinal, o trabalho "pesado" estava feito pelo filósofo. O leitor que repasse as linhas argumentativas, no sentido de fundamentar a tese apresentada e de entendê-la.
Mas não era assim que esse "gigante" intelectual via as coisas. O que ele faz é solicitar "a esses excelentes homens que tão afortunadamente equilibram a perfeita sabedoria com o talento da exposição lúcida (talento a que não posso aspirar)" que assumam a "tarefa de elevar a minha obra - muito falha neste particular - a maior perfeição". Ele só pede que esses comentadores sejam "juízes competentes e imparciais"... Era o mínimo que se poderia solicitar, não é?
Quanta simplicidade do Immanuel, hein!
Todavia, se reconhecia a dificuldade dele mesmo em relação ao "estilo", Kant indica, no Prefácio da primeira edição da "Crítica da Razão Pura", que procurou obter a "clareza discursiva", oriunda dos conceitos, mais do que a "clareza intuitiva", provinda dos exemplos. E registra sua opinião - bastante curiosa - de que esta última espécie de clareza é frequentemente prejudicial àquela, e "muitos livros teriam sido mais claros se não tivessem tencionado ser tão claros".
Sinceramente, não sei se concordo com essa última parte, mas... realmente vemos "excessos" em determinadas explicações que, parece, poderiam ter sido glosados, sem nenhum prejuízo ao entendimento da tese.
Só para deixar a referência bibliográfica registrada, a parte da estória em relação a Kant nos é contada em "O pensamento de Kant", de Georges Pascal, publicado pela Editora Vozes, em 2003.