domingo, 25 de outubro de 2009

Primeiras impressões do "Caim", de Saramago

Embora eu tenha lido apenas um terço do livro, já dá para ter uma ideia que ele é.
Duas coisas chamam logo atenção: a incrível criatividade do autor e - esta, tomando a liberdade de invadir uma área que não é minha, a do estilo de composição - uma certa flexibilização na radicalidade da pontuação, que sempre foi o estilo do Nobel português.
O tema escolhido - uma estória bíblica - realmente dá margem a muitas criações, afinal, o texto original lança um olhar intencionalmente perspectivado, o que deixa aberto um sem número de outras possibilidades de visada. E Saramago se aproveita de outras dessas perspectivas para inventar a "sua" estória de Caim. Mas, mesmo antes de abordar especificamente o mais famoso fratricida de todos os tempos, a inventividade do português já dá suas piruetas. O romance tem início, ainda no Jardim do Éden, quando Deus percebe que não dotou suas criaturas humanas, Adão e Eva, com uma "voz" - no texto, os outros animais já tinham lá suas "vozes". E Saramago escreve: "Teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar". Num movimento dos mais inteligentes, o autor indica que "Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e... enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo".
Detendo-nos rapidamente nessa passagem, é interessante avaliar como o escritor - assumidamente ateu, e talvez mais inteligentemente ateu do que Richard Dawkins, por exemplo - faz um exercício de lógica, atacando não Deus diretamente, mas o conceito estabelecido de Deus, através de uma espécie de "negação pelo absurdo". Ora, é certo que um ser onipotente nunca, como está registrado na Bíblia, se arrependeria da sua criação. Isso seria uma dupla imperfeição, tanto por ter criado algo mal planejado - apesar de sua oniciência -, quanto por um certo sentimento de insatisfação consigo mesmo - o que não pareceria pertencer à perfeição divina.
Saramago não explora essa passagem, como eu fiz, mas reflete, no romance, sobre a irritação de um ser perfeito quanto a um planejamento mal executado e sobre a estranheza deste ser não corrigir o problema apelando apenas a um novo "faça-se", como o que dera início ao próprio Universo.
Outra passagem interessante, ainda no início do livro, já depois de Adão e Eva terem comido do fruto proibido, lança um comentário irônico sobre esse evento, citando "a imprevidência do senhor, que se realmente não queria que lhe comessem do tal fruto, remédio fácil teria, bastaria não ter plantado a árvore, ou ir pô-la noutro sítio, ou rodeá-la por uma cerca de arame farpado".
E olha que ainda nem falei de Caim, ainda...
O outro aspecto que citei, a de uma certa diminuição na radicalidade estilística da pontuação, pode ser apenas uma impressão pessoal. Aliás, parece que com a evolução no próprio texto, a coisa se modifica um pouco. Seriam as escritas diárias no blog - que não conta com a mesma estrutura estilística -, que teriam diminuído a presença de uma pontuação "maluca" no texto saramaguiano? De qualquer forma, percebo frases mais curtas, com mais pontos. Continuam as separações não muito formais através de vírgulas apenas e a ausência total de pontos de interrogação. Mas... realmente senti uma certa modificação. Impressão? Talvez...
Depois eu conto mais.

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