domingo, 31 de janeiro de 2010

30 de janeiro... de 1933

  Nessa data tem início, ainda que não se pudessem imaginar todas as suas consequências, um processo que custaria muito à humanidade: a ascensão de Hitler, na Alemanha.
  É fato que esse é um marco um tanto artificial. Afinal, uma planta não nasce apenas quando o primeiro broto irrompe do solo; já na escuridão do subsolo, pode-se falar da germinação da semente como o "começo". Nesta data, o futuro líder do Terceiro Reich é nomeado chanceler do Reichstag - o Parlamento Alemão -, mas, para isso, já trabalhava - ou "germinava" - sob os "escombros" de uma Alemanha humilhada, a partir da instauração da República de Weimer.
  O fenômeno é complexo... e se tornaria ainda mais, com o passar dos anos. Entretanto, parece-me, não há como fugir a ele, deixando de analisá-lo criticamente, pois se hoje, por um lado, acreditamos que ele não se repetiria  com a mesma intensidade - e eu realmente espero que não -, por outro, não há como deixar de reconhecer que "pequenos hitleres" - que atuam, talvez, com preocupações e alcance mais local - ainda vivem por aí.
  Senhores, por exemplo, que ocupam palanques e espaço na mídia para falar em defender "o nosso mercado de trabalho", diante do desemprego estrutural do mundo globalizado, exacerbando posturas nacionalistas de antagonismo aos "outros, que não nós", são pequenas sementes dessa intolerância que se agigantou a partir de 30 de janeiro de 1933.
  Segue um texto sobre o acontecimento, transcrito da coluna "Hoje na história", do Jornal do Brasil de ontem, que dispõe de um blog ( http://jblog.com.br/hojenahistoria.php ) contendo vários outros acontecimentos de grande destaque na História, inclusive com a reprodução da folha do jornal publicado à época.
 
  30 de janeiro de 1933 - Hitler é nomeado chanceler alemão

  "Após vários anos de implacavel luta política, o Partido Nacional Socialista Alemão, chefiado por Adolf Hitler, conseguiu chegar ao poder e, em colaboração com outros grupos pan-nacionalistas, assumir a alta direção dos negócios públicos do Reich.
  Nos últimos pleitos eleitorais realizados na Alemanha, os nazistas conquistaram o controle do Reichstag (parlamento alemão), mas nem o Presidente da República, marechal von Hindenburg, e nem os ex-chanceleres von Papen e von Schleicher, julgavam prudente a nomeação de Hitler como primeiro-ministro da República, devido ao temperamento exaltado do ex-combatente da Primeira Guerra, mas nada puderam fazer para que Hitler não ascendesse ao poder: o Partido Nacional Socialista tinha maioria dos votos no Parlamento Federal e não admitia outra coisa a não ser a chancelaria do Reich. Assim, Hitler, chefe da maioria da representação legislativa, assumiu o cargo montando um novo Ministério junto aos demais grupos nacionalistas alemães e resolveu a crise política e parlamentar da Alemanha. Ao ser nomeado chanceler, Hitler prometeu ao presidente Hindenburg que respeitaria as leis da nação para evitar problemas diplomáticos europeus.
  Como medidas de precaução, o presidente nomeu como vice-chanceler um homem de sua confiança que já havia ocupado o cargo que então estava sendo entregue a Hitler, o Sr. von Papen, e exigiu que o Barão von Neurath fosse mantido à frente do Ministério das Relações Exteriores, para prosseguir com os seus trabalhos que eram bem vistos pelos demais países europeus.
  A nomeação de Hitler como chanceler do Reich provocou manifestações contrárias logo após a posse do futuro ditador. A Comissão Executiva do Partido Comunista iniciou uma campanha por meio de jornais e panfletos, incentivando o povo a uma greve geral. “Sua ascenção ao poder constitui um golpe de Estado contra os trabalhadores”, dizia a nota divulgada pelo partido. A grande imprensa, porém, se posicionou a favor do novo Chefe de Governo, celebrando sua nomeação ao cargo como um acontecimento histórico inspirado no exemplo fascista, caracterizando-o como uma grande mudança na política do Reich.
  Hitler ocupou o cargo de chanceler até a morte do presidente Hindenburg em agosto do ano seguinte. A partir daí, ele fundiu em suas mãos as funções de chanceler e presidente, instalando uma ditadura baseada nos ideais de superioridade da raça ariana e de hegemonia germânica na Europa, o que levou, seis anos mais tarde, ao maior conflito bélico do século XX: a Segunda Guerra Mundial. A ditadura de Hitler só terminou com o seu suicídio em 1945, na antevéspera da rendição incondicional das forças alemães frente aos Aliados e o fim da guerra na Europa."

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Viva os 400!

  Apesar de não pretender trocar qualidade por quantidade, apenas, se pudermos ter a primeira e, mesmo assim, conseguirmos fazer contas de somar... aí é tudo de bom! Rsss.
  Para quem não entendeu o post, ele é apenas um registro de que já chegamos aqui nos "amigos de Spinoza" - aliás, "Spinoza e amigos" - a "redondos" quatrocentos posts. Uhhuuu! E... caminhando para o meio milhar! Rsss.
  Se eu fosse contar as participações dos "amigos dos amigos", os números seriam maiores e a qualidade - não duvido - ganharia uns pontos a mais.
  Então, obrigado pelo estímulo da leitura e, principalmente, pelo "combustível" que é o comentário.
  E... Viva os 400!

"Qual socialismo?"

  Num post sobre o "Guia politicamente incorreto da História do Brasil", eu registrei um ponto de vista diferente de observação do período da Ditadura no Brasil, a partir do texto do livro.
  Pode ficar a impressão de uma crítica desarrazoada ao comunismo, feita segundo uma visão preconceituosa, baseada numa convicção neoliberal e de "direita".
  Mas dá para questionar se é assim mesmo, quando vemos que o pensador político italiano Noberto Bobbio (1909-2994) - apesar de não estar discursando sobre a Ditadura brasileira, obviamente - propõe uma reflexão sobre a possibilidade de um "socialismo democrático", no livro que dá título a esse post. Possibilidade, aliás, que foi refutada pelo jornalista Leandro Narloch no item "os guerrilheiros não lutavam por liberdade", do "Guia...".
  É importante lembrar alguns dos temas que fizeram parte das reflexões de Bobbio: a democracia representativa, o ofício dos intelectuais, a natureza e as múltiplas dimensões do poder, a díade esquerda-direita e um socialismo não-marxista democrático.
  Neste livro, especificamente, os ensaios têm os seguintes títulos: "Democracia socialista?", "Existe uma doutrina marxista do Estado?", "Quais alternativas à democracia representativa?", "Por que democracia?" e "Qual socialismo?".
  Vejamos o interessantíssimo comentário do filósofo brasileiro Leandro Konder sobre o livro: "A experiência histórica do movimento socialista, em suas formas cada vez mais variadas, ensina que o socialismo só avança quando consegue se renovar. E, atualmente, ela já ensina, também, que a reflexão socialista precisa de interlocutores 'externos', quer dizer, precisa - para renovar-se - do diálogo com linhas de pensamento não comprometidas com os projetos socialistas.
  Renovar-se não é uma operação simples, automática; é um processo que passar por autocríticas intranquilizadoras, frequentemente dolorosas. Em sociedades politicamente complexas, os sujeitos empenhados em transformar as relações sociais precisam se criticar mutuamente, se reeducar, uns aos outros. A verdadeira renovação passa a depender, cada vez mais, do pluralismo.
  Por isso, a vanguarda do pensamento marxista está muito empenhada, hoje, numa revalorização do pluralismo. E os marxistas de vanguarda, na Itália, já se deram conta da extrema importância de um interlocutor como Norberto Bobbio.
  Bobbio, pensador político, professor de Filosofia do Direito, é um homem de imensa cultura e estupenda honestidade intelectual. É um liberal que estudou Marx, conhece os meandros do pensamento marxista e não se sente nem um pouco constrangido em acolher tudo o que nele lhe parece bom. É exatamente essa abertura em face de Marx que lhe permite, por outro lado, questionar de maneira bastante despreconceituosa e fecunda uma série de aspectos da perspectiva filosófica e política do pensador alemão.
  A história do século XX mostra que a conquista do poder, nas revoluções, não resolve o problema de como exercê-lo. Nenhuma revolução, até agora, enfrentou seriamente a questão das garantias contra os abusos do poder. A teoria da ditadura do proletariado deu no que deu. Bobbio, então, nos incita a refletir sobre a concepção do Estado de Marx: uma concepção que precisa de desenvolvimentos, complementações e - também - correções, revisões.
  Não temos o direito de nos esquivar ao exame das questões relativas a como o poder se exerce. Os riscos de uma omissão, nas condições atuais, seriam enormes. A humanidade está duplamente ameaçada de extinção, diz Bobbio: pela guerra atômica e pelo esgotamento dos recursos do planeta. Seríamos sumamente insensatos se não nos dispuséssemos a aprender um pouco sobre as condições - não necessariamente mais humanas, porém menos ferozes - que podemos criar para o exercício do poder.
  A tarefa é grave e delicada. Cumpre enfrentá-la com prudência. Bobbio sabe disso e evita se apresentar como 'dono da verdade'. Seu método  lembra o do velho Sócrates: ele aparece diante de nós como um arguto perguntador. Não casual que todos os ensaios deste volume tenham títulos interrogativos. Qual socialismo? - como notou Celso Lafer - contém perguntas 'incisivas e bem formuladas', relativas a temas para os quais Bobbio não pretende ter 'respostas definitivas'".
  Destaco que a necessidade de "renovação" do pensamento socialista já era motivo de reflexão em 1975/1976 - quando os ensaios foram escritos -, não esperando pelo inesquecível 1989, com a queda do Muro de Berlim, ícone da "morte da Esquerda", para serem iniciados.
  Outro ponto interessante é a constatação de que a "verdadeira renovação [do socialismo] passa a depender, cada vez mais, do pluralismo". O neoliberalismo deveria "pegar carona" nessa constatação e ponderar sobre a necessidade da sua própria renovação. E, quem sabe, não poderemos nos livrar saudavelmente dos dois "rótulos" - esquerda e direita?
  Por último, apenas, a constatação de que, se uma catástrofe atômica já não é tão provável, e por isso poderia deixar a reflexão de Bobbio ultrapassada, o esgotamento dos recursos do planeta é cada vez mais perceptível, atualizando bastante as considerações do italiano.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Um poema "existencialista"

  Embora Alphonsus de Guimaraens (1870-1921) seja um poeta simbolista, e não um filósofo, já ressaltei neste blog, por diversas vezes, as "aproximações" entre a Filosofia e a poesia.
  No poema "Náufrago", por exemplo, aparecem vários conceitos do Existencialismo - a angústia, o Nada, o estar lançado no mundo, o Ser-para-morte... ou será que eu é que os coloquei lá? Que decidam os "amigos dos amigos"!

NÁUFRAGO

E temo, e temo tudo, e nem sei o que temo.
Perde-se o meu olhar pelas trevas sem fim.
Medonha é a escuridão do céu, de extremo a extremo...
De que noite sem luar, mísero e triste, vim?

Amedronta-me a terra, e se a contemplo, tremo.
Que mistério fatal corveja sobre mim?
E ao sentir-me no horror do caos, como um blasfemo,
Não sei por que padeço, e choro, e anseio assim.

A saudade tirita aos meus pés: vai deixando
Atrás de si a mágoa e o sonho... E eu, miserando,
Caminho para a morte alucinado e só.

O naufrágio, meu Deus! Sou um navio sem mastros.
Como custa a minha alma a transformar-se em astros,
Como este corpo custa a desfazer-se em pó!

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Despotismo "atualizado"

  Achei atualíssimo um trecho escrito em 1835, por Alexis Henri Charles Clérel, visconde de Tocqueville (1805-1859), pensador político e historiador francês, do livro "A democracia da América".
  Perguntando-se sobre o despotismo, Tocqueville - como era chamado - nos faz refletir não só sobre as "lideranças" modernas - sejam elas políticas, religiosas e etc. -, mas também sobre nós mesmos.
  Segue a transcrição do trecho.
  "Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser produzido no mundo" - até aqui, tudo relativamente bem. Mas agora, apresenta-nos uma profunda crítica em relação aos "umbigólatras" modernos, quando diz: "Vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos, à procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. Cada um deles, afastado dos demais, é como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares, para ele, constituem toda a espécie humana; quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os e não os sente; existe apenas em si e para si mesmo". Nossa... o quadro é tão realista que choca um bocado.
  Tocqueville, então, gira o timão e se encaminha para a tal "liderança" que eu havia mencionado, sobre a qual incide sua reflexão central, com um certo "ar machiavelliano" - escolho esse adjetivo para me apartar do tendencioso e enganoso "maquiavélico" - e mesmo orwelliano (lembrando o Big Brother, do livro "1984"). Escreve: "Acima destes [dos cidadãos], eleva-se um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de garantir o seu prazer e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso, regular, previdente e brando. Lembraria mesmo o pátrio poder, se, como este, tivesse por objeto preparar os homens para a idade viril; mas, ao contrário, só procura fixá-los irrevogavelmente na infância; agrada-lhe que os cidadãos se rejubilem, desde que não pensem senão em rejubilar-se. Trabalha de bom grado para a sua felicidade, mas deseja ser o seu único agente e árbitro exclusivo; provê a sua segurança, prevê e assegura as suas necessidades, facilita os seus prazeres, conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria, regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe falta tirar-lhes inteiramente, senão o incômodo de pensar e a angústia de viver?".
  Particularmente, mesmo considerando que toda a passagem produz uma imagem forte, fixei-me em "Que lhe falta tirar-lhes inteiramente, senão o INCÔMODO DE PENSAR e a ANGÚSTIA DE VIVER?". Diagnóstico perfeito de Tocqueville para tornar o "homem" em massa de manobra.
  Continuando.
  "É assim que, todos os dias, torna menos útil e mais raro o emprego do livre arbítrio; é assim que encerra a ação da vontade num pequeno espaço e, pouco a pouco, tira a cada cidadão até o emprego de si mesmo. A igualdade preparou os homens para todas essas coisas, dispondo-os a sofrer e, muitas vezes, até a considerá-las como um benefício. Depois de ter tomado cada um por sua vez, dessa maneira, e depois de o ter petrificado sem disfarce, o soberano estende o braço sobre a sociedade inteira; cobre a sua superfície com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não seriam capazes de vir à luz para ultrapassar a multidão; não esmaga as vontades, mas as enfraquece, curva-as e as dirige; raramente força a agir, mas constantemente opõe resistência à ação; nunca destrói, mas impede de nascer; nunca tiraniza, mas comprime, enfraquece, prejudica, extingue e desumaniza, e afinal reduz cada nação a não ser mais que rebanho de animais tímidos e diligentes, dos quais o governo é o pastor".
  Caramba, pessoal... que crítica contundente! Como registrei, no começo, parece-me um retrato fiel do que temos visto em várias dimensões da sociedade atual.
  Bem... se é assim, resta-nos o consolo de, se não melhoramos, não termos também piorado tanto... É sempre a mesma coisa, embora mude o tempo e o local!

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A "necessidade de compreender"

  Na entrevista concedida a Günter Gaus, Hannah Arendt é questionada sobre a influência de seus trabalhos junto ao grande público. Durante a própria pergunta, Arendt interrompe Gaus e indica que, enquanto trabalha, não se preocupa "minimamente nem com a influência nem com a eficácia". Gaus insiste, questionando:  "Mas, e quando termina o seu trabalho?". Arendt inteligentemente responde: "Nessa altura, está feito, acabou-se".
  A continuação da resposta, entretanto, é que motiva este post. Arendt diz: "O mais importante para mim é compreender [...] O que conta para mim é o próprio processo do pensamento, e contento-me bastante bem com ele. Se, depois, consigo exprimir o meu processo de pensamento adequadamente através da escrita, isso deixa-me também satisfeita [...] Imaginar-me-ei a exercer uma influência? Não. O que quero é compreender. E se os outros compreenderam - no mesmo sentido em que eu compreendi -, isso causa-me um sentimento de satisfação".
  Não sei se todos os pensadores têm essa "humildade". Penso, pelo contrário, que muitos escrevem meramente para convencer os outros dos seus próprios pontos de vista. Mas Arendt não! Como ela diz, o mais importante é compreender.
  A única coisa que pode parecer estranha, aqui, é que parece que Arendt fala da compreensão como o final de um processo. E isso não combina muito bem com um filósofo, acho. O pensamento filosófico não se cansa de revisitar os problemas "compreendidos" e de encontrar neles novos "modos de compreensão". Talvez justamente por isso é que Arendt não queira ser vista como uma filósofa, e sim com uma espécie de "cientista política". Afinal, na "ciência", o que se procura são compreensões efetivas do mundo, ainda que reconhecidamente "precárias", enquanto meramente temporárias.
  De qualquer modo, esse interesse vivo pelo "compreender", sem dúvida alguma, remete diretamente à Filosofia... ainda que esta não se contente em abaixar os panos e permanecer em um porto seguro, sempre disposta a novas aventuras por mares desconhecidos.
  Voltando ao texto.
  Em outro ponto da entrevista, Arendt diz que essa "necessidade de compreender" manifestou-se muito cedo. Ela conta, sobre sua leitura precoce de Kant, que "A Filosofia se impunha. Desde os quatorze anos". E realmente mostra sua paixão ao dizer: "Para mim, a questão punha-se nos seguintes termos: se não estudar Filosofia, estou por assim dizer perdida! Não que eu não gostasse de viver, mas, tendo em conta a necessidade de que lhe falei há pouco, precisava de compreender".
  Perguntada sobre quais suas leituras "juvenis", além de Kant, ela cita dois nomes de peso: "Antes do mais, Filosofia das Visões do Mundo, de Jaspers... nessa altura, eu tinha quatorze anos. Logo a seguir, li Kierkegaard".
  Em relação ao domínio do grego, demonstrado durante seu curso universitário, conta-nos: "Sempre gostei muito de poesia grega, e a poesia desempenhou um grande papel na minha vida. Assim, escolhi o grego porque era mais cômodo e porque já o sabia, mais ou menos, ler".
  E o detalhe é que, quando Gaus fala sobre os dons intelectuais de Hannah, ela diz: "Não há motivo para tanto, está a exagerar...". Talvez porque, como conta, ela não recebesse nenhum tipo de incentivo especial, em casa, por suas ótimas notas. Segundo ela: "Eram coisas que não pareciam demasiado importantes".
  Difícil encontrar um defeito nessa senhora, hein!
  De qualquer forma, darei às mulheres uma dica de um ponto polêmico. Em dado momento da entrevista, falando sobre a emancipação das mulheres, a Sra. Arendt diz: "Vou-lhe parecer muito antiquada. Sempre pensei que há certas ocupações que não convêm às mulheres, que não condizem com elas, por assim dizer. Não fica bem a uma mulher dar ordens. E ela não deve pôr-se em situação de ter de o fazer, se quiser continuar a ser feminina". Xiiii... Opinião complicada! Entretanto, a pensadora diminui um pouco o impacto desse ponto de vista quando diz: "Se tenho ou não razão acerca desse ponto, isso não sei". Ufa... salvação da lavoura! Rsss.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Aquisições recentes

  Ainda bem que falo e leio fluentemente em... Português! Rsss. Afinal, vieram de Portugal as minhas duas últimas aquisições literárias: "Viver para quê? - Ensaios sobre o sentido da vida", organizado por Desidério Murcho, e "Compreensão e Política e outros ensaios", de Hannah Arendt.
  Em que pese o fato do primeiro ser organizado pelo brasileiro Desidério Murcho, professor de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto e um dos autores do excelente blog "Crítica na rede", a publicação é da editora portuguesa Dinalivro. O livro reúne ensaios de vários pensadores contemporâneos, como Thomas Nagel, por exemplo.
  Apesar de não lido, parece ótimo!
  O segundo, também uma coletânea de ensaios, é da Relógio d'Água Editores, também portuguesa. Dois que já li são: "O que fica? É a língua materna que fica" e "O que é a Filosofia da Existência". O primeiro é a transcrição da entrevista de Hannah com Günter Gaus, da qual eu já havia dado o link, aqui no blog, no You Tube. Em vez da "irritante" legenda que ora sumia rápido demais, ora ficava "eternizada" na tela, enquanto a pensadora "desfiava" seu Alemão, o livro contém nosso belo Português em tranquilo repouso - preto no branco. A segunda é a tradução de um ensaio publicado em Alemão em 1948. Ele contém vários conceitos importantes, explicados por alguém muito próximo ao fantástico Heidegger - a nossa Arendt -, mas que aborda também Kierkegaard, Jaspers e Schelling, por exemplo... sobrando até, numa rápida passagem, o que me pareceu uma crítica ao "nosso" Spinoza.
  Depois escrevo mais sobre ambos os livros.

"Guia politicamente incorreto da História do Brasil" (2)

  Em novembro do ano passado, eu registrei que Ancelmo Goes havia publicado em sua coluna alguns comentários sobre o recém lançado, à época, "Guia politicamente incorreto da História do Brasil", de Leandro Narloch.
  Até semana passada, eu havia me contentado em ler esses pequenos comentários. Mas comecei a folhear o livro e me deparei com o capítulo - o último -, entitulado "Três coisas que a tortura não esconde", que se referia à Ditadura brasileira, iniciada em 1964, com a revolução militar. E considerei muito apropriado conhecer, um pouco mais criticamente, essa parte de nossa história, justo agora que está se polemizando tanto em torno do Plano Nacional de Direitos Humanos, que rediscutiria a atuação dos militares nesse período, principalmente no que diz respeito às torturas.
  Antes de qualquer coisa, não posso deixar de dizer que, em minha opinião, a tortura é um crime de alcance muito maior que um atentado contra a individualidade. Considero que, da mesma forma que atentados em locais públicos, a tortura agride a "humanidade" dos homens - até mesmo a do próprio torturador.
  Dito isto, transcrevo, quais seriam as três coisas que a tortura - da época em questão - não esconderia: (1) a guerrilha provocou o endurecimento do regime militar; (2) os guerrilheiros não lutavam por liberdade e (3) o sonho acabou: que bom.
  Em relação ao primeiro tópico, o autor escreve: "É muito repetida a ideia de que os grupos de esquerda decidiram partir para a luta armada porque essa era a única resposta possível à rigidez da ditadura", mas esclarece que "na verdade, antes de os militares derrubarem o presidente João Goulart, já havia guerrilheiros planejando ações e se preparando para elas". Além disso, lembra-nos que "em 1959, quando Fidel Castro chegou ao poder em Cuba, mostrou ao mundo que era possível vencer os governos de direita por meio de uma guerrilha pequena e organizada". E conclui que, em função de determinadas ações planejadas pelos grupos de esquerda, como o Movimento Revolucionário Tiradentes, "quando ações como essas chegavam aos jornais, contribuíam para o clima de golpe iminente: a esquerda ou a direita tomariam o poder à força no Brasil".
  Esse é o clima de "golpe" iminente que o autor nos descreve. Além disso, para confirmar sua tese de que o que se julga ser o efeito - a atuação dos guerrilheiros - era na verdade a causa do excesso pelo lado dos militares, ele escreve que "mesmo depois do golpe militar, não havia tanto motivo assim para aderir a guerrilhas. Apesar de a ditadura ter começado em 1964, até 1968 o governo tinha de levar as leis para serem apreciadas no Congresso e as pessoas podiam responder processo criminais em liberdade. Esperava-se que os militares logo promovessem eleições [...] O regime só endureceu de verdade em dezembro de 1968, com o Ato Institucional nº 5".
  Com relação ao fato de os guerrilheiros não lutarem por liberdade, o autor traz uma tese do livro "A Ditadura escancarada", do jornalista Elio Gaspari, de que "a luta armada fracassou porque o objetivo final das organizações que a promoveram era transformar o Brasil numa ditadura, talvez socialista... Seu projeto não passava pelo restabelecimento das liberdades democráticas". Ele cita ainda dois historiadores, ex-guerrilheiros, Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá, que, no livro "Imagens da Revolução", analisaram estatutos de dezoito grupos de luta armada das décadas de 60 e 70, e chegaram à conclusão que "dos dezoito textos, catorze descrevem o objetivo de criar um sistema de partido único e erguer uma ditadura similar aos regimes comunistas que existiam na China e em Cuba". Não chega a espantar o fato, por exemplo, do grupo "Ação Popular" defender "substituir a ditadura da burguesia pela ditadura do proletariado", afinal essa era uma tese fundamental do próprio Marx. Mas choca um pouco falar em luta para tirar uma ditadura (de direita) para implantar outra (de esquerda)!
  Em relação dessa aproximação ao ideário de China e Cuba, que seriam obviamente as referências normais na época, o autor faz uma consideração interessante, embora pertença claramente ao campo meramente especulativo: "Basta olhar para os países comunistas de hoje para perceber o que os heróis da luta armada fariam com a gente. Os cubanos ... se prostituem para comprar sabonetes [...] A China vigia a internet, prende blogueiros indesejáveis".
  O autor continua nos seus exercícios imaginativos citando, por exemplo, a possibilidade da Amazônia se transformar em uma espécie de "campo de trabalhos forçados" de "inimigos do regime". Mas isso eu deixo de lado, por achar especulativo demais.
  Por último, o autor mostra satisfação com o fato de o sonho comunista ter acabado no Brasil. Ele cita um caso emblemático do  guerrilheiro Márcio Leite de Toledo, que foi julgado e assassinado pelos companheiros, em função do seu pensamento de se afastar da organização. Após o fuzilamento do rapaz de 26 anos, foi lançado um panfleto com os seguintes dizeres: "Uma organização revolucionária, em guerra declarada, não pode permitir a quem tenha uma série de informações... vacilação [...] Um recuo, nesta situação, é uma brecha aberta em nossa organização. [...] Tolerância e conciliação tiveram funestas consequências na revolução brasileira [...] Ao assumir responsabilidade na organização cada quadro deve analisar sua capacidade e seu preparo. Depois disto não se permite recuos [...] A revolução não admitirá recuos!".
  Além desse caso, cita-se a execução, dentro da sala de aula, do professor Francisco Jacques Moreira de Alvarenga, acusado pelos companheiros da Ação Libertadora Nacional de ter revelado informações sobre o grupo. Pouco se considerou o fato disso ter acontecido mediante tortura. Revela-se ainda o fato de que vários guerrilheiros do Araguaia eram tão pouco queridos pela população local que, tão logo passavam por uma comunidade, eram delatados à Polícia.
  Destaco uma passagem que talvez seja válida para qualquer tempo e lugar. Escreve Leandro Narloch: "Movimentos revolucionários costumam colocar seu ideal político acima dos valores individuais e das regras tradicionais da vida. Cria-se assim uma superioridade moral que lembra a dos cristãos nas Cruzadas - um pensamento do tipo 'eu luto por um mundo justo, uma sociedade sem contradições, portanto posso matar e roubar em nome desse ideal sagrado'".
  Aproveitando a comparação entre a ideologia marxista-leninista e a cristã, à época das Cruzadas, vale a citação, feita pelo autor, do filósofo Nietzsche, em O crepúsculo dos ídolos: "Se atribuímos nosso estado ruim a outros ou a nós mesmos - a primeira coisa faz o socialista, a segunda, o cristão, por exemplo - é algo que não faz diferença".
  Por último, sem nenhuma tentativa de "apagar" à força algo que realmente existiu, segue uma comparação do número de vítimas entre a Ditadura brasileira e diversas outras, a fim de mostrar a relativa "brandura" da nossa.
  "O regime militar torturou pelo menos duas mil pessoas, com choques, empalações, palmatórias nos seios das prisioneiras, entre outras selvagerias" - tristíssima rememoração! Apesar disso, a Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos reconhece que "em 21 anos, as ações antiterrorismo criaram 380 vítimas", e o autor compara: "é muito menos que os 30 mil mortos pela ditadura argentina ou estimativa de 3 mil vítimas dos militares do Chile (país com menos de 10% da população brasileira)". Essa comparação não para em ditaduras "de direita", avançando para os dados de Cuba (7.038 mortos), China (700 mil mortos) e Camboja (assustador 1,7 milhão de mortos sobre uma população de 8,2 milhões, ou seja, 21% da população morta!!!).
  Fechando o post, seria importante apenas registrar que o autor, que é jornalista e não historiador, faz uma boa pesquisa, citando as suas fontes e observa que "a história nem sempre é uma fábula: não tem uma moral edificante no final e nem causas, consequências, vilões e vítimas" e que seu livro "não quer ser um falso estudo acadêmico... , e sim uma provocação".
  No mínimo, vale para que possamos pesar melhor nossas opiniões!

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A estética moderna

  Conforme eu sempre digo, sou um "inespecialista" em pintura. Mas... também sempre repito que nunca cedo, em função dessa ignorância teórica assumida, a usufruir do prazer estético de belos quadros.
  Apesar de tudo, continuo tentando entender melhor o fenômeno estético... e conto com a Filosofia, para isso. Alguns perguntariam por que não me dirijo às artes para interrogar sobre pintura. E eu respondo, talvez racionalisticamente demais, que acho que a justificativa das coisas está sempre fora delas, apesar de só se dar através delas.
  Um perigo na Filosofia da Arte foi destacado por Friedrich Schlegel ao dizer: "Naquilo que se chama Filosofia da Arte falta habitualmente uma das duas: ou a Filosofia, ou a Arte". Enfrento esse perigo, carregando comigo, pelo menos, um pouco de crítica sobre o que vejo e leio.
  Voltando à minha "inespecialidade" declarada, digo humildemente - reconhecendo que me falta maior profundidade na opinião - que não gosto de "Arte Moderna" - "moderna", aqui, com o sentido do que nos é contemporâneo. Falta-me sensibilidade suficiente para entender como um ponto preto numa tela branca pode ser belo. Da mesma forma, não me toca o senso estético ver pinceladas "erráticas", com uma mistura um tanto "grotesca" de cores, que poderiam ter sido produto de uma criança em fase pré-escolar. Nem estou falando de "sentido", pois este, por vezes, nem é necessário. Mas comento a própria organização e técnicas "impressas" na tela.
  A última edição de "Filosofia - Ciência & Vida" trouxe uma matéria confrontando a "estética tradicional normativa e prescritiva" com a "estética do gênio". A primeira, conhecemos bem. A segunda, informa-nos o autor, seria aquela "na qual a criação encontraria sua liberdade em relação à subordinação das regras".
  Parti, ávido, para a leitura do texto cujo título era "Criação artística e crítica filosófica: a origem da reflexão estética moderna", de autoria do professor da PUC-RJ e da UFRJ, Pedro Duarte de Andrade. E me deparei, apesar daquele incômodo "moderna" no título, com a referência à pintura do Romantismo. Ufa... arte de verdade! "Olha o juízo de valores acrítico, Ricardo!", disse-me a "voz da consciência". 
  O texto é muito interessante. Logo no início, explica-se o "moderna", sem o sentido comum do "Arte Moderna", com uma citação do poeta e teórico da arte Charles Baudelaire: "Quem diz Romantismo diz Arte Moderna". Depois, o autor escreve sobre a origem da "estética moderna", que estaria no conceito de gênio: "Hegel afirma que, ... no fim do século XVIII, surgira... o 'período do gênio', aberto pelas primeiras produções poéticas de Goethe e de Schiller. Por esta expressão, ele buscava denotar a quebra com a obediência às ordens classicistas para a Arte". Ou seja, começava a imperar a liberdade para criar, enquanto "as regras fixas... perdiam sua força coerciva".
  O texto destaca uma observação de Maurice Blanchot de que "achamos [no Romantismo] não a glorificação do instinto ou a exaltação do delírio, mas, bem ao contrário, a paixão do pensamento". Mas escreve Pedro de Andrade que "se depois o movimento caiu várias vezes no emocionalismo exagerado que conhecemos, foi porque abandonou, em outras vertentes, aquilo que buscaram - e como o buscaram - os primeiros românticos. Na origem da estética moderna, a criação estaria distante tanto da obediência a preceitos prontos quanto do extravasar voluntarista subjetivo". E reforça a perspectiva "pensada" da liberdade, quando diz: "[a] liberdade, porém, não se encontra no simples instinto do artista [...] Liberdade só ocorre quando o pensamento entra em jogo". E dá um desfecho interessante a essa ideia, que é a de que "por isso, a própria criação de Arte aproxima-se da reflexão filosófica". Não sei se essa aproximação se fez de modo muito apressado pelo autor do texto, mas é fato que muitos filósofos e artistas enxergaram essa vizinhança... se bem que também não sei se pelos mesmos motivos do autor.
  Um ponto bastante interessante no texto é o que repensa o papel da "crítica de arte". Reflete muito bem o autor que "se o artista, ao criar, não obedece a prescrições, ao mesmo tempo, a crítica não procede como avaliação judicativa das obras, já que elas não teriam parâmetros préviso que tivessem orietado sua constituição". Ou seja, fazer um juízo de valores de uma manifestação artística fica muito mais difícil, já que não há parâmetros "objetivos" que devam ser cumpridos para que se chame determinada "coisa" de "arte". Explica o autor que "a tarefa da crítica não seria... avaliá-la [certa obra] com padrões dados, mas sim pensá-la. Refletir sobre a obra". Mais duas boas passagens sobre esse aspecto são: "Para a consideração sobre a arte abandonar o paradigma do 'juiz' e abraçar o paradigma da 'crítica', era preciso que ela se tornasse filosófica, já que o procedimento, agora, não visava achar os erros e acertos da obra, mas pensá-la" e "Se as obras pretendem originalidade, a crítica não pode julgá-las com os parâmetros que já conhece, ou perderia o que traziam de novo". Essa última passagem é por demais "desafiadora". Poderíamos resumir isso na seguinte pergunta: "Como julgar a inovação a partir de categorias 'velhas'?". Que não se pense que esses rótulos de "novo" e "velho" dizem respeito apenas à cronologia. O autor, em passagem anterior, nos adverte que "Platão e Michelangelo não passaram a ser menos atuais por conta de Heidegger e de Matisse. Provavelmente, a verdade é até o contrário".
  O autor do texto insiste no papel da crítica da arte - que, no fundo, é o nosso próprio papel, enquanto espectadores dos movimentos artísticos - e coloca de modo bastante perfeito que "toda a tarefa da crítcia sobre as obras surge da ausência da escala de valores prontos para julgá-las". Se só podemos julgar a partir da "escala de valores" em vigor, mas se essa se torna inadequada para ser aplicada às inovações, qual é a saída... se é que existe uma? O autor, a partir das reflexões de Walter Benjamin, propõe que "a crítica não se situa fora da obra. Ela desdobra aquilo que a própria obra põe. Ela continua a obra. Tal continuação, porém, não é somente o acréscimo da opinião subjetiva deste ou daquele crítico de arte. Se as opiniões forem de fato críticas, elas serão o desenvolvimento da obra conhecendo-se a si mesma, 'o autoconhecimento desta', como dizia Benjamin". E continua, escrevendo: "reconhece-se, assim, que a obra-de-arte não é completa em si mesma [...] a crítica carrega a obra adiante, potencializa, desdobra. Não está lá e a obra cá".
  Ficamos, então, com uma pergunta problemática: como "carregar" a obra adiante sem ser, também, um artista?
  Heidegger dizia que "talvez se possa falar de poesia poeticamente". E a pergunta anterior ecoa: como falar poeticamente sem ser, também, um poeta?
  Agora a coisa se complicou. Se meu juízo sobre uma pintura depende de minha qualidade artística para "desdobrar" a obra de arte, eu estou proibido de estabelecer qualquer avaliação em relação às artes. Prefiro simplesmente assumir minha  "inespecialidade" e continuar fruindo do gozo estético que me dão os "belos" quadros.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Kant, por Luc Ferry



  Há algum tempo, comprei o livro "Kant: uma leitura das três Críticas", de autoria de Luc Ferry, lançado pela Editora Difel. Bastou-me ler os nomes "Kant" e "Luc Ferry" para acreditar na qualidade do livro. Como tantos outros livros, esse também me aguarda gentilmente na estante, talvez, conversando com os outros exemplares que tratam de Kant e que estão a seu lado. Rsss.
  Entretanto, até agora, eu não havia visto uma crítica - nem farei gracejos em relação ao "crítica" das "Críticas"! - sobre o livro de Luc Ferry. Isso mudou ontem, quando li na revista "Filosofia - Ciência & Vida", número 42, a última lançada, o que escreveu a professora Ana Maria Haddad Baptista. E fiquei muito satisfeito de já ter, pelo menos, adquirido um exemplar. Resta-me apenas, agora, lê-lo.
   Escreveu a professora Ana Maria: "Kant: uma leitura das três Críticas, de Luc Ferry, é uma obra que discute e joga verdadeiras luzes em relação à obra kantiana. O autor francês, de forma elegante e precisa, apresenta problemas mais gerais da Filosofia, particularizando-os na obra em referência. [...] Obras do porte da literatura em questão merecem ser lidas e refletidas para que a ousadia e a audácia do saber continuem despertando pessoas indignadas, insubordinadas e insubmissas contra os poderes estabelecidos; donos absolutos de verdades que só convencem os próprios poderes (em todas as instâncias) e a eles interessam".
  Boa dica de aquisição, portanto!

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Leinbniz... novamente

  Herr Leibniz frequenta nosso espaço de novo... um pouco indevidamente, aliás, já que se trata de um local para "amigos de Spinoza", o que certamente não é o caso desse senhor. Mas... admitamos essa exceção. Afinal, por determinado período, ele se disse amigo do nosso querido holandês, que acreditou nele, a ponto de dar-lhe uma parte da Ética, em manuscrito, a fim de que Leibniz a estudasse. De qualquer modo, o magnânimo espírito de Spinoza acolheria o vil alemão em sua casa, apesar dos pesares, portanto, repetiremos aqui o que seria seu ato.
  Vamos ao que interessa.
  O post se refere ao capítulo que trata de Leibniz no livro "Sobre o que nos perguntam os grandes filósofos", de Leszek Kolakowski.
  Antes, porém, gostaria de deixar registradas algumas observações sobre um comentário feito pelo amigo Existenz no post anterior sobre Leibniz.
  Em primeiro lugar, é inegável que Leibniz se tornou referência do Racionalismo, estendendo sua influência no cenário filosófico alemão até a chegada de Kant. Entretanto, segundo nos conta Bertrand Russel, essa influência teve uma "marca" de Christian Wolff. Escreve Russel: "Seu [de Leibniz] discípulo Wolff, que dominou as universidades alemãs até a publicação da Crítica da Razão Pura, de Kant, deixou de lado tudo o que havia de mais interessante em Leibniz e produziu um modo de pensar seco e professoral". Além disso, o filósofo inglês "relativiza" um pouco essa "grande influência leibniziana", quando escreve que "fora da Alemanha, a filosofia de Leibniz teve pouca influência; o seu contemporâneo Locke governou a filosofia britânica, enquanto, na França, Descartes continuou a reinar, até ser destronado por Voltaire, que pôs na moda o empirismo inglês".
   Quanto à influência da teoria das mônadas sobre filósofos contemporâneos, como Husserl e Castoriadis, também citada pelo amigo Existenz, ainda que eu não a conheça, tendo a imaginar que deva ser da ordem mais intuitiva que definitivamente conceitual e deduzida. Afinal, implicaria, como bem citou Existenz, uma definitiva tendência ao idealismo, carregando consigo a necessidade de outros conceitos anacrônicos e difíceis de serem defendidos, a não ser que se "encarne" o espírito teórico leibniziano. Parece-me que o aspecto mais "simbólico" - e até poético - das mônadas serve, inclusive, para outras áreas do pensamento, que não a Filosofia. Eu já vi uma conceituação de "inconsciente" utilizando praticamente o texto da Monadologia.
  Vamos ao texto de Kolakowski.
  Conta-nos ele que "Leibniz foi o último homem da Europa que sabia tudo [...] Sua mente brilhante... tudo em que tocava era enriquecido [...] Todavia, não é a diversidade dos interesses de Leibniz o mais importante, mas sua procura por uma única raiz comum para todo o conhecimento". Mais radical que Spinoza, que empreendeu a tarefa de filosofar de "modo geométrico", Leibniz pensava na possibilidade de criar uma characteristica universalis, que, talvez ao modo da mathesis universalis cartesiana, seria uma maneira de resolver qualquer problema - desde os metafísicos até os morais.
  Justificando o rótulo de racionalista, Leibniz, conforme nos conta Kolakowski, afirmava que "para tudo o que existe deve haver uma razão suficiente que o faça ser... dessa maneira [...] Isso não significa que essas razões nos são sempre acessíveis; na maioria dos casos, não o são. Mas é vital saber que tais razões têm que existir".
  Da "razão suficiente", Kolakowski passa a explicar a distinção leibniziana entre "verdades da razão" e "verdades de fato". Esses conceitos, penso, foram muito bem aproveitados por Kant posteriormente, através dos seus conceitos de "juízos analíticos" e "juízos sintéticos". Entretanto, mesmo nessa ótima percepção, Leibniz se perde, pois acaba mostrando que, ao contrário do que postula inicialmente, as "verdades de fato" também são verdades necessárias, com a diferença de que o são apenas para uma "mente absoluta", Deus. 
  Em relação às "verdades" se manifestam dois problemas quase impossíveis de serem contornados, mas que Leibniz, com sua potente lógica, consegue "aliviar".
  O primeiro diz respeito à "impotência" divina diante das "verdades da razão". Explica-nos Kolakowski como Leibniz fugiu do problema. "Deus não poderia determinar que três multiplicado por si mesmo não resultasse em nove... As verdades matemáticas pertencem, de modo eterno e imutável, ao universo dos números e nem o próprio Deus pode mudá-las" - até aqui, tudo certinho! -"... Isso não significa que Ele, em seu poder, esteja constrangido por algum outro tipo de força ou leis, pois essas leis se identificam com Ele mesmo. Elas são, por assim dizer, os elementos imutáveis do seu Ser; não são seus caprichos". Se é assim, Deus não tem livre-arbítrio, já que sua vontade não pode se manifestar livremente. Ele estaria tão "constrangido" pela sua própria natureza quanto qualquer um de nós, pobres mortais.
   O outro problema diz respeito, ainda, ao livre-arbítrio, só que ao dos humanos, desta vez. Esse problema aparece quando percebemos que Leibniz indica que as "verdades de fato", que de início só poderiam ser conhecidas empiricamente, após a ocorrência do evento, já são verdades necessárias (como as "verdades da razão"), na mente de Deus. Ou seja, por conhecer plenamente a minha "essência", Deus já sabe tudo o que ocorrerá comigo e como agirei diante de todas as situações fáticas. Se Ele sabe disso conhecendo apenas o "conceito" de "Ricardo", o determinismo impera em minha vida... bem ao modo spinozano de ver as coisas. Mesmo assim, Leibniz insiste no livre-arbítrio. Kolakowski explica: "[Para Leibniz] as ações humanas não são necessárias, embora determinadas nos planos de Deus". O polonês foi mais longe ainda, pois não só indicou a ciência de Deus sobre os acontecimentos, mas também um plano prévio para sua ocorrência, o que, na minha opinião, dificulta mais ainda o problema. Mas, continua ele: "Somente são necessárias aquelas verdades cuja negação nos leva a uma contradição... As verdades contingentes são previstas por Deus, mas a negação dessas verdades ou acontecimentos continua sendo possível sem que caiamos em contradição". E conclui: "O homem sempre age... livremente". Ah... entendi: Deus prevê os acontecimentos, mas pode errar sua previsão por conta do homem ser livre? Quer dizer que, de certo modo, o homem pode contrariar as previsões divinas? Poderosa essa criação, que contraria até as expectativas do criador que sabe tudo!?!?!
  Aguardem, no próximo capítulo: o Problema do Mal e as mônadas, segundo a teoria leibniziana.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Esse "meu" presidente...

  Platão se sentiria realizado em saber que o "País do Futuro" concretizou seu sonho de um "rei filósofo". É verdade que, pelas circunstâncias políticas atuais, ele foi substituído por um "presidente filósofo"... mas dá no mesmo. O importante é que há alguém conduzindo uma nação que, muito mais do que ser simplesmente "O cara", é uma inteligência rara, capaz de frases de profundidade, sempre muito bem colocadas.
  A última delas certamente agradará muito às mulheres do mundo todo, especialmente àquelas mais dedicadas à causa feminista.
  Disse "nosso" líder: "Uma mulher não pode ser submissa ao homem por causa de um prato de comida. Tem que ser submissa porque gosta dele".
  Parabéns, presidente... e quanto romantismo e sensibilidade! Rsss

Heidegger, por Arendt (3)

  Continuando... 
  De modo bastante interessante, a inteligente autora estabelece um paralelo entre Heidegger e Platão, utilizando-se das aventuras deste último em Siracusa. Ela escreve: "Ora, sabemos todos que Heidegger também cedeu uma vez à tentação de mudar de 'morada' e de se 'inserir', como então se dizia, no mundo dos afazeres humanos. E, no que concerne ao mundo, mostrou-se ainda um pouco pior para Heidegger do que para Platão, pois o tirano e suas vítimas não estavam além-mar, mas em seu próprio país. No que concerne a ele mesmo, creio que as coisas são outras. Ele era ainda bastante jovem para - a partir do choque resultante da colisão que o lançou, há 35 anos e depois de dez curtos meses de febre, de volta para a morada que lhe cabia - extrair uma lição, em seu pensar, do que experimentara. O que se seguiu para ele foi a descoberta da vontade... sob as espécies da vontade de poder. [...] Sobre a essência... do querer, apesar de Kant, apesar de Nietzsche, pouco se meditou. De qualquer forma, ninguém antes de Heidegger viu o quanto essa essência é contrária ao pensar e exerce sobre ele uma ação destrutiva".
  No afã de defender Heidegger, entretanto, parece-me que Arendt comete uma injustiça com a "classe" dos filósofos. Ela escreve que: "Não podemos ... nos impedir de achar chocante, e talvez escandaloso, que tanto Platão como Heidegger, quando se engajaram nos afazeres humanos, tenham recorrido aos tiranos e ditadores. Talvez a causa não se encontre apenas a cada vez nas circunstâncias da época, e menos ainda numa pré-formação do caráter, mas antes no que os franceses chamam de deformação profissional. Pois a tendência ao tirânico pode se constatar nas teorias de quase todos os grandes pensadores (Kant é a grande exceção). E se essa tendência não é constatável no que fizeram, é apenas porque muito poucos, mesmo entre eles, estavam dispostos, além 'do poder de se espantar diante do simples', a 'aceitar esse espanto como morada'".
  Custa-me crer que Arendt realmente encare Kant como quase  única exceção à "tendência ao tirânico" nos "grandes pensadores". Quantos e mais quantos filósofos, se não na Alemanha de Heidegger e Arendt - mas também de Kant -, mas na própria França, de onde teria vindo a ideia de uma "deformação profissional", foram grandes defensores da liberdade! Citar Spinoza - reconhecidamente, um dos primeiros defensores da democracia - seria muito tendencioso de minha parte; mas Voltaire é um ícone justamente dessa "oposição ao tirânico"... Thomas More é outro! John Locke... e tantos mais!
  Essa foi a parte mais "formal" do texto. Mas há, na nota de rodapé, algo mais emocional.
  Arendt escreve: "Hoje - depois de dissipada a amargura e sobretudo depois que, em certa medida, se fez justiça a inumeráveis falsas informações - [a atitude de Heidegger] que é usualmente chamada de 'erro' [...] O conteúdo do erro se distingue consideravelmente do que então foi a execução de 'erros'. [...] Heidegger, como tantos outros intelectuais alemães nazistas e antinazistas de sua geração, jamais leu Mein Kampf. [...] Esse erro perde importância quando comparado ao erro muito mais decisivo, que consistiu em se esquivar à realidade dos porões da Gestapo e dos infernos de torturas dos campos de concentração. [...] Na verdade, Heidegger se deu conta desse 'erro' após um breve lapso de tempo e a seguir assumiu mais riscos do que até então correra na universidade alemã. Mas não se pode afirmar o mesmo de inúmeros intelectuais e autoproclamados sábios que, não só na Alemanha, ainda e sempre preferem, ao invés de falar sobre Hitler, Aushwitz, genocídio e a 'eliminação' como política permanente de despovoamento, ater-se, cada um conforme sua fantasia e gosto, a Platão, Lutero, Hegel, Nietzsche... [...] Pode-se bem dizer que a fuga da realidade tornou-se, nesse ínterim, uma profissão, fuga não para uma espiritualidade com a qual a sarjeta nunca teve nada a ver, mas para um reino fantasmático de representações e 'ideias', que deslizou para a pura abstração tão distante de qualquer  realidade experimentada e experimentável que, nele, os grandes pensamentos dos pensadores perderam toda e qualquer consistência e se confundem como formações de nuvens, onde uma passa constantemente para a outra".
  Palavras de uma mulher apaixonada? Quem sabe?
 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Haiti...

  Esse é um post pouco reflexivo. Na verdade, faço apenas o registro de que, quanto mais vejo imagens do já ocorrido e do que ainda está acontecendo no Haiti, vou me chocando cada vez mais. E, pior, ainda crio cenários mentais do final dessa história que não são nada animadores.
  Já se fala em mais de duzentos mil mortos na tragédia. Obviamente, não são contabilizados os "mortos-vivos", que estão desaparecidos, ou ficarão sem comida e água, ou não terão atendimento médico de que necessitam, ou serão vitimados pelas gangues que já voltam a reinar onde eram as favelas - que nem isto são mais -, ou... ou... ou...
  No famoso Terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, fala-se até de 90 mil mortos, numa população de 275 mil pessoas. Numa comparação meramente formal, 90 mil é menos que 200 mil, mas há que se pensar que o número de mortos no Haiti representa uma proporção de pouco mais de 2% da população total, enquanto o sismo português pode ter levado ao óbito quase um terço da população da época.
  Voltaire, chocado com o ocorrido, declarou sua total "desistência" da crença num Deus bom. Eu, que já desisti Dele há algum tempo, nessas horas, gostaria muito de vê-Lo agir, contradizendo-me completamente.
  Mas... as coisas não funcionam assim... eu bem sei.

Heidegger, por Arendt (2)

  Continuando...
  Arendt elogia a perspectiva heideggeriana de um pensar que não é apenas teórico, mas existencial. Escreveu ela: "Estamos tão habituados às velhas oposições entre a razão e a paixão... que a ideia de um pensar apaixonado, onde o Pensar e o Estar-Vivo se tornam um, espanta-nos um pouco. [...] Esse pensar que toma seu desenvolvimento como paixão a partir do simples fato do ter-nascido-no-mundo... pode não ter nenhum objetivo final - o conhecimento ou o saber - além da própria vida".
  Esse "pensar apaixonado" é um tema interessante. Penso que uma determinada leitura de Spinoza também permitiria encontrar isso no holandês, se bem que ele preferiria certamente a expressão "pensar afetivo", já que a paixão traria um aspecto de passividade diante do mundo e da vida. Digo isso porque a perspectiva ética da filosofia spinozana só seria alcançada através de um esforço da razão para "otimizar" nossos encontros afetivos, ou seja, trabalharíamos sempre com o par razão-afeto, presentificando essa "razão afetiva" - ou "razão apaixonada" de Heidegger, segundo Arendt.
  Em seguida, Arendt destaca a qualidade de Heidegger sempre estar num movimento de "repensar" sua filosofia. Diz ela: "Os filósofos têm demonstrado, desde... a Antiguidade, uma tendência fatal à construção de sistemas, e atualmente sentimos muitas vezes dificuldade em desmontar os edifícios fabricados para descobrir o que foi propriamente pensado [...] Entretanto, [...] cada texto de Heidegger se lê ... como se recomeçasse tudo [...] Heidegger alude a essa propriedade do pensar... quando diz que o pensar tem 'o caráter de um retrocesso'. E ele pratica esse retrocesso quando submete Sein und Zeit a uma 'crítica imanente' ... ou fala ... do 'olhar para trás' sobre sua obra... o que não significa revogação, mas pensar de novo o já pensado".
  Talvez, o grande alemão tenha se inspirado em Husserl para fazer esse movimento, que já aparece claramente no pai da Fenomenologia. Movimento que, temos que reconhecer, é, em tese, muito saudável, já que não cristaliza o pensamento em dogmas inatacáveis, além de materializar o próprio espírito da Filosofia, de sempre se lançar para um assunto - ainda que ele já tenha sido fruto de reflexão - com aquele espanto do iniciante.
  Aliás, a autora registra, em passagem posterior, que "o poder de se espantar, pelo menos ocasionalmente, diante do simples é sem dúvida próprio a todos os homens, ... os pensadores... se distinguem pelo fato de desenvolverem, a partir desse espanto, o poder de pensar".
  Arendt traz uma tese interessante de que não se pensa a presença. Escreve: "o pensar se dedica apenas ao ausente... Se, por exemplo, encontra-se um homem face a face, ele é percebido de fato em sua corporeidade, mas não se pensa nele. Se se pensa, já se interpõe um muro entre os que se encontram... Para se aproximar de uma coisa ou, antes, de um homem, eles devem se manter distantes da percepção imediata. O pensar, diz Heidegger, é 'a aproximação do distante'".
   Acho essa passagem um tanto quanto problemática, apesar da tese inicial ser interessante. Não duvido que, conforme diz Heidegger, o pensar seja a aproximação do distante, visto que se "re-presenta" o que não se "presenta", ou seja, o que não está presente, e portanto está distante, a fim de que se possa aplicar o logos sobre ele. Também acho correta a perspectiva de que o mero pensar discursivo coloque um "muro entre os que se encontram". Mas que, absolutamente, não se possa pensar o presente, já não me parece correto... a não ser que se tome uma abordagem pouco fenomenológica, onde se imagine que o que se apresenta está totalmente dado. Ora, a Fenomenologia acolhe as perspectivas como efetivamente reais, mas não deixa de reconhecer que há um "jogo" de presença e ausência simultaneamente. Ou seja, tudo o que está "presente" está, ao mesmo tempo, embora sob outras "facetas", "ausente". Portanto, imagino, a presença não nos exime de pensar algo, apesar de estarmos convivendo com o fenômeno presentificado.
  O capítulo final, "Heidegger, por Arendt (3)", dirá respeito à análise arendtiana do envolvimento de Heidegger com o nazismo.
 

sábado, 16 de janeiro de 2010

Heidegger, por Arendt

  Conforme eu havia escrito antes, passo a descrever o capítulo "Martin Heidegger faz oitenta anos", do livro "Homens em tempos difíceis".
  O capítulo é aberto com uma citação que nos faz lembrar muito essa avidez pela chegada do "Ano Novo", que promete uma série de mudanças fantásticas, mas que, se analisado friamente, não significa nada além do início de mais um "ciclo natural", que, muito mais do que grandes transformações, poderia sugerir algo como aquela letra do Cazuza, "um museu de grandes novidades". 
  Voltando, então... Arendt cita Platão: "O começo é também um deus que, enquanto permanece entre os homens, tudo salva". E, então, fala sobre o "começo" de Heidegger, indicando que "o renome de Heidegger é mais antigo que a publicação de Sein und Zeit, em 1927, e pode-se até perguntar se o insólito êxito desse livro ... teria sido possível sem... o êxito professoral que o precedeu e foi por ele apenas confirmado".
  Questionamento interessante o de Hannah, afinal, já nos acostumamos a ver Heidegger "nascer" para o mundo filosófico com Ser e Tempo, sem conseguirmos vivenciar exatamente - e não apenas "ouvir dizer" - o que foi seu tempo "pré-Ser-e-Tempo" (parodeando o modus heideggeriano de escrever. Rsss), quando costumeiramente só sabemos que foi assistente de Husserl.
  Arendt diagnostica que "havia algo de estranho nessa primeira glória... [antes] não existia nada em que sua fama pudesse se apoiar, nenhum texto e apenas notas de cursos, que circulavam de mão em mão; e os cursos tratavam de textos universalmente conhecidos, sem conter nenhuma doutrina a ser tomada e transmitida".
  A nossa querida autora mostra, então, a chave para o tal "êxito professoral" de Heidegger, quando conta que "Havia nas universidades alemãs... uma grande insatisfação... A filosofia não era um ganha-pão, era antes a disciplina... dos muito exigentes... A universidade em geral lhes oferecia as escolas - os neokantianos, os neo-hegelianos, os neoplatônicos, etc. - ou a velha disciplina escolar... dividida em compartimentos, com a teoria do conhecimento, a estética, a ética, a lógica, etc.", e cita Husser e, a seguir, Karl Jaspers, ao dizer que "havia... mesmo antes do aparecimento de Heidegger, um pequeno número de rebeldes".
  Sobre o primeiro, Edmund Husserl, a própria história nos conta que houve um momento em que ele teria dito "A Fenomenologia somos eu e Heidegger!", o que demonstra o respeito do pensador mais velho por seu pupilo. A respeito de Jaspers, Arendt conta que ele "por longo tempo manteve laços de amizade com Heidegger, exatamente porque o que havia de rebelde no desígnio de Heidegger lhe interessava como algo radicalmente filosófico em meio ao falatório acadêmico sobre a filosofia". Ou seja, Heidegger não falava, simplesmente, sobre Filosofia, mas filosofava, efetivamente.
  E, justamente por esse último aspecto, conta-nos Arendt, que "os que... consideravam a erudição nas coisas da filosofia como um jogo ocioso" eram atraídos a Freiburg, e pouco depois a Marburg, dizendo: "há alguém que efetivamente atinge as coisas que Husserl proclamou; sabe que elas não são um assunto acadêmico, mas a preocupação do homem pensante". Particularmente, escreveria "homem existente" em vez de "homem pensante", por achar que ficaria mais de acordo com o "espírito" heideggeriano... mas quem sou eu para discordar dos alunos de Heidegger e de frau Arendt?
  E ela continua discorrendo sobre "a diferença" de Heidegger: "O decisivo no método era que, por exemplo, não se falava sobre Platão... , mas seguia-se e se sustentava um diálogo durante um semestre inteiro, até não ser mais uma doutrina milenar, mas apenas uma problemática altamente contemporânea... Agora, muitos procedem assim; antes de Heidegger, ninguém o fazia. A novidade... : o pensamento tornou a ser vivo". E os seus "seguidores" teriam pensado, segundo Arendt: "Há um mestre; talvez se possa aprender a pensar".
  A afirmação de que, antes de Heidegger ninguém procedia desta forma deve ser verdadeira, mas não garanto, pelo menos no Brasil, que nossos mestres se prontifiquem a discutir exaustivamente a filosofia de alguém, em vez de simplesmente apresentá-la, em forma de história e de conceitos... mas são as marcas da atualidade, onde o tempo (empírico e científico) se esvai rápido demais!
  Arendt afirma, de maneira, até certo ponto, "bombástica": "pois não foi a filosofia de Heidegger, e pode-se com justiça indagar se ela existe (como o faz Jean Beaufret), mas sim o pensar de Heidegger que contribuiu para determinar tão decisivamente a fisionomia espiritual do século XX".
  Hannah também indica em seu texto o que teria sido o "único resultado imediato levado em consideração", a partir do "pensar ativo" de Heidegger: "ter derrubado o edifício da metafísica existente, onde, em todo caso, ninguém mais, há muito tempo, se sentia realmente à vontade", e indica que "é a ele... que se deve agradecer que tal desmoronamento tenha ocorrido de maneira digna".
  Outra observação interessante que faz a autora é a seguinte: "Por toda a vida, tomou os textos dos filósofos como base de seus seminários e cursos, e é só na velhice que avança e se arrisca a realizar um seminário sobre um texto seu. Zur Sache des Denkens contém o 'Protocolo para um seminário sobre a conferência Ser e Tempo' ".
  Alguém pode pensar num motivo para isso? Será que o grande pensador da Floresta Negra reverenciava tanto os filósofos de outrora que não conseguia se ver a altura deles, em se tornando, como eles, objeto de suas próprias palestras?
  Para o post não ficar muito "cansativo" e, atendendo ao meu espírito de autor de novelas, conto mais em "Heidegger, por Arendt (2)". Rsss.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A intencionalidade

  Errou quem pensou que esse post se refere a um dos pilares da Fenomenologia husserliana, que indica que a consciência é sempre consciência DE algo, e que o elemento estruturante básico dessa relação é a "intencionalidade".
  Há pouco tempo, tive que me dedicar um pouco mais à discussão teórica sobre a "textualidade" - que diz respeito às características que fazem com que uma ocorrência linguística seja um texto, e não simplesmente um amontoado de frases. Há uma série de fatores que determinam essa classificação como "texto". Resumindo um pouco, temos dois grandes grupos: os fatores linguísticos (coerência e coesâo) e os fatores pragmáticos (intencionalidade, aceitabilidade, situcionalidade, informatividade e intertextualidade).
  No caso deste post, a "intencionalidade" se refere ao primeiro dos fatores pragmáticos citados acima.
 Na minha pesquisa por referências, descobri um blog bastante interessante, que, aliás, sugiro a todos os amigos que trabalham com textos na nossa língua mãe, como é o "nosso" caso. O blog é da professora Marta Melo de Oliveira e seu endereço é http://noisfalatrem.blogspot.com/ . Um dos últimos posts, por exemplo, diz respeito a como fazer citações e referências de acordo com a ABNT.
  Especificamente sobre a "intencionalidade" - essa da textualidade -, a professora Marta explicou, em abril de 2006, que "todo texto nasce... de uma intenção comunicativa". Até aí, nenhuma novidade. Interessante, entretanto, é que ela indica, ao final de sua explicação que "nenhum texto é inocente, todos têm uma intenção".
  Essa última frase nos diz algo sobre um assunto que temos discutido algumas vezes por aqui, que é possibilidade de uma "neutralidade perfeita" da Imprensa. A mim parece, como eu já escrevi algumas vezes, que essa neutralidade absoluta não é possível, haverá sempre um algo de ideológico nos textos - sem entrar no mérito se a ideologia em questão é "boa" ou "ruim". Guardado o afastamento necessário com o texto da mestra Marta, que diz respeito a intenção de comunicar mais um conteúdo do que uma ideologia, eu faria minhas as palavras dela de que "nenhum texto é inocente, todos têm uma intenção".

"A decadência da poesia"

  Antes que os amantes da poesia me agridam, quero dizer que o título do post se refere a um artigo escrito por Jacques Roubaud, para o Le Monde Diplomatique - Brasil deste mês.
  O autor constata um "problema" dos nossos tempos ao escrever: "No século XXI, ... a poesia continua a perder espaço". Mas ele vai mais fundo na análise do problema, dizendo: "Essa situação é uma consequência da quase inexistência econômica da poesia... A poesia não se vende... É claro que esse gênero literário não é o único que perdeu 'fatias de mercado'... O romance, a literatura em geral e o próprio livro foram afetados. Mas, no caso da poesia, estamos diante de uma forma extrema de desaparecimento".
  A coisa pode parecer exagerada, mas uma passagem do texto de Jacques pode fazer sentido, mesmo para os defensores mais ferrenhos do gênero poético, que é: "... quem se interessa por poesia, geralmente conhece e gosta de Victor Hugo, Baudelaire, Rimbaud, Apollinaire..., mas acha que os poetas de seu tempo são difíceis, escrevem de maneira incompreensível e, assim, não os lê".
  Jacques faz um diagnóstico que me parece preciso, embora, como eu já indiquei várias vezes, não seja eu um especialista no assunto, só o apreciando a partir de um senso estético absolutamente mediano - para não dizer "medíocre" -, ao escrever sobre o VIL - não é sobre o mau, mas sobre o "Verso Internacional Livre". Diz o autor que "O VIL é um verso não metrificado nem rimado e que, geralmente, ignora as características da tradição poética de determinada língua. Ele 'muda de linha', fugindo às rupturas sintáticas demasiado fortes". Eu pertenço, certamente, a uma estética mais "antiquada", em que o verso metrificado-ritimado tradicional era a forma "correta" de fazer poemas. Não que eu deixe de dar valor a "formas" diferentes, mas considero estes mais aprazíveis.
   Ainda sobre o VIL, conta-nos o autor que "suas exigências protocolares são demasiado débeis, o que promove um deslizamento cada vez mais claro em direção a uma fase (a última?) da evolução formal... em que o próprio verso não é mais considerado necessário". Chama-se atenção, no texto, que "Já... nos anos 1990, ... grande número de poetas... lia seus poemas como prosa, ornada retoricamente pela voz, pois é preciso ver que se trata de poesia". E, ao final dessa consideração, pergunta-nos o autor: "Nessas condições, por que não escrever simplesmente em prosa?". Crítica profunda, que abala a poesia contemporânea.
  Para quem antipatizou com monsieur Jacques Roubaud, informo que o distinto cavalheiro é... poeta - além de romancista e... matemático (?). Portanto, ao contrário do que se poderia pensar, ele é um dos que não quer que a poesia morra, enquanto gênero literário.
  Outra constatação interessante que ele faz, no sentido inverso do que foi afirmado até agora, é que "... na massa daqueles que não são mais leitores de poesia, e que são até cada vez menos leitores simplesmente, a fascinação pela poesia não desapareceu". E é citada uma ferramenta muito familiar a quem está lendo este blog, quando Jacques Roubaud escreve: "O desenvolvimento da internet, com a multiplicação dos sites e dos blogues, favorecem a expressão dessa necessidade [de poesia]". Portanto, a poesia, talvez a contragosto do "mercado", continua viva nos blogs.
  O autor fecha o texto de modo muito interessante: "Ora, existe hoje na França [e imagino que no mundo todo], como sempre existiu, poesia; muito boa poesia. Difícil ou não, que fala de tudo, de você, de nada, e que inventa, renova, surpreende, encanta. E a encontramos nos livros, revistas, gravações sonoras, vídeos; nas livrarias (elas existem) que não renunciaram a apresentá-la, a vendê-la. Leia-a, copie-a, aprenda-a, como se fazia no passado".
  E o ponto alto do texto vem no seu fechamento: "Esse artigo serve para defender o seguinte ponto de vista: que a poesia tem lugar em uma língua; ... que um poema deve ser objeto artístico da língua com quatro dimensões, ou seja, composto para uma página, para uma voz, para um ouvido, e por uma visão interior. A poesia deve se ler e dizer".
  Leiamos e digamos poesia!

 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Dia de Luto

  É com imenso pesar que repercuto aqui no blog o falecimento da Sra. Zilda Arns Neumann, coordenadora internacional da Pastoral da Criança e fundadora da Pastoral da Pessoa Idosa (órgãos da CNBB), durante a grande tragédia que se abateu sobre o Haiti, dia 12 de janeiro passado. O terromoto que vitimou essa grande brasileira pode ser responsável por mais de cem mil mortes, segundo dados preliminares.
  Médica e sanitarista, Zilda teve reconhecimento internacional por seus trabalhos humanitários. Dentre os prêmios recebidos no exterior há um de nome bem sugestivo, "Heroína da Saúde Pública das Américas", concedido pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), em 2002.
  Apesar de não ter ganho o prêmio Nobel, a Pastoral da Criança foi indicada pelo governo brasileiro para o Nobel da Paz em 2001, 2002, 2003 e 2005. Além disso, em 2006, a própria Zilda foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz, junto com outras 999 mulheres de todo o mundo, selecionadas pelo Projeto "1000 Mulheres", da associação suíça "1000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz".
 Há que se destacar que ela morreu, aos 75 anos, trabalhando na "Frente de Batalha" da guerra contra a miséria e a doença infantis.
  Palmas para a Sra. Zilda Arns Neumann!
  Enquanto se velam os mortos, que se encontrem rápido os vivos e se cuide, também prontamente, dos feridos e desamparados nessa grande catástrofe.

Uma Arendt crítica de Heidegger

  Há algum tempo eu registrei o desejo de escrever sobre o livro Homens em tempos sombrios, de Hannah Arendt, mais especificamente sobre o capítulo  "Martin Heidegger faz oitenta anos".
  Antes de o fazer, porém, quero transcrever um trecho do Posfácio "Hannah Arendt: vida e obra", de autoria de Celso Lafer. Nesta passagem, Celso mostra que o respeito (ou ainda seria amor?) de Arendt por Heidegger era tão grande que ela não queria feri-lo demonstrando discordâncias em relação ao seu pensamento... talvez, pelo menos, numa época em que Heidegger não teria mais "forças" para rebater à altura os argumentos da grande pensadora.
  Lafer escreve: "Intelectualmente, Hannah Arendt coincide com Martin Heidegger quanto ao entendimento da função da linguagem como preservação e revelação. Daí o seu permanente interesse pela literatura e o seu encanto com a poesia e com os poetas. A Heidegger, Hannah Arendt deve sua visão da relação entre o ser e a temporalidade, que é o que explica o seu entusiasmo por Ser e  Tempo. Não aceitava, no entanto, a preocupação exclusiva de Heidegger com a  história do ser, que o obnubilava para a história humana e, portanto, para um existencialismo aberto, como o de Hannah Arendt, em relação a temas como os da comunidade, do diálogo, da amizade, da pluralidade, da natalidade e da ação. Entretanto, só se dipôs efetivamente a fazer uma crítica profunda a Heidegger - sobretudo ao segundo Heidegger, cuja rejeição da vontade, no entender de Hannah Arendt, o impedia de perceber as possibilidades da política e da ação - naquilo que veio a ser The life of the mind, mais precisamente em 1974, quanto reviu os textos de suas 'Gifford lectures' e estava certa de que Heidegger, aos 85 anos, velho e próximo da morte, não mais a leria".
  Como eu disse, talvez fosse mais o amor do que o respeito por Heidegger que a fizesse calar suas opiniões até praticamente o fim do profundo pensador alemão. Afinal, talvez, a maior prova de respeito fosse justamente explicar seus pontos de discordância em relação ao mestre. Acho que um pensador honesto aprecia mais uma opinião contrária bem fundamentada do que uma concordância "vazia", emitida por alguém impossibilitado de fazer uma crítica justa. O contraditório estimula o próprio pensador a enxergar novas possibilidades e novas perspectivas... chegando até a viabilizar "correções de curso" no seu pensar.
  Mas eu ainda escreverei sobre "Martin Heidegger faz oitenta anos"!

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Impressionismo

  Mais uma das minhas "inespecialidades" é a pintura. Mas, mesmo sendo um "inespecialista", gosto de apreciar determinados quadros, pelo simples prazer estético que eles me dão. Nessa linha de fruição do gozo estético, o que mais admiro são os impressionistas. Por isso mesmo, há alguns dias, comprei o livro "Impressionism - a celebration of light", de Isabel Kuhl, publicado pela Parragon.
  O livro é um espetáculo! São mais de duzentas páginas; impressão em papel couché; inúmeras reproduções de quadros famosos... um bálsamo para os olhos.
  O texto de abertura, que posiciona historicamente o início do movimento, começa de forma bem filosófica, dizendo: "Que conveniente que haja uma definição concisa para todas as coisas!". Afinal, o que mais se procura, mas, paradoxalmente, o que mais se evita na Filosofia, é uma "definição" para as coisas.
  O livro é ótimo, pois apresenta textos históricos e informações técnicas sobre o movimento... além, como eu já escrevi, de inúmeras reproduções.
  Mesmo vislumbrando diversas lindas pinturas, não posso deixar de escrever, do "alto de toda a minha inespecialidade, ou inexpertise", que prefiro Oscar-Claude Monet. O que esse senhor fez foi demais!
Para quem não sabe, aliás, o movimento tem seu nome devido à tela "Impressão, nascer do sol", dele.


"Impressão, nascer do sol", de Monet

  No livro há reproduções de Degas, Renoir, Manet, Sisley, Bazille, etc. e se comenta ainda o movimento Pós-impressionista.
  Fantástico, pessoal!

"Por que você não gosta da filosofia de Leibniz?"

  O título do post diz respeito a uma pergunta que recebi no Orkut, feita por Jus Goa.
  Até hoje, não respondi a pergunta lá. Mas aproveitarei para fazê-lo por aqui.
  É certo que a pergunta não diz respeito ao filósofo em si, mas à sua filosofia. Se é possível, para muitos, desvincular totalmente uma coisa da outra, peço perdão, mas reconheço que, para mim, a coisa funciona de modo um pouco diferente. Posso respeitar - e isso acontece em muitos casos - a filosofia de determinado pensador, sem admirá-lo como homem; mas "gostar" de sua filosofia, absolutamente sem levar em consideração sua vida, confesso, não consigo.
  Assim, começa a ser dada a minha resposta, ainda que de modo muito preliminar.
  A falta de honradez do alemão foi tanta que Bertrand Russel escreve o seguinte sobre ele: "Leibniz, que devia muito a Spinoza, ocultou sua dívida, abstendo-se cuidadosamente de proferir uma única palavra em seu louvor; chegou até a mentir com respeito ao grau de seu conhecimento pessoal com o herético judeu". Ainda vinculando o alemão ao holandês, Russel escreve: "Era inteiramente destituído das virtudes filosóficas superiores que são tão notáveis em Spinoza".
  Essa seria a primeira parte da resposta a Jus Goa. Entretanto, devido ao caráter eminentemente subjetivo desta, passo a algo mais concreto e objetivo.
  Antes, porém, esclareço uma coisa. Faço minhas as palavras de Russel - permanecendo ainda no mesmo comentador do alemão - quanto ao fato de que "Leibniz foi um dos intelectos supremos de todos os tempos, mas, como criatura humana não foi admirável". Para que não fique a dúvida do porquê de eu não gostar da filosofia de Leibniz, apesar de considerá-lo "um dos intelectos supremos de todos os tempos", segue uma estorieta contada pelo meu pai. Dizia ele que, quando do estudo para lançamento de um determinado produto no mercado, a empresa dele foi procurar um pesquisador para avaliar o produto. O "prestativo" senhor disse: "Está bem, mas vocês querem que eu 'descubra' coisas boas ou ruins a respeito do produto?". Ou seja, não basta ser um prodígio no que se fala, há que se ter ética para dizê-lo. Portanto, reconhecer que Leibniz foi brilhante em parte do que disse, não o exime de ser um grande "mentiroso" - essa ficou forte demais! -, ou, dizendo de outro modo, um grande "destorcedor" da verdade.
  Ao lado dos que podem "inocentar" Leibniz está o próprio Bertrando Russel, quando diz que há dois Leibniz, um "popular" e outro "esotérico". Segundo o inglês, "um era otimista, ortodoxo... e superficial; outro, que foi lentamente desenterrado..., era profundo, coerente, grandemente spinozista e assombrosamente lógico".
  Certo, certo... ponto para Leibniz! Mas qual é o Leibniz sobre o qual comentamos usualmente? Ganhou quem respondeu que era o primeiro. Isso, aquele que foi caricaturado por Voltaire, através do Dr. Pangloss, de Cândido.
  Aqui, ficamos com outro problema: qual seria o "verdadeiro" Leibniz? Provavelmente o "oculto"... mas, quem sabe, não?
  Tudo bem... voltamos à subjetividade. Para fugir dela, entretanto, teremos que esquecer um pouco esses dois Leibniz citados. Afinal, o que há de mais "objetivo" do que ir aos textos do pensador? E indo aos textos, como fugir da Monadologia ou da Teodiceia, por exemplo? E não fugindo delas, presenciamos um pensador que tem "flashes" de brilhantismo misturados com a mais obtusa tentativa de confirmar diversos pontos da ortodoxia cristã dogmática por meios lógico-matemáticos.
  O "melhor dos mundos possíveis" não se sustenta como tentativa de resolver o "Problema do Mal" de modo minimamente crítico. As "provas da existência de Deus" são pífias, se considerada a qualidade lógica - inquestionável - do pensador que as formulou. A "doutrina da harmonia preestabelecida", se originalmente pretendia ter algum valor teórico, se esboroou quando se percebeu que, através dela, só se pretendia colocar um "relojoeiro" por trás dos relógios que soavam juntos. As mônadas continuam a ser algo bem esquisito: sua imaterialidade que gera o material; os reflexos do mundo que não são "absorvidos" por elas, visto que não têm "janelas", e apesar disso ainda conseguirem "perceber" o mundo; mas, o mais incrível, é que, apesar da não "comunicação" entre as mônadas, existe uma dominância hierárquica da mente/alma, em relação à qual todas as mônadas particulares que formam o corpo se referem ao agir. A defesa do livre arbítrio, embora reconhecendo que há uma "inclinação sem necessidade", é outra coisa muito mal explicada. Inicialmente, sua visão era um pouco diferente. Ao escrever para Arnauld, este se chocou com o ponto de vista leibniziano. Abandonada esta primeira ideia, Leibniz adota a que ficou popular, segundo a qual o ser humano tem sempre um motivo, mas a razão suficiente de sua ação não tem necessidade lógica.
    Será que isso basta para explicar por que não gosto da filosofia de Leibniz? Aliás, pode ser que eu, injustamente, esteja me referindo apenas à filosofia popular de Leibniz, deixando a mais profunda - inclusive, mais spinozana, segundo Bertrand Russel - de lado. Quem sabe, como acho a Filosofia Moderna bastante instigante, seja a hora de voltar a Leibniz com outros olhos?
 

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Ainda de "O Globo"

  Ricardo Noblat, em sua coluna de O Globo, ontem, registrou um espanto que é de todos nós, ao escrever: "Que país é este onde um deputado filmado escondendo dinheiro nas meias reassume a presidência do poder legislativo para comandar o processo de impeachment do governador, seu aliado, acusado de corrupção? É o que ocorrerá, logo mais, na Câmara Legislativa do Distrito Federal com a volta à cena do deputado Leonardo Prudente. Está para se ver ato mais revelador do estado de apodrecimento dos costumes políticos na capital da República".
  Até se entende que o grupo não queira abrir mão da sua "fonte de renda extra", mas que os "mecanismos de controle da moralidade pública" - será que isso existe no Brasil? - não consigam deter essa manobra... isso, não se entende!

  Em outro trecho, Noblat escreve: "... ao falar sobre o mensalão do DEM, o Big Brother de todos os escândalos, Lula insistiu em defender bandidos: 'As imagens não falam por si'. Não, de fato não falam. Elas gritam, berram...".
  Desdenhando daquela máxima que diz que "uma imagem fala mais do que mil palavras", nosso filosófico presidente afirma justamente o contrário. Mas... tudo bem. Ele pode tudo, mesmo!

Dostoiévski vive

  Ancelmo Gois escreveu em O Globo, ontem: "Veja do que a burocracia - ou a 'burrocracia', com todo o respeito - é capaz. Um roteirista de São Paulo recebeu do MinC correspondência com um pedido para anexar a seu projeto de adaptação de obra 'uma carta de cessão de direitos do autor, Sr. Fiódor Dostoéviski', o renomado escritor russo, que... morreu em 1881".

  Já seria um pouco estranho alguém desconhecer que o autor russo faleceu há muito tempo, mas isso acontecer com uma "autoridade" responsável por projetos culturais... aí, já é demais!!!