Concluída a leitura do livro "Contra-história da Filosofia", de Michel Onfray - ou, pelo menos, a parte que me propus a ler, que dizia respeito à Introdução, ao pensamento spinozano e à Conclusão -, faço alguns comentários sobre o livro.
Neste post, pretendo falar exclusivamente da Introdução.
Recordo que o livro "encaixava" o pensamento spinozano no movimento dos libertinos barrocos. Mas o que poderíamos chamar de libertino? Onfray explica que "o termo libertino... no início, desacredita um homem, um pensamento: o libertino denomina, de outro modo, o ateísta, como se dizia na época... o heterodoxo, o herético... que não crê no Deus dos cristãos com o fervor... exigido pela Igreja católica... A etimologia...: o libertino - o libertinus romano - define o 'emancipado'".
Depois, Onfray faz uma distinção entre os "libertinos eruditos" e os "libertinos de costumes". O primeiro tipo corresponderia a um modo "emancipado" de pensar, enquanto o último a uma visão mais próxima do que o senso comum chama de "libertinagem", ou seja a qualidade de agir amoralmente.
Se o termo "libertino" está explicado, por que do "barroco"? Onfray alega duas percepções para o termo. A primeira diz respeito ao "jogo da luz no escuro", tão bem representado pelo quadro "Filósofo ao pé da escada", do vizinho de Spinoza, Rembrandt. Ou seja, "o filósofo libertino, o libertino barroco, o pensador emancipado trazem luzes num tempo tenebroso". A outra diz respeito ao estilo "torneado, burilado... retórica de volutas, ... jogos de forças e contraforças, ... repetições... efeitos de espelho", como o de Pierre Charron, por exemplo, ou "a arquitetura more geometrico de um Spinoza, cuja 'Ética' propõe um castelo de formidáveis potencialidades existenciais".
Onfray admite que há que se fazer uma certa "adaptação" para que os pensadores em questão entrem no universo libertino barroco. Essa é uma honestíssima confissão, e ela é feita de modo a não nos sentirmos meros "rotuladores" de um pensamento. E, mais do que isso, conseguimos compreender que o pensador em questão não se resume àquilo que é apresentado. Isto é um aspecto reduzido de todo o vigor pensante do filósofo analisado... mas haverá sempre muito mais a descobrir. Diz ele: "Descreve-se a configuração geral, apreendem-se de longe os contornos, apaga-se o detalhe para melhor traçar uma figura legível. Assim, força-se a entrar nos limites de algumas páginas a vitalidade transbordante de pensamentos e de pensadores cujo valor reside justamente em sua irredutibilidade".
Onfray demarca o período "libertino barroco" segundo sua subjetividade, mas explica de modo aceitável seu ponto de vista. Dirá, então, que o período se inicia com a morte de Montaigne e se encerra com a morte de Spinoza. A escolha de "mortes" como marcos não é à toa. Onfray nos explica, até poeticamente, que "a morte física de um pensador assinala a data do nascimento do devir do seu pensamento".
Ao fim da Introdução, Onfray estabelece rigidamente o seu conceito do personagem que será analisado. Diz ele: "Os libertinos barrocos procedem de condições históricas semelhantes: primeiro, pertencem a uma genealogia montaigneana; segundo, propõem uma epistemologia singular, que ativa um método de desconstrução cética; terceiro,... promovem uma ética imanente e, quarto, avançam considerações inéditas sobre as questões da religião, lançando as bases de crenças religiosas fideístas".
O primeiro ponto, além de dizer respeito ao início histórico escolhido por Onfray, indica algo sobre uma filiação de vários filósofos franceses, principalmente os que gravitam em torno de Descartes - este, também, com uma genealogia montaigneana.
O segundo ponto, ainda mantém alguma ligação com o primeiro. Afinal, o ceticismo ganha expressão, novamente, com Montaigne. Entretanto, um destaque de Onfray é que "o libertino barroco recorre a um método cético. Um método, nada mais... Mas ninguém conclui pela suspensão do juízo ou pela incapacidade de concluir... Duvida-se, mas por uma tábula rasa útil e necessária à reconstrução" - novamente, a lembrança de Descartes nos ocorre.
Envolvendo o terceiro e o quarto pontos, embora o autor esteja a citar especificamente o terceiro, Onfray indica que "a Verdade, a Lei, a Religião, a Moral e outros ídolos maiúsculos, mas também os ídolos minúsculos - os costumes, os modos, as crenças - passam pela decapagem crítica".
Ainda no que se refere à ética, Onfray destaca que "a moral deles não é prescritiva, mas consequencialista. Esse além do Bem e do Mal, em benefício de um Bom e de um Mau, se encontrará na 'Ética' de Espinosa". Eu, particularmente, teria registrado esse "bom" e "mau" com minúsculas, mas... o autor é ele.
Por último, Onfray destaca que "nenhum libertino barroco é ateu". Segundo ele "Não está na hora do ateísmo. Cedo demais". Diz ainda: "Ninguém parte em guerra contra Deus. Deixam-nos lá... pensam-no... descuidado do destino dos homens. Essa maneira de abandonar esse tema contribui para a separação... da Fé e da Razão".
Já próximo ao fim da Introdução, Onfray escreve um trecho sob o título "Arrematar e consumar a libertinagem", onde faz uma observação interessante: "Enquanto poupam a religião católica..., enquanto respeitam Deus e os princípios da monarquia francesa, para evitar desordens e guerra civil, os libertinos barrocos limitam suas potencialidades radicais e críticas.
Para se desfazer do Deus dos católicos - ... onipotente, onipresente e onisciente... - e do rei, encarnação de Deus na Terra, era necessário um filósofo que não fosse francês, que não fosse formatado pelo pensamento cristão... Esse filósofo existe... Baruch de Espinosa... Seu vigor e sua potência conceitual rebaixam e superam os libertinos barrocos... Com Espinosa, se arremata um momento filosófico, enquanto se prepara a imensa aventura das Luzes".
Ou seja, já na Introdução, fica claro que Onfray não vê em Spinoza apenas mais um libertino barroco, mas já um ultrapassamento deste conceito em nosso querido filósofo. Esta opinião ficará mais perceptível ainda, na Conclusão do livro.
Por ora, gostaria apenas de ponderar que não me parece totalmente justo imputar a desconstrução do Deus católico ao fato de Spinoza estar fora de uma tradição francesa... e cristã. Afinal, talvez, mais forte do que o "Deus cristão" fosse o "Deus judaico". E, desse, Spinoza começou a se livrar ainda no seio de sua comunidade judaica. Ou seja, Spinoza já se movimentava na direção de um questionamento do plano transcendente desde muito cedo. Eu poderia imaginar - e realmente é só um exercício especulativo - que Spinoza fá-lo-ia, da mesma maneira, caso tivesse nascido na na tal tradição francesa.
Em relação ao aspecto político, realmente, Spinoza parece estar mais à vontade para defender a democracia republicana a partir da experiência da sua Holanda, onde, mesmo sob forte tensão, coexistem os movimentos republicano e monarquista, alternando-se.
Depois eu falo de um engano de Onfray, na parte referente ao nosso querido Spinoza.