sexta-feira, 19 de junho de 2009

"Cinefilô" lido

O livro "Cinefilô" já valeu vários posts aqui no blog. Ontem, concluí a leitura da parte referente a Spinoza. Visto que há outras "pendências" de leitura, deixarei a parte do Descartes para uma próxima ocasião.

Antes de terminar a leitura, conversava sobre o livro com um conhecido do trabalho, formado em Filosofia, e também apreciador de Spinoza. Ele também gostou muito do livro, e, após uma passada d'olhos, afirmou que iria comprar um exemplar. Isso quer dizer que meu senso crítico filosófico-literário não está tão "desafinado" assim. Rsss.

Acho que o livro ainda poderá valer alguns posts, mesmo que seja apenas para "apoiar" algumas ideias de Spinoza comentadas no futuro. Mas, hoje, quero falar de um aspecto bastante "delicado" na filosofia spinozana, que têm rendido muita discussão: a eternidade, segundo Spinoza.

Em determinado momento da Ética (Parte 5, Prop. XX, escólio), Spinoza diz que é chegada a hora de falar do que "se refere à duração da alma sem relação com a existência do corpo". Muitos entenderam que Spinoza estava defendendo a "imortalidade da alma" - e entrando, assim, numa filosofia espiritualista. Destaco algumas passagens do livro de Ollivier Pourriol sobre o assunto.

"Spinoza não pede 'mais vida', pede mais da vida. O que queremos não é uma vida mais longa, mas uma vida mais viva. Queremos que cada um dos momentos de nossa vida seja tão ativo quanto possível, queremos ser a causa adequada de nossos sentimentos, não queremos sofrer as causas exteriores, em suma, queremos fazer a experiência da eternidade... Essa experiência da eternidade, Spinoza promete-nos, poder fazê-la enquanto vivos"- lendo isso, fiquei com uma impressão de que o "eterno retorno" nietzscheano seria uma espécie de "plágio" da eternidade spinozana. Ollivier vai citar essa "correspondência" -;

"Deleuze considerava Spinoza e Nietzsche muito próxmios em sua denúncia das paixões tristes, na promessa de uma eternidade ligada não a um mundo subjacente, a um alhures que seria melhor que aqui e agora, mas a uma intensificação de nossa vida presente. O que Nietzsche chama de eterno retorno não consiste em reviver eternamente a mesma coisa; é, ao contrário, um princípio seletivo, que consiste em tentar viver cada instante como se fôssemos revivê-lo indefinidamente... Reviver o passado significa que não amamos o presente, é uma negação do presente... Ao passo que viver o presente de maneira a tornar seu eterno retorno desejável não signifca que vamos revivê-lo de fato, mas que vamos vivê-lo tão intensamente, de maneira tão afirmativa que ele vai irradiar um brilho sobrenatural. Uma vida pode ser considerada eterna... desde que sejamos suficientemente ativos e afirmativos para podermos dizer que escolhemos esse instante. Escolhê-lo é afirmá-lo. É afirmar que poderíamos desejar revivê-lo eternamente";

"A eternidade consiste em sair do 'tempo ruim' da paixão... mas não se trata de sair dele pela morte, nem pela repetição indefinida de um momento prazeroso. Uma terceira solução seria a imortalidade..." - e, aqui, o autor deixa claro que não é essa a "saída" que Spinoza propõe, ao contrário do entendimento de alguns - "A eternidade não propõe uma diferença de quantidade, mas de qualidade. A imortalidade não lhe dá senão mais tempo, a eternidade lhe dá o tempo, lhe dá verdadeiramente o sentimento de durar. Não mais, melhor"; e

"Na Ética, Parte 1, Spinoza explica que 'A eternidade é o desfrute infinito da existência'... A duração é 'a continuação indefinida da existência'. O tempo é uma maneira abstrata de conceber a duração, uma maneira de contar a duração e, portanto, de degradar uma qualidade em quantidade - um pouco como se, a alguém que lhe diz: 'Eu te amo', você respondesse: 'Quanto?'" - Essa comparação me pareceu fantástica. Se o amor tem que ser "quantificado" é porque não se entendeu que sua característica mais nobre é justamente a qualidade, e não a quantidade.


Parece-me, então, que a chave para entender a "eternidade spinozana" está na afirmação de Spinoza de que "a eternidade é o desfrute infinito da existência". O aumento da nossa perfeição, ou seja, a nossa alegria ativa, muda a qualidade da nossa vida, sem precisar prolongar a sua duração efetiva. O "desfrute infinito da existência" pode se dar em um instante. Nesse instante, a alma atinge a sua perfeição porque entende as coisas adequadamente... "sub specie aeternitate" - sob uma espécie de eternidade. E, como à alma cabe o entendimento, quando esse entendimento se dá "sob uma espécie de eternidade", a alma realiza sua perfeição... e é ela também como que eterna.
Não é tão fácil... Mas "o que é raro é difícil", como nos diz Spinoza. E, sempre podemos contar com os amigos para lançar luzes sobre o assunto.

Apesar de concluída a leitura, ainda há algumas coisas que desejo registrar para o futuro.




3 comentários:

Prof. Guilherme Fauque disse...

Muito bom! Ótimo texto.

Estou lendo um livro chamado Betraying Spinoza de Rebecca Goldstein e tem uma parte onde ela diz que no final da Etica, ele fala de uma certa forma de imortalidade, a imortalidade que vem do abandonar sua própria identidade, desistindo da infinita teia de conexões que ele identifica com a causa sui que pode ser concebida alternativamente como Deus ou a Natureza.

Enfim, vai longe a discussão e é algo realmente interessante.

Ricardo disse...

Caro Guilherme:
Também tenho o livro da Rebecca Goldstein. Cheguei a começar a lê-lo, mas não dei continuidade; portanto, não sei como ela aborda o tema.
Parênteses aqui, para nossos amigos que não têm o livro. O curioso é que esse livro pertence a uma série em homenagem a pensadores judeus. E o título "Traindo Spinoza" vem do fato de ele ter sido expulso da religião judaica e, agora, ser homenageado como um pensador judeu.
Durma-se com um barulho desses! Rsss.
Em minha opinião, o que me pareceu uma espécie de "iluminação" na filosofia spinozana é justamente essa percepção do pertencimento ao Todo. A eternidade vem daí: já que o Todo/a Substância/Deus/a Natureza (Naturante) é eterno, essa descoberta de pertencimento, e não de alteridade, em relação a este Todo é o mesmo que ser eterno.
Se fôssemos meramente materialistas, por exemplo, defenderíamos que essa eternidade está garantida na nossa dissolução em átomos que perduram e compõem muitas outras coisas.
Se somos modos/modificações da Substância, há algo em nosso modo do atributo Pensamento, ou seja, na nossa alma, que estará "lá", mesmo depois do "desencontro" das nossas "partes".
Esse é um assunto realmente interessante.

Fora de Sintaxe disse...

vc nao sabe onde tem esse livro pra download? tô caçando na net mas nada até agora