segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O "eu" de Santo Agostinho

Paulo Ghiraldelli Jr. dá uma descrição espetacular da introdução da reflexão sobre o "eu" na Filosofia, através do pensamento de Santo Agostinho. Para quem não lembra, Descartes, ao introduzir o "cogito, ergo sum" se faz legatário de Agostinho que, talvez com mais propriedade, em vez do "penso, logo sou" cartesiano, propõe algo que seria melhor descrito como "quero, logo sou", privilegiando a vontade e não o conhecimento.

Mas, voltando...

Ghiraldelli Jr. - com a clareza dos grandes comentadores - nos apresenta a ruptura entre a "alma" dos antigos e o "eu" agostiniano. Lá vai um excerto do livro "História da Filosofia - dos pré-socráticos a Santo Agostinho", onde ele faz suas considerações. Antes, porém, seria interessante comentar a metáfora platônica para a composição da alma.

Platão constrói uma imagem da alma - tripartida - como sendo uma biga, conduzida pela "razão", e puxada por dois cavalos: as "paixões" (desejos) e a "coragem" (acho que, para um melhor entendimento, seria mais apropriado referirmo-nos à "ação irrefletida").

Agora, sim, o texto de Ghiraldelli Jr.

"Platão não põe uma instância, no interior da alma, que assista aos três elementos atuando... No entanto, Agostinho teve de levar em conta o preceito cristão da autonomia da vontade. Ele tinha de imaginar uma alma montada... com razão, paixões e coragem ("ação irrefletida"), mas também com vontade livre... A vontade deveria ser consciente, de modo a podermos falar em responsabilidade e culpa.

No caso da biga... de Platão, quando ela atropela alguém, isso tem de ser explicado pelo fato de que, na disputa entre os dois cavalos, um foi mais forte ou ambos criaram uma situação desastrada e o cocheiro não conseguiu a harmonia esperada. Criamos uma teoria da ação em que o resultado é uma soma de vetores. Razão, paixão e coragem seriam os vetores e, no caso do desastre, a alma seguiu um resultado vetorial infeliz... Haveria responsabilidade na condução da biga, é claro. Haveria punição para quem a conduzisse mal. Mas não haveria culpa, no sentido moderno do termo, pois neste sentido, a culpa envolve o querer. O pecado envolve a decisão, o querer e, portanto, a vontade.

O 'eu' que escolhe não era visto por Santo Agostinho como um ato de interseção de forças psíquicas. Ele ganhou o caráter de instância decisória.

Agostinho precisou considerar os atos de uma alma que podia não agir de um determinado modo e, no entanto, intencionalmente agiu daquele modo e trouxe para a cena algo como aquilo que entendemos como 'eu'.

O 'eu' seria não aquele que diz 'penso, e sei que penso', mas aquele que diz 'quero, e sou eu que quero' (ou, talvez, 'quero, e sei que quero'). Aristóteles não considerou em sua concepção de vontade algo além das partes racionais da alma. Mas Agostinho parece ter considerado uma vontade além de tais partes... Ele não viu o 'eu' como o resultado de forças psíquicas, e sim uma alma que tem um núcleo superior, que é a instância decisória. Essa instância é a vontade".

Essa é uma questão bastante interessante. Eu, por exemplo, sempre questiono a possibilidade de falar em "livre arbítrio", por acreditar no "eu" justamente como essa "interseção de forças psíquicas" e não como uma "instância decisória" transcendente ao conjunto razão-paixão-coragem (ou, pelo menos, da dupla "razão-paixão"). Agostinho, colocando a vontade acima do trio razão-paixão-coragem realmente possibilita a concepção do "eu" como totalmente livre e, portanto, com um comportamente plenamente responsabilizável no plano ético . Os antigos, limitando a alma ao trio em questão, possibilitam pensar no comportamento ético correto como uma restrição das paixões pela razão.

Spinoza não se liga nem a um grupo nem a outro... mas depois eu conto isso!

Um comentário:

Márcio Fernandes disse...

Ola Ricardo,
Estava interessado em ler e pensar mais sobre o "eu" agostiniano. OPr acaso conhece algum livro ou fragmentos de Agostinho que falem desse tema de forma direta?
Grande abraço
Márcio Fernandes
martio@ig.com.br