quinta-feira, 1 de março de 2012

Kant e os comentadores

   Um conselho muito comum nos meios acadêmicos é "Não fique lendo comentadores, vá direto ao texto do filósofo!".
    Normalmente, esse conselho é dado por alguém que já venceu o estranhamento inicial e a impenetrabilidade das primeiras "muralhas" conceituais que se põem diante do novato. Ora, a menos que alguém de boa vontade se predisponha a auxiliar essas primeiras explorações, não é tão fácil ingressar no mundo de um pensador, até então, desconhecido. 
   Rotineiramente também, quem mais dá esse conselho são aqueles que não se mostram tão "abertos" ao monte de questões - algumas até realmente óbvias - que o neófito apresenta. Respostas como "Você tem que continuar lendo, pois assim entenderá este ponto" não ajudam muito... até pelo contrário, visto que se arrastam dúvidas desnecessárias por vários capítulos, podendo, inclusive, comprometer o entendimento de toda a tese e argumentação de um livro.
   Um exemplo absolutamente contrário a isso é o de Kant. Ciente de que seu "Crítica da Razão Pura" (1781) era um livro que poderia ser censurado pela "falta de popularidade" - no sentido, aqui, de falta de acessibilidade ao público -, Kant se propõe a melhorar as coisas na segunda edição, a de 1787. No Prefácio, ele mesmo declara ter feito "o possível para remover as dificuldades e obscuridades",  mas confessa que, "no tocante ao estilo, ainda há muita coisa a ser feita".
   Kant poderia muito bem pensar, como nossos professores modernos - ou como Hegel -, que o leitor é que tem que se "virar". Afinal, o trabalho "pesado" estava feito pelo filósofo. O leitor que repasse as linhas argumentativas, no sentido de fundamentar a tese apresentada e de entendê-la.
   Mas não era assim que esse  "gigante" intelectual via as coisas. O que ele faz é solicitar "a esses excelentes homens que tão afortunadamente equilibram a perfeita sabedoria com o talento da exposição lúcida (talento a que não posso aspirar)" que assumam a "tarefa de elevar a minha obra - muito falha neste particular - a maior perfeição". Ele só pede que esses comentadores sejam "juízes competentes e imparciais"... Era o mínimo que se poderia solicitar, não é?
    Quanta simplicidade do Immanuel, hein!
    Todavia, se reconhecia a dificuldade dele mesmo em relação ao "estilo", Kant indica, no Prefácio da primeira edição da "Crítica da Razão Pura",  que procurou obter a "clareza discursiva", oriunda dos conceitos, mais do que a "clareza intuitiva", provinda dos exemplos. E registra sua opinião - bastante curiosa - de que esta última espécie de clareza é frequentemente prejudicial àquela, e "muitos livros teriam sido mais claros se não tivessem tencionado ser tão claros".
    Sinceramente, não sei se concordo com essa última parte, mas... realmente vemos "excessos" em determinadas explicações que, parece, poderiam ter sido glosados, sem nenhum prejuízo ao entendimento da tese.
   Só para deixar a referência bibliográfica registrada, a parte da estória em relação a Kant nos é contada em "O pensamento de Kant", de Georges Pascal, publicado pela Editora Vozes, em 2003.
  

2 comentários:

Pinelli disse...

Olá, ótima postagem. É uma pena que seja complicado achar traduções da obra O pensamento de Kant de Georges Pascal na bibliotecas públicas.

Você saberia dizer algum outro comentar de Kant?

Sucesso com o blog!

Laís

Ricardo disse...

Oi, Laís.
Achar comentadores de Kant não é tão difícil... o problema é saber se os livros estão disponíveis em bibliotecas públicas.
Dizem - apesar de eu não ter certeza se isso é uma espécie de "lenda urbana acadêmica" - que o Brasil chegou, em determinada época, a ser o segundo país do mundo em estudos sobre Kant, só perdendo para a própria Alemanha. Portanto, muito material foi produzido por aqui... ainda que sobre pontos específicos da doutrina kantiana.
Vou falar de alguns livros que tenho, e que julgo interessantes.
Um clássico é "Kant, vida e doutrina", do Ernst Cassirer. Esse deve ser difícil de encontrar. Mas tem tudo.
Outro que é muito bom - tenho referências de um kantiano para falar isso - é "Kant", do Allen W. Wood, da Ed. Artmed.
Há dois brasileiros, bem pequenos, que acho muito bons. Apesar de o enfoque ser mais pontual.
Um é "Kant & a Crítica da Razão Pura", de Vinícius de Figueiredo, da Zahar. Outro é "10 Lições sobre Kant", de Flamarion Tavares Leite, da Ed. Vozes.
Um livro em que eu já fiz pesquisas episódicas e que gostei, foi "Kant - Uma leitura ds três 'Críticas'", do Luc Ferry, da Ed. Difel. Sobre esse, entretanto, eu não posso falar do "todo", mas gostei dos pontos onde fui.
Espero ter ajudado em alguma medida.
Abração.