O título do post, como alguns irão lembrar, refere-se a um famoso livro lançado e relançado - ... e esgotado - pela Editora Vozes, de autoria do filósofo brasileiro Emmanuel Carneiro Leão - aluno de Heidegger, diga-se de passagem.
O livro era composto de ótimos pequenos artigos, fáceis de ler, que nos informavam sobre diversos assuntos e filósofos... fazendo-nos refletir sobre eles, e acabavam nos forçando a buscar um complemento do que fora dito.
Pois bem, o livro foi relançado, pela Daimon Editora, revisado e aumentado. O primeiro volume, segundo consta no próprio livro, é de 2008... entretanto, eu, "rato de livrarias", só o vi agora. Confirmando isso, na Livraria Leonardo Da Vinci, o atendente me indicou o livro "novo" do Emmanuel - mas que livro de 2008 é novo?
O subtítulo da capa do livro é "O pensamento na Modernidade e na Religião". Uma das últimas edições da Vozes já tinha uma rearrumação dos assuntos, e trazia algo similar a isso - diferentemente de versões mais antigas.
Entre as "novidades", temos o artigo "Heterodoxia de Spinoza". Achei interessante o começo desse material. Lá está escrito: "A partir da segunda metade do século XX, o caso Spinoza foi adquirindo atualidade com o recrudescimento do chamado fundamentalismo dentro das grandes tradições religiosas monoteístas".
Fiquei feliz em saber - ou, pelo menos, em ser informado por Carneiro Leão - que Spinoza voltava a ser "atual"... apesar de preferir que o motivo desse "vigor" fosse outro, que não o "fundamentalismo religioso". É bem verdade que Spinoza tem sempre muito a dizer em relação a isso - bem como, em relação à religião como um todo -, mas há muito mais na filosofia do tão querido holandês.
De qualquer forma, o texto conta a história pessoal de Spinoza, enquanto vítima do fundamentalismo irracional - e será que algum fundamentalismo é racional? - judaico, no evento da sua excomunhão. Fazendo-nos recordar a história de Spinoza, e mesmo o quadro anterior de perseguição aos judeus, por parte da Inquisição espanhola e portuguesa, o artigo consegue fazer uma ponte entre acontecimentos do século XV, XVI e XVII e os atuais.
Ponto para Carneiro Leão pela escolha de um filósofo que sempre terá muito a dizer sobre esse assunto, não só com seu espírito, mas também com sua própria história.
Entretanto, há alguns problemas no artigo. O primeiro deles é o terrível engano quanto à data da excomunhão de Spinoza, registrada como sendo 27 de julho de 1628, quando o filósofo nem mesmo era nascido. Além disso, indica que ele teria 27 anos quando do evento, quando Spinoza só contava com 23. Alguns poucos erros de impressão não incomodam tanto. A afirmação sobre o texto que Spinoza teria escrito para se justificar, após sua excomunhão, ainda ecoa como mera possibilidade entre os estudiosos do filósofo - sendo mais provável que não o tenha escrito, aliás. Também a afirmação de que o Tratado Teológico-Político teria a mesma intenção de defender e justificar suas posições é inverossímil. Afinal, o texto é publicado sem que Spinoza assuma sua autoria.
Entretanto, o que mais incomoda são enganos conceituais. A passagem que indica que "Deus é uma realidade, mas não sabemos de sua natureza, se é pessoal ou não, se é exterior e distinto do mundo criado!" é estranha demais. Spinoza, não no tratado em questão, mas na Ética, explica a natureza do seu Deus-Substância, mas, acima de tudo, não deixa margem de dúvidas para a não-pessoalidade de Deus e para sua não-exterioridade em relação à Natureza. Aliás, "Deus sive Natura" é justamente o lema a ser aplicado para ilustrar essa imanência.
Um pouco mais adiante, de modo um tanto quanto problemático, o texto afirma que "Se por um lado, ciência e Filosofia não são servas, por outro, também não poderão constituir a verdade da religião". Essa "verdade da religião" será citada, pouco depois, quando se escreve "Há, também, uma verdade originária da fé em que mora e vive o religioso: uma verdade histórica a que não tem acesso o homem da ciência ou da Filosofia". É bem verdade que há uma "verdade religiosa" para o "religioso" - mesma relação que já estabeleci, em outra ocasião, entre os gregos comuns e o mythos na Grécia Antiga -, até poderíamos considerar que o "homem da ciência e da Filosofia" não tem acesso a ela, já que este tipo de homem não participaria da mesma disposição psicológica e histórica que o crente. Mas fiquei com a impressão de que Carneiro Leão fala de uma "verdade" que está além da capacidade intelectual. Se ele acha isso, não deve usar Spinoza para endossar tal postura. Afinal, para o filósofo holandês não havia esse "além do racional"... e é justamente neste aspecto que podemos nos apegar para "rotular" Spinoza de "racionalista".
Em poucas palavras, acho que, se o exemplo do caso Spinoza nos faz refletir sobre o "fundamentalismo religioso", a explicação do pensamento spinozano precisaria ser mais cuidadoso.
Já em relação ao outro livro publicado pela mesma editora, do mesmo autor, chamado "Filosofia Grega - uma introdução", volume 1, a coisa é diferente.
Mas isso fica para outro post...