terça-feira, 27 de janeiro de 2015

"Carta aberta ao mundo muçulmano"


   O título do post não se refere a uma carta escrita por mim, mas de autoria do filósofo francês, de família convertida ao islamismo, Abdennour Bidar.
   Segundo o autor da carta, não basta que os muçulmanos digam, sobre os atentados, "Isto não é o Islã" ou "Não em meu nome". Eles têm que fazer mais: reconhecer que "esse monstro nasceu do Islã".
   A íntegra da carta segue abaixo - conforme a tradução do site "Comunidade brasileira na França":

"Caro mundo muçulmano, sou um de teus filhos distantes que te vê do lado de fora e de longe, na França, onde tantos dos teus filhos vivem hoje. Te vejo com meus olhos severos de filósofo, abastecido desde a infância pelotaçawwuf(sufismo) e pela mentalidade ocidental. Logo, te vejo à partir da minha posição de barzakh, do istmo entre os dois mares do oriente e do  ocidente!
E o que é que vejo ? O que é que vejo melhor do que outros, justamente por que vejo de longe, com o recuo da distancia ? Te vejo num estado de miséria e sofrimento que me deixam infinitamente triste, mas que torna ainda mais severo o meu julgamento de filósofo ! Pois te vejo parindo um monstro que se pretende nomear  “Estado Islâmico”, o qual alguns preferem nomear de demonio : DAESH. Mas o pior é que te vejo se perder – perder teu tempo e tua honra – na recusa de reconhecer que o monstro nasceu de você, das tuas erranças, das tuas contradições, da tua defasagem interminavel entre o passado e presente, da tua incapacidade tão duravel de encontrar teu lugar na civilização humana.
O que você diz face a esse monstro ? Qual é o teu discurso ? Você grita “não fui eu !”, “Isso não é o Islã !”.  Você recusa que os crimes desse monstro sejam cometidos em teu nome (hashtag #NotInMyName). Você se indigna diante de tal monstruosidade, se insurge também se o monstro usurpa a tua identidade e é claro, tem razão de fazê-lo.
É indispensavel que diante do mundo você proclame alto e forte também, que o islã denuncie essa barbárie. Mas não é suficiente ! Pois você se refugia no reflexo de auto defesa sem assumir também, e sobretudo, a responsabilidade da auto crítica. Você se contenta em se indignar, no entanto esse momento histórico teria sido uma formidavel ocasião para você se questionar! E como sempre, você acusa em vêz de tomar sua própria responsabilidade : « Parem ocidentais e vocês todos os inimigos do islã de nos associar a esse monstro !  O terrorismo não é o islã, o verdadeiro islã, o bom islã que não quer dizer guerra e sim paz !
Eu escuto esse grito de revolta que se eleva em você, oh meu caro mundo muçulmano e eu o compreendo. Sim, você tem razão, como cada uma das grandes inspirações sagradas do mundo islâmico tem criado em toda sua história, a  beleza, a justiça, o sentido, o bem, e tem poderosamente iluminado o ser humano no caminho do mistério da existencia… Eu luto aqui, no ocidente, em cada um dos meus livros, para que essa sabedoria do islã e de todas as religiões não seja esquecida nem desprezada ! Mas da minha posição distante, eu vejo também outra coisa –  que você não sabe ver ou que você não quer ver… E isso inspira a minha questão. A grande questão : porque esse monstro roubou o teu rosto ? Porque esse monstro ignobil escolheu o teu rosto e não outro ? Por que pegou a máscara do islã e não outra ? É por que na verdade atras dessa imagem do monstro se esconde um imenso problema, que você não parece estar pronto a ver de frente. No entanto é preciso, é preciso que você tenha coragem.
De onde vem os crimes desse tal « Estado Islâmico » ? Eu vou te dizer, meu amigo. E isso não vai te agradar, mas é meu dever de filósofo. As raizes desse mal que te rouba a face hoje, estão em você mesmo, o monstro saiu do teu proprio ventre, o câncer está no teu proprio corpo. E de teu ventre doente, sairão novos monstros no futuro – piores ainda que esses – quanto mais tempo você se recusar a encarar essa verdade, quanto mais tempo você tardar a admitir e a atacar enfim, essa raiz do mal ! 
Mesmo os intelectuais ocidentais, quando digo isso, tem dificuldade em enxergar: a maioria esqueceu o que é a potência de uma religião – pro bem e pro mal, na vida e na morte –  me diz « não, o problema do mundo muçulmano não é o islã, não é a religião, é a politica, a história, a economia, etc ». Vivem em sociedades tão seculares que não se lembram mais que a religião pode ser o coração do reator de uma civilização humana ! E que o futuro da humanidade passará não somente pela resolução da crise financeira e econômica, mas de modo bem mais essencial pela resolução da crise espiritual sem precedentes, que atravessa nossa humanidade inteira !
Saberemos nos juntar em escala planetária para enfrentar esse desafio fundamental ? A natureza espiritual do homem tem horror ao vazio, e se não encontra nada de novo para preenchê-la, ela o fará amanhã com religiões cada vêz menos adaptadas ao presente – e como o islã atualmente, se meterão a produzir monstros.
Vejo em você, oh mundo muçulmano, forças imensas prontas para se levantarem para contribuir com o esforço mundial de encontrar uma vida espiritual para o século XXI! Há em você, apesar da gravidade da sua doença, apesar da extensão das sombras do obscurantismo com que querem te cobrir inteiramente, uma imensidão extraordinária de mulheres e homens que estão prontos a reformar o islã, a reinventar sua vocação além de suas formas históricas e a participar também da renovação completa da relação que a humanidade mantinha até aqui com seus deuses ! É a todos esses, muçulmanos e não muçulmanos, que sonham juntos uma revolução espiritual, que me dirigi em meus livros ! Para dar à eles, com minhas palavras de filósofo, confiança no que entrevê suas esperanças!
Existe na Oumma (comunidade de muçulmanos) dessas mulheres e homens de progresso, que carregam neles a visão do futuro espiritual do ser humano. Mais eles ainda não são bastante numerosos e suas vozes ainda não são bastante potentes. Todos esses, a quem saúdo a lucidez e a coragem, observaram perfeitamente o estado geral da doença profunda do mundo muçulmano, que explica o nascimento de monstros terroristas sob os nomes de Al Qaida, Al Nostra, AQMI ou de «Estado Islâmico». Eles compreenderam que não são esses os sintomas mais graves e mais visíveis no imenso corpo doente, onde as doenças crônicas são as seguintes : Impotência em instituir democracias duraveis nas quais são reconhecidas como direito moral e político, a liberdade de pensamento perante os dogmas da religião; prisão moral e social de uma religião dogmática, paralisada e às vezes totalitária; dificuldades crônicas em melhorar as condições das mulheres na direção da igualdade, responsabilidade e da liberdade; impotência em separar suficientemente o poder político, do controle da religião; incapacidade em instituir respeito, tolerancia e um verdadeiro reconhecimento do pluralismo religioso e das minorias religiosas.
Tudo isso seria culpa do ocidente ? Quanto tempo precioso, anos cruciais, você  ainda vai continuar perdendo, oh caro mundo muçulmano, com sua estúpida acusação que nem mesmo você acredita mais, na qual você se esconde para continuar mentindo à você mesmo ? Se te critico assim duramente, não é porque sou um filósofo ocidental, mas porque sou um de teus filhos, conscientes de que você perdeu a grandeza há tanto tempo, que ela se transformou em mito !
É tempo de confessar que desde o século XVIII (particularmente), você foi incapaz de responder aos desafios do Ocidente. Ou você se refugiou de modo infantil e mortífero no passado, com a regressão intolerante e obscurantista do wahhabisme que continua a fazer  desastres em quase todas as fronteiras  – um wahhabisme que você derrama de lá dos teus lugares sagrados da Arabia Saudita como um câncer que partiria do teu proprio coração ! Ou você seguiu o pior do ocidente, produzindo com ele os nacionalistas e um modernismo que é a caricatura da modernidade –  quero dizer do frenesi do consumo, ou do desenvolvimento tecnológico sem coerência com seu arcaismo religioso que faz das tuas « elites » riquissimas do Golfo somente vitimas coniventes dessa doença atualmente mundial que é o culto ao Deus dinheiro.
Que tem você de admiravel hoje, meu amigo ? O que em você continua digno de suscitar o respeito e a admiração dos outros povos e civilizações da Terra ? Onde estão teus sábios ? Você ainda tem sabedoria a propor ao mundo ? Onde estão teus grandes homens, quem são teus Mandela, Gandhi,  Aung San Suu Kyi ? Onde estão teus grandes pensadores ? Teus intelectuais cujos livros deveriam estar sendo lidos no mundo inteiro, como no tempo onde teus matemáticos e filósofos  árabes eram referência, da India à Espanha ? Na verdade, você se tornou tão fraco, tão impotente por tras dessa certeza que sempre demonstra à respeito de você mesmo… Você não sabe mais quem é e onde vai e isso o torna tão infeliz quanto agressivo…
Você se obstina a não escutar os que te chamam para a mudança a fim de te liberar da dominação que você ofereceu à religião durante toda a vida. Você escolheu que Mohammed era profeta e rei. Voce escolheu definir o islã como religião política, social, moral, reinando como um tirano tanto quanto o Estado na vida civil, tanto nas ruas quanto em casa e dentro de cada consciência. Você escolheu acreditar e impor que o islã é submissão, quando na verdade o alcorão proclama que não há submissão na religião (La ikraha fi Dîn). Você fez do seu chamado à liberdade o império da submissão !  Como uma civilização pode trair a esse ponto seu próprio texto sagrado ? É hora da civilização islâmica instituir essa liberdade espiritual – a mais sublime e difícil de todas  – em vêz dessas leis inventadas por gerações de teólogos !
Inúmeras vozes que você não quer escutar, se elevam hoje dentro das comunidades árabes para se insurgirem contra esse escândalo, para denunciarem o tabu de uma religião autoritária e indiscutível, de onde se servem seus chefes para perpetuarem indefinidamente sua dominação… Ao ponto que muitos crentes interiorizaram uma cultura de submissão à tradição e aos « mestres da religião » (imams, muftis, shouyoukhs, etc.) e eles mesmos não compreendem porque falamos de liberdade espiritual e não admitem que falemos de escolhas pessoais face aos pilares do islã. Tudo isso se constitui em « linha vermelha » para eles, alguma coisa de tão sagrada, que não ousam sequer dar às suas proprias consciencias, o direito de se questionarem ! E há tantas familias, tantas sociedades muçulmanas cuja confusão entre espiritualidade e servidão está incrustrada em suas mentes desde a infância e a educação espiritual pobre, que tudo que se refere à religião, seja perto ou longe, não se discute.
Isso não é, evidentemente, imposto pelo terrorismo de alguns loucos, por algumas trupes de fanáticos abarcados pelo Estado Islâmico. Esse problema é bem mais profundo e mais vasto! Mas quem o verá e o dirá ? Quem quererá ouvi-lo ? Silêncio sobre o assunto no mundo muçulmano e nas mídias ocidentais. Escutamos mais do que tudo, esses especialistas em terrorismo que agravam dia após dia a miopia geral ! Não se iluda, oh meu amigo, crendo e fazendo crer que quando tivermos terminando com o terrorismo islamista, o islã terá regrado seus problemas ! Pois tudo que acabo de evocar – uma religião tirânica, dogmática, literalista, formalista, machista, conservadora, regressiva – é frequentemente, não sempre, mas frequentemente o islã comum, o islã cotidiano, que sofre e faz sofrer muitas consciências, o islã da tradição, do passado, deformado por todos os que o utilizam politicamente, o islã termina sempre por sufocar as primaveras árabes e a voz de todas essas juventudes que pedem outra coisa. Quando você vai finalmente fazer a verdadeira revolução ? Essa revolução que nas sociedades e nas consciências fará rimar definitivamente religião e liberdade, essa revolução sem retorno que se transformará num feito social em meio a tantos outros no mundo e que seus direitos exorbitantes não sejam mais legítimos !
Claro, dentro do teu imenso território, há ilhotas de liberdade espiritual : Famílias que transmitem  um islã de tolerância, de escolha pessoal, de aprofundamento espiritual ; Meios sociais onde as grades da prisão religiosa estão abertas ou entre-abertas ; Lugares onde o islã dá o melhor de si, uma cultura de partilha, de honra, da busca do saber, e uma espiritualidade em busca de lugar sagrado onde o ser humano  e a realidade que chamamos Allâh se encontrem. Na Terra do islã e por toda parte nas comunidades muçulmanas do mundo, existem mentes fortes e livres, mas são condenadas à viverem sua liberdade sem segurança, sem reconhecimento de direitos,  a seus riscos e perigos face ao controle comunitário ou mesmo o controle da polícia religiosa. Nem por um momento o direito de dizer “Eu escolhi meu islã”, “Tenho minha própria relação com o islã » foi reconhecido pelo “islã oficial” dos dignatários. Esses, ao contrário, se precipitam em afirmar que  « A doutrina do islã é única » e que « A obediência aos pilares do islã é a única via correta» (sirâtou-l-moustaqîm).
Essa recusa ao direito a liberdade face à religião, é uma das raizes do mal da qual você sofre, oh meu caro mundo muçulmano, um dos centros obscuros onde crescem os monstros que você faz surgir há alguns anos diante de rostos alarmados do mundo inteiro, pois essa religião de ferro impõe à tuas sociedades uma violência insustentavel. Ela aprisiona  muitas de tuas filhas e filhos nas prisões de um bem ou mal, de um lícito (halâl) e de um ilícito (harâm) que ninguém escolheu, mas que todos se submetem. Ela aprisiona as vontades, ela condiciona os espíritos, ela impede ou entrava toda escolha pessoal de vida. Em muitas das tuas regiões, você associa religião com violência  – contra mulheres, contra os « maus crentes », contra as minorias cristãs ou outras, contra os pensadores e espíritos livres, contra os rebeldes – de tal maneira que  essa religião e essa violência se terminam por se confundirem, entre os mais desequilibrados e os mais frageis, na monstruosidade do jihad !
Então não se espante, não faça de conta que está espantado por tais demônios travestidos de Estado islâmico terem roubado teu rosto! Pois os monstros e os demônios só roubam rostos deformados! E se você quer saber como não parir mais esses monstros, vou te dizer. É simples, quer dizer, simples e ao mesmo tempo difícil. É preciso que você comece por reformar toda a educação que dá às tuas crianças, que você reformule cada uma de tuas escolas, cada um dos teus lugares do saber e do poder. Que você os reformule para dirigir de acordo com os principios universais (mesmo se você não é o unico a transgredi-los ou a persistir em sua ignorancia) : a liberdade de consciência, a democracia, a tolerancia e o direito de cité para toda a diversidade de visões e de crenças no  mundo, igualdade de sexos e a emancipação das mulher de toda tutela masculina, a reflexão e a cultura crítica do religioso nas universidades, na literatura, na midia. Você não pode mais recuar, você não pode fazer por menos ! Sua revolução espiritual tem que ser completa ! É o único meio de você não parir mais tais monstros, e se você não o fizer,  logo será devastado por seu poder de destruição.  Quando você tiver desempenhado bem essa tarefa colossal – em lugar de se refugiar na má fé e na cegueira voluntária, nenhum outro monstro abjeto poderá te roubar a face.
Caro mundo muçulmano… Sou apenas um filósofo. Alguns dirão que a filosofia é herege. Estou tentando apenas fazer resplandecer de novo a luz – o nome que você me deu me ordena, Abdennour, “Servidor da luz”.
Eu não seria tão severo nessa carta se eu não acreditasse em você. Como se diz em francês : «Qui aime bien châtie bien». E ao contrário dos que hoje não são severos o bastante com você – que encontram sempre desculpas, que querem fazer de você uma vítima, ou que não veem a tua responsabilidade no que te acontece – todos esses na realidade não estão te ajudando !
Eu acredito em você, eu acredito na tua contribuição em fazer do nosso Planeta, um universo mais humano e mais espiritual ! Salâm, que a paz esteja com você."

Publicado pelo jornal canadense huffingtonpost: 15/10/2014 22:58 EDT Atualizado em: 09/01/2015 05:12 EST
Tradução e adaptação Carla Cristina Daher, colaboradora.
http://quebec..ca/abdennour-bidar/lettre-au-monde-musulman_b_5991640.html
  

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