sábado, 13 de junho de 2009

Julian Marías e o Helenismo

Durante minha vivência como budista, conheci a Filosofia. Fui me apaixonando aos poucos. Logo de início, fui apresentado a André Comte-Sponville, que me fez perceber a beleza do pensamento spinozano. Lendo um pouco mais, fui aprofundando meus conhecimentos em História da Filosofia, e me interessei pelo Epicurismo, como forma ética possível de ser vivida no Ocidente. Acabei "substituindo" minha ligação com o Budismo por um pensamento ético filosófico menos envolvido com uma certa mística, sempre presente nos "orientalismos" que são trazidos para o Ocidente.
Contei tudo isso só para dizer que, lendo a opinião do filósofo cristão Julian Marías, discípulo de José Ortega y Gasset, sobre o Período Helenista em seu livro "História da Filosofia", fiquei chocado.
Marías escreve:
"... o mais grave problema que as filosofias da época helenística colocam é o seguinte: do ponto de vista do saber, todas elas - inclusive a mais valiosa, a estoica - são toscas, de escasso rigor intelectual, de pouco voo; não há comparação possível entre elas e a marvilhosa especulação platônico-aristotélica, de incomum agudeza e profundidade metafísica..."
O filósofo cristão não parece ter entendido que a principal preocupação dos epicuristas e estoicos era ética. Entretanto, embasavam suas éticas em raízes metafísicas... ainda que essa metafísica fosse apoiada nas concepções fisicalistas/materialistas de ambas as escolas. Concordo até que a Metafísica aristotélica, muito mais que a platônica, era de agudeza e profundida incomuns, batendo as helenistas. Mas a proposta de Aristóteles era de que a Metafísica fosse a Filosofia Primeira, o fundamento de tudo. Desta forma, sua exploração dessa área da Filosofia tinha que ser profundíssima.
Mas tem mais:
"A Filosofia, outra vez fora da via da verdade, vai se transformar numa espécie de religiosidade de circunstância, adequada para as massas. Por isso, sua inferioridade intelectual é, justamente, uma das condições do enorme êxito das filosofias desse tempo..."
O discípulo do grande Ortega y Gasset - infelizmente - fala de uma "religiosidade... adequada para as massas..." que, pela "inferioridade intelectual" tem "enorme êxito". Parece esquecer, entretanto, que uma das bases do Cristianismo, que ele toma como doutrina de vida, é a ética da submissão e humildade diante dos acontecimentos, ou "desígnios de Deus", que é tomada emprestada justamente aos estoicos, substituindo apenas a figura de Deus, pela de ordem do cosmos... uma espécie de "destino".
Mas o pior é que o Sr. Marías não parece perceber que, se estivesse escrevendo sobre o Cristianismo, para um grupo de ateus, não poderia ter sido mais feliz em suas palavras. As afirmações de que o Cristianismo seria uma "espécie de religiosidade adequada para as massas" e que "sua inferioridade intelectual é, justamente, uma das condições do [seu] enorme êxito" seriam recebidas com total assentimento por parte de seu público.
A sorte é que temos o professor Paulo Ghiraldelli Jr., que, em seu "História da Filosofia - dos pré-socráticos a Santo Agostinho", refuta o espanhol, dizendo: "Não é verdade que a filosofia helenística é de pouco rigor intelectual. Talvez o que incomode Marías seja o fisicalismo desse período, uma vez que o próprio Marías é um espiritualista".

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito interessante. Concordo com você.

Aliás, interessante você citar o André Comte-Sponvile, tb comecei a ler Spinoza por influência dos breves comentários dele sobre este pensador.

Anônimo disse...

Quer dizer que você foi budista é? Tenho um carinho todo especial pelo budismo, principalmente na sua forma mais pura e filosófica, sem os "adereços" adquiridos ao longo de milênios. Sabe como é... como toda religião, o Budismo acabou agregando a si os costumes dos povos dos quais se tornou parte. Mas, peneirando este tipo de coisa, o Budismo é fantástico.

Ricardo disse...

Guilherme (nem sei se prefere que o chame de "Aton"):
O Sponville é um sujeito que, parece-me, "sentiu" muito bem Spinoza. Nem digo que "entendeu" bem, embora ache que isso aconteceu, mas talvez esse entendimento, meramente cognitivo, venha a reboque de algo mais originário, que foi "sentir" o pensamento spinozano.
Quanto ao budismo. Já fiz parte de dois grupos. Um primeiro, pareceu-me muito absorvido por um "fundo" cristão - ainda que isso não fosse declarado.
O segundo grupo, ligado a Thich Nhat Han, era ótimo. O orientador tinha, pelo menos na minha concepção, grande vivência do budismo. Gostei bastante. Mas fui obrigado, por questões de tempo, principalmente, a me afastar.
Hoje, na verdade, não sinto tanta falta, pois, como destaquei, acho que o Ocidente também produziu concepções éticas de altíssimo nível, passíveis de serem adotadas como modo de vida, como a de Epicuro.
Sobre a sua concepção de um budismo mais "puro", compartilho de sua opinião de que ele é possível. Cheguei a comprar dois livros que tratavam do assunto (depois cito os títulos para você).
Engraçado é que, no começo, quando descobri a Filosofia, e especificamente Spinoza, eu pensava numa "síntese" com o budismo, a qual eu dei o apelido de "Budispninozismo". Hoje, acho que isso não é necessário. Mas a verdade é que há pensadores que propõem essa síntese, como Winpahl.
De qualquer forma, meu primeiro exemplar da Ética está todo rabiscado com "vínculos" ao budismo.