domingo, 18 de abril de 2010

"Causa sui"

  Comecei escrevendo um comentário de resposta ao querido amigo Existenz, mas senti que o pequeno texto poderia provocar alguma discussão a mais... e resolvi trazê-lo para o espaço dos posts.
  Portanto, esse post começa como uma resposta e se desdobra em uma pequena reflexão sobre a ideia de "causa sui".
  A resposta ao amigo Existenz começaria reconhecendo que a referência que fiz no post sobre o "Texto preguiçoso (2)" realmente não trata de nenhum "texto" trocado entre nós, mas de uma conversa na "Esquina Filosófica". Além disso, ele guardou bem a referência temporal, visto que esse colóquio se deu bem no começo de nossa amizade... pouco depois de apresentados por seu irmão.
  Sobre a definição spinozana da "causa sui", em algum momento, tem-se que aderir a ela. Caso contrário, teremos que admitir um remetimento ao infinito na cadeia causal. A "elegância" da definição spinozana, eliminando tanto a mera materialidade quanto fugindo à imposição apenas da espiritualidade, parece-me uma das grandes "construções" do sistema do luso-holandês.
  A "causalidade", como categoria da realidade, é uma relação empírica, e não lógica. Tanto assim que Hume conseguiu "sangrar" esse conceito até ele quase morrer. Quem salvou a "causalidade" foi Kant - novamente, ele. Rsss. Mas, salvou retirando-a da Natureza e colocando-a no ser humano... que a lança sobre a Natureza, enquanto percebe os dados que vêm dela.
  A noção de "causa sui", com o alcance que Spinoza dá, parece-me poder ser facilmente entendida com a simples substituição pela ideia de "continuidade". Aliás, a "infinitude", que será uma das cartacterísticas da Substância spinozana - desdobramento conceitual do que se inicia com a definição de "causa sui" - mostra-se, de modo perfeitamente admissível, como próximo à simples ideia do "incausado" - já que "está lá" desde sempre. Ou seja, "incausado" e "causa sui" - este último atendendo a uma atenção especial com a "causa eficiente" para os modernos - teriam o mesmo significado... não o de causa e efeito simultaneamente, mas de "elemento" que participará da cadeia causal, sem nada que possa ser determinado singularmente como sua causa isolada. E aqui se poderia pensar em algo como um círculo remetendo à Substância. Nenhum ponto dela é sua causa específica, porque todos participam do "jogo de causalidade" de que há um ponto "antes" e outro "depois" de cada ponto dado, sem que se possa falar exatamente em deles que delimite o começo desse todo que é a circunferência em si.
  E se a "percepção empírica" falar mais alto, exigindo uma "causa da causa da causa...", reforço que, em algum momento, teremos que desistir da pretensão de achar a causa primeira, assumindo uma parada "abrupta" - como Deus ou o Espírito, por exemplo - ou uma "eternidade" dessa linha de causalidade... lembrando que essa "eternidade"/"infinitude" pode representar não só uma linha que avança para o passado e o futuro, mas também uma curva fechada, na qual o tempo se desenvolve continuamente.
  A segunda foi a opção spinozana... enquanto, a primeira foi a opção de outros tantos.

10 comentários:

Anônimo disse...

Olá Ricardo. Minha crítica no meu comentário foi no caso de um “efeito sem causa”. Note que isso não é o mesmo do que você colocou agora: “de "elemento" que participará da cadeia causal, sem nada que possa ser determinado singularmente como sua causa isolada”. Assim, eu não diria que encontramos aí um “efeito”, mas algo “incausado”, como você mesmo colocou, “que "está lá" desde sempre”. Isso não me parece causar alguma complicação lógica séria, mas simplesmente confundir nosso pensar acostumado com a finitude e com a temporalidade que sempre vivenciamos na experiência (por isso a idéia de infinito é fácil de aceitar, mais difícil de visualizar em si mesma). E isso eu concordo, pelo menos quando fala da impossibilidade de encontrar uma certa origem para o primeiro (afinal, se ele é primeiro, como ele chegou lá?), mas discordo se em algum momento postularia uma história para essa origem, como um início advindo do próprio início (talvez a exceção seria colocar Deus na história, mas mesmo assim isso já seria causar outros problemas...), o que parece não ser o caso, pois você diz “não o de causa e efeito simultaneamente”. Sigo, então, você até o final quando diz: “reforço que, em algum momento, teremos que desistir da pretensão de achar a causa primeira, assumindo uma parada "abrupta" - como Deus ou o Espírito, por exemplo - ou uma "eternidade" dessa linha de causalidade... lembrando que essa "eternidade"/"infinitude" pode representar não só uma linha que avança para o passado e o futuro, mas também uma curva fechada, na qual o tempo se desenvolve continuamente.” Logo, parece ter havido mais um mal entendido do que uma discordância, apesar do que não me soou muito bem essa sua idéia de que “A "causalidade", como categoria da realidade, é uma relação empírica, e não lógica.”. Bem, o meu comentário em relação a isso já ficaria para outra ocasião.
Um abraço.

Ricardo disse...

Querido amigo Existenz:
Parece-me que, de algum modo, eu consegui realizar uma boa hermenêutica de um conceito spinozano. É óbvio que a "causa sui", enquanto pretenso princípio causal de algo que é infinito não pode existir. Neste aspecto, realmente parecemos estar diante de um paradoxo. Entretanto, se fugirmos do meramente textual, chegamos a algo próximo ao que eu disse.
A metáfora da circunferência também não me parece fugir ao espírito spinozano, mantendo a força do argumento de Spinoza, mas reintepretando-o... ou melhor, explicitando algo que já está lá.
A partir dessas novas "luzes" sobre o conceito de "causa sui", acho que realmente não temos motivos para discordância, já que, como você bem disse, parece ter havido mais um "mal entendido" do que uma "divergência" efetivamente.
Por último, eu gostaria muito de receber o seu comentário sobre o fato da "causalidade ser uma relação empírica, e não lógica". Essa ideia foi lançada em uma aula de Lógica a que assisti. É verdade que, solta, ela pode causar algum estranhamento. Mas a coisa me parece bem... lógica - fazendo uma pequena brincadeira com o termo -, bastando ir a Hume para reforçar essa tese.
Eu daria uma dica sobre essa ideia: a necessidade lógica é atemporal, enquanto a causalidade obrigatoriamente contempla o tempo em sua estrutura de necessidade.
Não sei se só o tempo é o ponto chave, aqui... mas sei que, como em diversos aspectos da Filosofia, ele tem um peso muito grande.

Anônimo disse...

Olá Ricardo. Realmente faz algum sentido “a necessidade lógica é atemporal, enquanto a causalidade obrigatoriamente contempla o tempo em sua estrutura de necessidade”, mas foquei a questão em um outro aspecto do termo “lógica”: na forma como articulamos as idéias e as coisas, como elas são apreendidas em suas relações e não por si mesmas. Assim, concordaria com você ao se tratar da lógica em sentido estrito, como uma ciência abstrata do pensamento – assunto que inclusive já abordamos nas nossas cartas -, mas lembro que há mais desse termo do que isso, fazendo com que falar na causalidade como “categoria da realidade” e ainda dizendo que esta categoria se caracteriza por ser “uma relação empírica, e não lógica” é justamente aquilo que é próprio a uma lógica: dividir a realidade em categorias “A” e “B”, classificando-as de forma distinta e bem delimitada, e, sendo coerente com isso, até articular essa divisão em um sistema maior de elementos (é o que Castoriadis chamaria de “lógica conjuntista-identitária” na sua forma mais pura e radical), e daí em diante... E não é esse o contexto da “referência causal” ao se observar o dar-se de um certo “A” e um certo “B” no real?
Um abraço.

Ricardo disse...

Querido amigo Existenz:
Como você bem lembrou, nós já tivemos realmente uma discussão sobre o conceito de "Lógica". Da mesma forma que antes, eu tento ficar com o sentido mais "estrito", enquanto você tem utilizado um sentido mais "lato".
Se bem me lembro, entretanto, da outra vez, você trabalhou melhor esse conceito "alargado". É bem verdade que o espaço das "cartas" dava mais margem a esclarecer melhor os pontos de vista de cada um de nós.
Aqui, por outro lado, acho que você não conseguiu o mesmo.
Em primeiro lugar, porque dizer que a "Lógica" (mesmo em sentido amplo) divide a realidade em categorias A e B, como você disse, já é um pouco problemático. Acho que a pretensão não é dividir, mas tomar as menores partículas significativas - que já são dadas previamente... talvez, a partir de determinadas escolhas metafísicas - e declarar algo sobre a realidade com elas. O que vem a seguir, e que me parece mais pertencente à Lógica mesma, é que ela se desloca para um campo "anterior" aos CONTEÚDOS DA REALIDADE, verificando se estruturalmente há uma implicação necessária entre a primeira declaração e a segunda. Se essa relação de implicação é necessária, a realidade só evidencia isso. Mas a relação efetivamente lógica seria a de necessidade... e não de causalidade.
Entretanto, essa relação existente entre A e B - que você estabeleceu, a partir dos eventos empíricos do "dar-se um certo A e um certo B no real"- não consegue, penso, tirar da realidade esse nexo causal necessário pretendido por você... que diria respeito a "um certo B a partir de um certo A". Do jeito que você coloca as coisas, a Lógica fica parecendo apenas uma ciência empírica, que "testa" as relações de "causalidade" empíricas para torná-las relações de "necessidade" em sua teoria. Eu diria que, muito pelo contrário, o que se pretende é que ela - mesmo com toda a "contextualização" que você destaca - seja, inclusive, uma antecipação necessária à própria Filosofia e ciência.
Portanto, mesmo dentro de um certo contexto, continuo imaginando a causalidade como relação que se estabelece apenas observando eventos empiricamente - que até podem receber uma "identidade" lógica - e o resultado, também empírico, mas que não se estabelece necessariamente esse "vínculo" de necessidade, que só a Lógica fornece.
Abração... e desculpe a demora da resposta.

Anônimo disse...

Olá Ricardo. Entendi seu ponto de vista, mas acho que ainda não consegui comunicar o meu. Concordo com você, vou ser um pouco mais próximo do que tentava fazer em nossas cartas, e, por isso, não tentarei fazer textos curtos, mais confortáveis de ler em posts curtos de blog.

(continua no próximo comentário)

Anônimo disse...

A lógica em sentido estrito trata de enunciados e elementos puros, e de como eles se organizam entre si sem nenhum contexto empírico. É uma ciência fundamental, anterior a experiência. Nisso você está correto. Mas, você está tratando da Lógica Formal, das regras básicas de uma ciência particular fundamentadas principalmente por Aristóteles e de como ela pode ser aplicada a enunciados puros. Você esquece que essa Lógica Formal não fecha o significado do termo “lógica”. Vemos isso, por exemplo, no termo “lógica dialética”, ou na “lógica matemática” ou na “lógica complexa” que são lógicas propondo uma nova articulação entre os elementos, uma nova forma de ver a relação entre a identidade e a diferença, entre elementos e seus conjuntos, e, inclusive, algumas vezes rompendo a linearidade antes pensada como necessária dos enunciados pela Lógica Formal. Há como, portanto, usar o termo “lógica” para falar também das relações, “conjuntizações”, articulações de elementos puros (ainda não estamos falando de objetos concretos) entre si. Note-se, com isso, que alguma lógica (mesmo que em sentido bem estendido) sempre precisou existir, pois se não, nem mesmo seria possível existir a linguagem e com isso a filosofia ou o Organon aristotélico. Somente distinguindo, escolhendo, estabelecendo, juntando, contando, dizendo, e dizendo de tais meios e não de outros, é que algo pode ser determinado, formado como identidade e, evidentemente, como diferença em relação ao que essa identidade não é (o que é justamente o princípio do terceiro excluído, algo que você deve estar familiarizado, pois é falado na Lógica Formal). E a radicalização desse distinguir-escolher-estabelecer-juntar-contar é a “determinalidade” mais sistemática, a classificação mais delimitada, a distinção mais fechada entre o que é e o que não é, entre aquilo que “faz parte de si mesmo”, e aquilo “faz parte de outro si mesmo”, dando origem a certos pensamentos “ultra-racionais” que vemos em alguns filósofos.

(continua no próximo comentário)

Anônimo disse...

Assim, a partir um “lógica” conjuntista-identitária que nasce, de qualquer forma, as relações “empíricas” que fazemos ao observarmos a experiência (note que só agora pulei para algo “empírico”), pois o que é dito, falado, pensado o é, de alguma maneira, relacionando, tornando identidade, e “conjuntizando-a” em um grupo do qual faz parte, e isso já é algum tipo de “lógica” (mesmo a Lógica Formal, com o princípio da identidade, do terceiro excluído, etc já havia percebido essa relação necessária entre identificação, conjuntização e sua aplicação necessária a situações práticas). Logo, falar em “conteúdos da realidade” não é falar a própria realidade (o termo “própria realidade” já é contraditório em si mesmo), é interpretação social e historicamente determinadas (não entrando aqui no mérito se isso é algum tipo de idealismo ou não, o fato de ser idealismo ou realismo aqui não possui nenhum sentido segundo o contexto), e toda interpretação, principalmente a falada, já pressupõe distinguir-escolher-estabelecer-juntar-contar, e portanto, é parte de toda “racionalização” própria ao ser humano.

(continua no próximo comentário)

Anônimo disse...

Você diz: “Em primeiro lugar, porque dizer que a "Lógica" (mesmo em sentido amplo) divide a realidade em categorias A e B, como você disse, já é um pouco problemático. Acho que a pretensão não é dividir, mas tomar as menores partículas significativas - que já são dadas previamente... talvez, a partir de determinadas escolhas metafísicas - e declarar algo sobre a realidade com elas.” Não é propriamente a Lógica que formula “categorias”, mas ela “raciocina” segunda uma divisão, separação, distinção de identidades, querendo fazer das coisas A e B, coisas distintas, mas qual será o “tal A” específico ou “tal B” específico já é outra história. A pretensão de “tomar as menores partículas significativas” é, no meu ver, a pretensão por separações e divisões bem definidas e claras, e como estas divisões bem definidas e claras vão ser arquitetadas em “sub divisões”, e se relacionarão com identidades mais abrangentes, ou seja, se estaria falando em algum tipo de sistematização dos elementos, pois só assim poderá ser identificado um elemento que seja “mais simples” do que outro, e como isso poderá se articular com elementos “mais complexos” (de novo a separação em conjuntos ocorre com toda a força). A significação “categorias” é uma significação particularmente bastante coerente com essa lógica conjuntista-identitária, mas seu conteúdo é uma criação social histórica particular, com uma semântica própria, e poderia ter sido formulada de outra forma que ainda seria coerente com essa lógica conjuntista-identitária.

(continua no próximo comentário)

Anônimo disse...

Você diz: “[A Lógica] se desloca para um campo "anterior" aos CONTEÚDOS DA REALIDADE, verificando se estruturalmente há uma implicação necessária entre a primeira declaração e a segunda.” O que você parece estar colocando com isso é o silogismo? Se esse for o caso, esse é simplesmente um elemento da Lógica tal qual Aristóteles a formulou, tendo criado inclusive um nome pra isso (mas notamos que essa criação de Aristóteles, não só foi baseada em raciocínios e modos de relacionar enunciados já previamente existentes na sociedade, mesmo que nunca nomeados e definidos como tal, como também caí naquilo que eu já tinha falado como certos pensamentos “ultra-racionais” que vemos em alguns filósofos, onde se procura encontrar verdades basicamente pela radicalização pura da lógica conjuntista-identitária). E você continua: “Mas a relação efetivamente lógica seria a de necessidade... e não de causalidade.”. Os termos “necessidade” tanto como a “causalidade” ou, como eu falei anteriormente, “categorias” não são parte da lógica propriamente, pois possuem significados particulares, são, portanto, invenções que possuem uma certa semântica, algo mais próprio ao terreno da ontologia, mas que só foram inventados (e isso precisa querer dizer sempre uqe precisaram ter algum tipo de determinação) pois estão sedimentados em alguma lógica (pressupondo com isso alguma identificação, uma separação, distinção em conjuntos plenamente definidos, articulando-se de forma linear ou não, etc...) , e é isso que estou querendo me fazer entender o tempo todo. Quando você diz: “Entretanto, essa relação existente entre A e B - que você estabeleceu, a partir dos eventos empíricos do "dar-se um certo A e um certo B no real"- não consegue, penso, tirar da realidade esse nexo causal necessário pretendido por você... que diria respeito a "um certo B a partir de um certo A". Do jeito que você coloca as coisas, a Lógica fica parecendo apenas uma ciência empírica, que "testa" as relações de "causalidade" empíricas para torná-las relações de "necessidade" em sua teoria.” você continua procurando uma “ciência” particular, quando eu estou falando na “ciência da ciência”, naquilo que fundamentaria qualquer “silogismo” ou qualquer “análise empírica”.

(continua no próximo comentário)

Anônimo disse...

Bem, no final, acredito que os problemas apresentados foram mais de alguma falha na comunicação do que qualquer outra coisa, e isso por que estamos nos baseando em referenciais teóricos distintos (no meu caso, principalmente Castoriadis) e por que o espaço de comentários do blog não me permitia ir até onde precisava para me fazer entender em um assunto tão abstrato e complexo.
Um abraço.