segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Heidegger, por Arendt (2)

  Continuando...
  Arendt elogia a perspectiva heideggeriana de um pensar que não é apenas teórico, mas existencial. Escreveu ela: "Estamos tão habituados às velhas oposições entre a razão e a paixão... que a ideia de um pensar apaixonado, onde o Pensar e o Estar-Vivo se tornam um, espanta-nos um pouco. [...] Esse pensar que toma seu desenvolvimento como paixão a partir do simples fato do ter-nascido-no-mundo... pode não ter nenhum objetivo final - o conhecimento ou o saber - além da própria vida".
  Esse "pensar apaixonado" é um tema interessante. Penso que uma determinada leitura de Spinoza também permitiria encontrar isso no holandês, se bem que ele preferiria certamente a expressão "pensar afetivo", já que a paixão traria um aspecto de passividade diante do mundo e da vida. Digo isso porque a perspectiva ética da filosofia spinozana só seria alcançada através de um esforço da razão para "otimizar" nossos encontros afetivos, ou seja, trabalharíamos sempre com o par razão-afeto, presentificando essa "razão afetiva" - ou "razão apaixonada" de Heidegger, segundo Arendt.
  Em seguida, Arendt destaca a qualidade de Heidegger sempre estar num movimento de "repensar" sua filosofia. Diz ela: "Os filósofos têm demonstrado, desde... a Antiguidade, uma tendência fatal à construção de sistemas, e atualmente sentimos muitas vezes dificuldade em desmontar os edifícios fabricados para descobrir o que foi propriamente pensado [...] Entretanto, [...] cada texto de Heidegger se lê ... como se recomeçasse tudo [...] Heidegger alude a essa propriedade do pensar... quando diz que o pensar tem 'o caráter de um retrocesso'. E ele pratica esse retrocesso quando submete Sein und Zeit a uma 'crítica imanente' ... ou fala ... do 'olhar para trás' sobre sua obra... o que não significa revogação, mas pensar de novo o já pensado".
  Talvez, o grande alemão tenha se inspirado em Husserl para fazer esse movimento, que já aparece claramente no pai da Fenomenologia. Movimento que, temos que reconhecer, é, em tese, muito saudável, já que não cristaliza o pensamento em dogmas inatacáveis, além de materializar o próprio espírito da Filosofia, de sempre se lançar para um assunto - ainda que ele já tenha sido fruto de reflexão - com aquele espanto do iniciante.
  Aliás, a autora registra, em passagem posterior, que "o poder de se espantar, pelo menos ocasionalmente, diante do simples é sem dúvida próprio a todos os homens, ... os pensadores... se distinguem pelo fato de desenvolverem, a partir desse espanto, o poder de pensar".
  Arendt traz uma tese interessante de que não se pensa a presença. Escreve: "o pensar se dedica apenas ao ausente... Se, por exemplo, encontra-se um homem face a face, ele é percebido de fato em sua corporeidade, mas não se pensa nele. Se se pensa, já se interpõe um muro entre os que se encontram... Para se aproximar de uma coisa ou, antes, de um homem, eles devem se manter distantes da percepção imediata. O pensar, diz Heidegger, é 'a aproximação do distante'".
   Acho essa passagem um tanto quanto problemática, apesar da tese inicial ser interessante. Não duvido que, conforme diz Heidegger, o pensar seja a aproximação do distante, visto que se "re-presenta" o que não se "presenta", ou seja, o que não está presente, e portanto está distante, a fim de que se possa aplicar o logos sobre ele. Também acho correta a perspectiva de que o mero pensar discursivo coloque um "muro entre os que se encontram". Mas que, absolutamente, não se possa pensar o presente, já não me parece correto... a não ser que se tome uma abordagem pouco fenomenológica, onde se imagine que o que se apresenta está totalmente dado. Ora, a Fenomenologia acolhe as perspectivas como efetivamente reais, mas não deixa de reconhecer que há um "jogo" de presença e ausência simultaneamente. Ou seja, tudo o que está "presente" está, ao mesmo tempo, embora sob outras "facetas", "ausente". Portanto, imagino, a presença não nos exime de pensar algo, apesar de estarmos convivendo com o fenômeno presentificado.
  O capítulo final, "Heidegger, por Arendt (3)", dirá respeito à análise arendtiana do envolvimento de Heidegger com o nazismo.
 

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