Como eu postei há algum tempo - um pouco antes de eu desaparecer mais uma vez -, participei de um simpósio sobre Nietzsche.
Num evento assim, normalmente, só são apresentados trabalhos que "dizem amém" para o pensador que motiva o tal simpósio. Mesmo uma opinião heterodoxa, se aparece, normalmente vem de um profundo estudioso do pensador tematizado, referindo-se usualmente a apenas mais uma leitura possível do mesmo. Nesse sentido, lembro-me até de uma comunicação que ouvi, no I Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche, ocorrido em 2006, em que se apresentava "a transcência em Spinoza". Nem preciso dizer a enxurrada de questionamentos que nosso comunicador recebeu. Bem, ainda sobre Spinoza, eu mesmo escrevi recentemente o artigo "O 'empirista' Spinoza" - e, apesar de aparentemente "esquisito", acho até que o luso-holandês ficaria satisfeito com o que leria no texto. Rsss.
Mas, dessa vez, vou comentar algo sobre Nietzsche. Trata-se do segundo dia do simpósio. Neste dia, tivemos como palestrantes matutinos, ninguém menos que Gilvan Luiz Vogel, da UFRJ, e a fantástica Maria Cristina Franco Ferraz, da Uff. À tarde, ouvimos Vânia Dutra de Azeredo, da PUC-Campinas, e Sílvia Velloso Pimenta Rocha, da Uerj. O interessante foi que os temas da parte da manhã e da tarde se encaixaram tão perfeitamente, que fecharam um dia "perfeito" no evento. O tema da manhã era "Interpretação" e o da tarde "Perspectivismo".
A professora Maria Cristina nos brindou com um texto fluente sobre as três metamorfoses do espírito - camelo, leão e criança - no "Zaratustra", dando-lhes uma interpretação bastante interessante.
O professor Gilvan Vogel não levou texto pronto, apenas aforismos de Nietzsche, que leu, para colocar em questão o tema da realidade como interpretação.
À tarde, a professora Vânia de Azeredo, tratou do perspectivismo comparando-o com as "visadas" de um modelo a ser representado por desenhistas, e a professora Sílvia Pimenta, em certa medida, retomou o desenvolvimento da palestra anterior para conduzir seu pensamento.
Comunicações feitas, passamos à parte dos questionamentos. E, agora, é que se explica o "trocadilho" aludido no título deste post. Isso porque os próprios nietzscheanos se digladiam tentando dar sustentação a algo tão pouco nítido quanto o pensamento de Nietzsche.
Primeiramente, é difícil explicar que a realidade é composta, não de fatos, mas apenas de interpretações... ainda que não haja "interpretadores". Além disso, se só existem interpretações - mesmo que sem interpretadores - todas elas são igualmente válidas?
O problema é que perguntar pela "validade" de uma interpretação já implica reconhecer uma "verdade" objetiva à qual aquela interpretação diz respeito de modo adequado. Mas, lembremos, não há "a verdade", para Nietzsche.
Mas se todas as interpretações devem ser igualmente tidas como válidas, já que não há um "Critério Objetivo de Verdade", por que não pensarmos, por exemplo, que Nietzsche era alguém inconsequente, sem pretensão nenhuma de filosofar?
Calma, calma! Eu não estou afirmando isso! Eu só pondero que essa também é uma interpretação... e, se estas é que compõem a realidade, a realidade está nela também.
Um questionamento que se mostrou difícil de contornar, foi o de que Nietzsche poderia estar dando "munição" aos "revisionistas", que negavam a existência do Holocausto, na II Guerra Mundial. "Absurdo!", gritariam alguns. Mas se não há fatos, só interpretações, por que as interpretações dos judeus deveriam ter mais valor que a dos nazistas?
Várias tentativas foram feitas de explicar o "inexplicável"... ou - para continuar com a semelhança de sonoridade - o pouco nítido em Nietzsche.
Esse tema se desloca levemente quando falamos do "Perspectivismo". Mas aí também continua como pano de fundo.
A professora Vânia, por exemplo, ao comparar as diferentes visadas de um mesmo modelo para diversos pintores, parece acabar por afirmar, mais aos moldes da Fenomenologia husserliana que propriamente do Perspectivismo nietzscheano, que há "algo" - uma espécie de "coisa em si", com uma essência específica - que se "dá a ver" fenomenicamente através de diversos "perfis" - o termo é da Fenomenologia -, isto é, através das diversas "perspectivas" - aí sim, nietzscheanamente falando.
"Absurdo!", gritariam os mesmos que já se manifestaram antes. Eu até tendo a concordar que não foi exatamente isso o que Nietzsche quis dizer, mas... lá estava uma nietzscheana a dar a sua "interpretação", ou olhando por mais uma "perspectiva" possível.
Se todo filósofo constrói um corpus tido como ortodoxo, Nietzsche, ao questionar a validade de uma perspectiva sobre as demais, ou da consideração de uma interpretação como mais próxima ao "fato" - que, a bem da verdade, não existe, para o alemão - coloca como problema até mesmo a "opinião correta" - daí, "orto doxa" - sobre o seu pensamento.
Conclusão: se nem os nietzscheanos se entendem sobre Nietzsche, quem sou eu para me atrever a fazê-lo?