O segundo caso é bem menos grave, já pelo fato de não envolver uma morte... ainda bem. De qualquer modo, caso se tratasse de uma questão de racismo, deveria ser abordado com repúdio total, do ponto de vista moral... além, obviamente, das punições criminais.
O jogador Gérson, do Clube de Regatas do Flamengo - atleta de sucesso, respeitado no meio futebolístico e bem sucedido financeiramente - denuncia ter ouvido de um adversário estrangeiro, de nome Ramírez, durante uma partida, a seguinte frase: "Joga, negro!".
Ainda durante o jogo, Gérson teria reclamado com o juiz. Aparentemente, o ato discriminatório do atleta do Esporte Clube Bahia não foi percebido por outras pessoas, a não ser aqueles que se manifestaram, no momento, contra o supracitado ato, notadamente os jogadores do time do próprio jogador ofendido.
Como no caso anterior, é impossível descartar a possibilidade de discriminação racial. Mas há algumas variantes importantes em relação ao primeiro evento.
Não se trata de uma pessoa negra humilde, marginalizada pela sociedade, sofrendo uma agressão de alguém numa posição socialmente superior. Muito pelo contrário, trata-se de um jogador com experiência na Europa, com destaque num time de estrelas no Brasil, teoricamente recebendo injúrias racistas de um estrangeiro - sul-americano - que joga em um time de menor expressão no cenário nacional, e, muitíssimo provavelmente, com um salário e um status social bem menor que o do possível ofendido.
O sentir-se ofendido do jogador Gérson me parece mais estranho ainda em função de outra coisa: uma partida de futebol não é exatamente o lugar para "bons moços", numa conversa razoável e educada. Prova disso, inclusive, é uma discussão utilizada como prova, inicialmente pelo Flamengo, tentando demonstrar que o atleta do Bahia teria ofendido outro jogador do clube - desta vez, Bruno Henrique -, com o mesmo tipo de discurso, ao chamá-lo de "negro". Contudo, o clube baiano contratou especialistas que indicam que o atleta rubro-negro teria, num diálogo durante o jogo, chamado o possível ofensor de Gérson de "Gringo de merda".
Ninguém deseja que exista desrespeito dentro das quatro linhas do gramado, mas... o fato é que isso existe, e é tomado como "parte do jogo" pelos próprios atletas. Tanto é que os jogadores ofendem, são ofendidos e... normalmente não se manifestam. Quando um deles decide fazê-lo, passamos a conhecer o que acontece dentro dos gramados de forma aberta, mas velada para nós, os espectadores.
Acho, sim, que pode ter havido discriminação em ambos os casos, o do atleta Ramirez, ao chamar Gérson de "negro", sem acrescentar, por exemplo, "de merda", mas também o de Bruno Henrique, se chamou o atleta do Bahia de "gringo", desta vez, acrescido do "de merda". Mas, sinceramente, dentro de um campo de futebol, ainda mais pela origem usualmente humilde dos jogadores, conseguiríamos realmente falar em "racismo"?
Essa pergunta pode parecer desconsiderar que a prática racista é abominável em qualquer espaço social. Mas não se trata disso. O que quero ponderar é que acabamos tomando por racismo - aquele que realmente priva pessoas de direitos sociais fundamentais, inclusive, infelizmente, algumas vezes, do próprio direito à vida - uma discriminação que ocorre num espaço em que os antagonismos, inclusive com uso de violência entre os próprios "colegas" atletas, são até valorizados pelos espectadores - e "contagiam" negativamente os próprios participantes dos jogos.
É muito bonito os jogadores entrarem em campo com faixas dizendo "Não ao racismo" ou "Vidas negras importam", mas, na primeira bola dividida, saírem de dedo em riste, no rosto do adversário-colega de profissão, emitindo um montão de impropérios, vários deles de cunho discriminatório. Portanto, parece que eles mesmos se dão essa "licença poética" de dizerem "Você é um merda!", e isso não passar de uma expressão hiperbólica de desconforto com o outro... o que vale, igualmente, para "gringo de merda", "negro", "branquelo", "paraíba" - para qualquer nordestino -, etc.
Aliás, em relação a essa última, se formos nos ofender mais radicalmente, acho que a discriminação é maior, porque "negro" é normalmente usado para pessoas de pele negra/preta, enquanto "paraíba" é uma referência jocosa que se faz a qualquer nordestino, e não somente àquele que efetivamente nasceu na Paraíba.