terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

"Antropologia Filosófica Geral"

  O título do post é o mesmo do livro que estou lendo. É certo que este não é um dos "clássicos" da Antropologia Filosófica, como os de Ernest Cassirer, Groethuysen ou Lima Vaz, por exemplo, mas tem valor e, em especial, apresenta um dado interessante.
  O autor e a editora me eram totalmente desconhecidos. Tratam-se, respectivamente, do professor Raymundo Evangelista do Carmo, da Universidade Federal de Juiz de Fora, e da Editora "O lutador", de Minas Gerais.
  A edição é de 1975 - até onde pude entender, já que, espantosamente, não há Ficha Bibliográfica no livro!?!?
   O viés do texto é, claramente, existencialista... ou, antes, como o próprio autor escreve, fenomenológico-existencial. Há, como é comum em livros introdutórios de Antropologia Filosófica, uma introdução histórica, para depois serem abordados os temas principais do assunto. E é nessa introdução histórica que aparece aquilo que considerei uma grata surpresa: uma parte específica referente a Spinoza. Não é comum encontrar nosso querido luso-holandês em páginas de livros sobre essa parte da Filosofia. E não se trata de um parágrafo, não! Para se ter uma ideia, o honorável Santo Agostinho dispõe de aproximadamente três páginas; enquanto Spinoza ocupa em torno de duas páginas e meia!!!
  O texto dedicado a Spinoza aparece logo após a identificação de que a Filosofia já não conseguia mais tratar o homem como "senhor do Universo" - aos moldes da cosmologia ptolomaica-aristotélica-cristã -, lançando-o, pelas mãos da ciência, numa angústia frente à infinitude deste mesmo Universo. O diagnóstico mais radical dessa angústia frente ao infinito teria sido alcançado, até o período histórico anterior a Spinoza, com Pascal. O título que trata do nosso querido filósofo é, então, "Spinoza, o tranquilizador".
  O texto sobre Spinoza afirma que "Spinoza não poderá mais tranquilizar o homem reduzindo o universo a dimensões humanas; terá de conservar o infinito das ciências astronômicas. [...] poderá, sim, ... privar o Infinito de sua capacidade de causar vertigens ao homem, tirando-lhe o caráter aterrador".
  Gostei da ideia!
  O texto indica que Spinoza consegue privar o Infinito desse seu caráter aterrador através da "teoria da Única Substância de que tudo precede". Faz sentido. De alguma maneira, "somos" esse próprio Infinito que estava aí nos assustando.
  A intuição do texto me parece boa, mas a "execução" da argumentação, penso, deixa a desejar.
   Primeiro, porque o autor - com todo o respeito que merece, pelo conjunto da obra em questão - se engana quando registra que "Nesse panteísmo monista, os seres singulares são modos que participam de um ou de outro dos atributos [da Substância], sendo que o homem é o ser sui generis que participa dos dois". Bem sabemos que a doutrina chamada por alguns de "panpsiquismo" indica que todos os entes, viventes ou não, possuem uma "ideia do corpo", que receberia, em última instância, o nome de anima ou psyché. O paralelismo spinozano indica que todos os entes são modos de todos os atributos da Substância, dos quais conhecemos apenas dois: Extensão e Pensamento.
  Depois, porque conclui, sem uma argumentação necessária, que "podemos seguramente dizer que a solução spinozista não se impôs... porque, se a reconciliação da cosmologia com a antropologia realizada em sua obra podia oferecer tranquilidade ao homem, essa tranquilidade era alcançada mentalmente, racionalmente ou em ideia. Mas era muito difícil de ser vivida na vida concreta do homem concreto. O homem sempre tem dificuldades em conviver com o Infinito, em se identificar com algum Super-homem pairando acima dos acontecimentos".
  A experiência de vida de Spinoza não parece sugerir que a tranquilidade alcançada fosse apenas um fato racional e em ideia. Muito pelo contrário, parece mesmo indicar que era uma vivência existencial. Além do mais, o texto parece indicar, inicialmente, uma impossibilidade de obtenção dessa tranquilidade, mas depois reconhece apenas que "era muito difícil de ser vivida na vida concreta". Entre o "muito difícil" e o impossível há uma enorme distância. Até porque, o "muito difícil" foi reconhecido por Spinoza, quando ele encerra a Ética dizendo, na última frase do livro, que "todas as coisas notáveis são tão difíceis quanto raras".
   A última frase da parte citada, penso, é a mais problemática do texto - "O homem sempre tem dificuldades em conviver com o Infinito, em se identificar com algum Super-homem pairando acima dos acontecimentos". De modo algum Spinoza postula a necessidade de convivência com esse "Super-homem pairando acima dos acontecimentos". Isso corresponderia ao contário do que Spinoza representa com a Substância imanente visto que esse ente que paira "acima"  seria representante privilegiado justamente da transcendência que Spinoza recusa.
   Uma última observação: eu estou gostando do livro. Não pareceu? Rsss.
  Depois eu comento outras partes. 

3 comentários:

Jorge Bichuetti - Utopia Ativa disse...

Amigo, teus comentários me fascinaram mais que o próprio livro; falo isso porque lendo tuas reflexões fiquei com vontade de ouvir-te, não me peguei apaixonado pelo livro...
Espinosa me encanta... pela viagem que faz nos escombros da humana escuridão.
Abraços, Jorge

Ricardo disse...

Caro amigo Jorge:
Fico sempre muito feliz em ler o carinho que você transmite em seus comentários - bem como nos posts do seu blog. Justamente por isso, tenho que agradecer-lhe a participação neste nosso espaço de "amigos dos amigos".
Quanto a Spinoza, eu fico sempre "investigando" esse "senhor". Apesar de formalmente ser uma leitura difícil, acho que o conteúdo, ou seja, materialmente, é um pensador que, se alcançado na raiz da sua intuição, vai se tornando extremamente claro... e tornando o nosso entendimento das coisas "claro e distinto". É justamente por isso que insisto nesse lado existencial... vivencial de Spinoza. Sei que as categorias que ele escolhe não são totalmente adequadas - ou, até mesmo, são flagrantemente contrárias, em alguns casos - às do Existencialismo. Mas não há como negar que Spinoza está falando de "nós", sujeitos concretos e complexos, e não de um "sujeito transcendental", meramente intelectualmente construído, que não experimenta a vida. E eu sinto - posso estar completamente errado, mas é assim que a coisa ressoa em mim - que Spinoza se percebe na sua filosofia. Não fala de homens do "além"... nem mesmo de sujeitos "além do homem" - como o übermensch nietzscheano -, ideais e absolutos. Nós somos parte do Todo, mas, o que é bastante interessante, sem estar "apartados" deste mesmo Todo... talvez, "partícipes" fosse melhor do que "partes".
De forma bastante interessante, acho que Spinoza consegue tratar do psicológico, mesmo quando se dirige ao ontológico. Isto é, parece-me que ele consegue captar o homem na sua particularidade, mesmo enquanto trata da sua universalidade.
Esse Spinoza é fantástico!
Mais uma vez, agradeço sua sempre gentil e profícua participação.
PS. Lendo seu blog, fico com a impressão de que minha mãe gostaria muito de lê-lo. Vou sugerir isto a ela!

Vera disse...

Sou filha de Raymundo Evangelista do Carmo, autor do livro. Digitei o nome do meu pai no google e um dos sites que achei foi o seu. Fiquei feliz de ver seu comentário. Abraços