O Fédon, de Platão, é uma obra "estranha". Vemos nela tantos apelos à doutrina órfico-pitagórica como argumento de autoridade, que só consigo compreender isso como uma certa euforia platônica, logo após o contato com essa linha de pensamento.
De qualquer forma, esteja eu certo ou não, no Fédon aparece não apenas a tranquilidade de Sócrates nos instantes que precedem sua morte, como também a sua felicidade diante desse fato. É lógico que essa felicidade vem fundamentada pela doutrina órfico-pitagórica - ainda que não absorvida integralmente -, que crê racionalmente numa vida após a morte, além de distinguir o modo em que essa continuidade de existência se dará - melhor para os filósofos e pior para os ignorantes. É verdade que Platão usa ferramentas mais poderosas para levar às últimas consequências essa percepção da continuidade e da melhor situação, no "além", para os filósofos, a partir do que será a sua Teoria da Ideias.
Nietzsche questionou de modo violento essa felicidade sócratica, indicando que o mártir da Filosofia não só abria mão da vida como, ao indicar que seria necessário pagar uma dívida com Esculápio - deus da Medicina -, estaria considerando a morte uma cura à "doença" que é a vida.
Ao ouvir uma frase do professor Fernando Muniz, hoje, lembrei dessa situação - se bem que o diálogo discutido era o Górgias. Disse o professor Muniz: "A ética relativiza a morte, porque a continuidade na existência poderia ser pior do que a própria morte, já que a vida daquele indivíduo, que permaneceria existindo, seria indigna demais".
A ideia de uma "relativização" da morte pode parecer radical demais, mas é bem interessante. Na sequência de sua afirmação, ele deu um exemplo bastante forte. Fez-nos pensar no indivíduo que, em meio a uma situação de falta de liberdade política, mesmo sob tortura, não se dispõe a entregar seus companheiros de ideologia libertária. O que o motiva é, certamente, a perspectiva - negativa - do ser humano que ele continuará a ser, enquanto existir. Ou seja, muito mais importante do que continuar a existir, na forma originária, é não continuar existindo sob uma "nova" forma de ser humano, esta, indigna.
Ou seja, Sócrates não teria se suicidado, abandonado propositalmente a vida - considerada uma doença -, como Nietzsche alardeara, mas permanecido com a vida digna que ele tanto prezava... mesmo que isso significasse o seu perecimento neste plano do sensível. O que ele teria feito seria "matar" um indivíduo "indigno" - antes mesmo do nascimento deste.
Esse Sócrates... ou Platão, não é fácil!!!