quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Genealogia da Malandragem

A revista "Filosofia - Ciência&Vida" deste mês tem como matéria de capa "Nietzsche e o jeitinho brasileiro". Na própria capa há a referência de que "[Nietzsche] explica a genealogia da malandragem". Já no interior da revista, o título da matéria, que é o mesmo deste post, vinha seguido das seguintes palavras "O brasileiro sempre tem um 'jeitinho' para tudo. Saiba que relação existe entre a peculiar malandragem do brasileiro e a construção da Ética e da Moral na visão de Nietzsche".
Fiquei bastante curioso. Onde encontrar o filósofo da "transvaloração de valores" falando do "jeitinho brasileiro"? Lancei-me ao texto, de João E. Neto... mas não gostei da "costura" entre as ideias de Nietzsche e o conceito de "jeitinho brasileiro".
É verdade que o texto começa corretamente apontando que "a 'ética' do jeitinho e malandragem coexiste com a ética oficial. O cidadão que cobra dos políticos o cumprimento dos preceitos da ética tradicional é o mesmo que usa o expediente do jeitinho e da malandragem".
Prossegue, também corretamente, explicanco o método genealógico de Nietzsche, que, ao criticar os valores morais, rompe com a tradição metafísico-religiosa, que considerava os valores como sendo eternos, universais e imutáveis, passando a pensá-los por um viés histórico. Escreve o autor: "o pensador alemão enxergou a necessidade de realizar um exame acerca das condições históricas por meio das quais os valores foram engendrados. E coloca as seguintes questões: De que forma esses paradigmas morais teriam sido gerados? Por quais povos e em que época? Em que condições se desenvolveram e se modificaram?". O autor cita, então, um trecho de "Genealogia da Moral", onde está escrito: "Sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor 'bom' e 'mau'? Que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram, até agora, o crescimento do homem? São indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade de vida? ... O próprio valor destes valores deverá ser colocado em questão"... e completa João E. Neto "a partir do critério vida".
Até aqui tudo vai bem. A partir da tentativa de encontrar a genealogia da "ética da malandragem" no tal "critério, que é a vida", a coisa passa a ficar complicada.
O autor indica que as "violações ético-legais seriam uma espécie de 'drible' nas adversidades da vida, num país historicamente repleto de desigualdades. Tomando esse raciocínio como premissa, podemos dizer que, no Brasil, burlar as regras morais e legais foi algo que se impôs como forma de adaptação ao 'ambiente hostil'. O brasileiro precisou ser malandro para sobreviver numa sociedade cruel e de enorme abandono do poder público". E, em trecho posterior, dá exemplos de algumas dessas "violações ético-legais", dentre elas: "a mãe que fura a fila do atendimento de um sistema de saúde saturado para salvar o filho; ... o motorista que avança o sinal vermelho à noite para não ser assaltado...".
Parece-me que há dois enganos aqui. Primeiro, o "sistema de valores" que guia uma sociedade, segundo Nietzsche explica, diz respeito ao que está estabelecido como "correto e errado fazer". O paralelismo pretendido pelo autor da matéria não é válido quando se trata de falar sobre dois sistemas de valores que coexistem. Além disso, é óbvio que há "desvios morais pequenos"... ou "malandragens" em todas as sociedades. Esses "desvios morais pequenos", admitidos pelo senso comum, ainda que apenas tacitamente, aparecem desde os primórdios da sociedade ocidental. Um caso típico é o da prostituição. Os senhores casados, desde há muito, se serviam das moças "fáceis" e mantinham sua postura "moral" diante da esposa e das filhas - exigindo, inclusive, a virgindade destas como item necessário. Ou seja, sempre se admitiu uma certa "flexibilidade" quanto aos "pecadilhos".
Mas isso não tem a ver com o que Nietzsche diz. Inclusive, isso só reforça a ideia do filósofo de que os fracos criam uma determinada moral com inveja do que não podem obter às claras, por não possuírem a "potência" dos fortes. Essas "escapulidas" da moral estabelecida seriam justamente o momento em que eles podem se sentir fortes, abandonando aquela moral construída para "ovelhas", que são eles mesmos.
Em segundo lugar, alguns dos exemplos dados pelo autor não são, de modo algum, formas de "malandragem"; são, sim, necessidades. Ninguém espera com senha, enquanto seu filho morre... a não ser que não haja outro jeito. Ninguém para no sinal com a forte impressão de que será assaltado... mesmo pagando multa. A "malandragem" implica a vantagem pela vantagem, pelo mero individualismo do "Me dei bem!".
Portanto, acho que João E. Neto não obteve êxito no seu intento.
De qualquer forma, a matéria cita uma referência interessante... e preocupante, da antropóloga Lívia Barbosa, que diz "Ao funcionar como válvula de escape, ela [a transgressão pelo jeitinho] impede o surgimento de uma pressão social efetiva que leve a mudanças tão necessárias no nosso aparato legal e administrativo".
Realmente, os "jeitinhos" só vão adiando um enfrentamento necessário dos problemas profundos da sociedade brasileira... postergando a solução efetiva desses mesmos problemas.

4 comentários:

Prof. Guilherme Fauque disse...

Ricardo, estou curioso... e gostaria de te "desafiar" no bom sentido.

Observo que fazes comentários (muito bons e eruditos) das tuas leituras. Mas não vi um texto teu realmente. Um texto onde exponha tuas ideias de forma organizada sobre uma temática.

O que você acha? Vou dar uma dica... abordei como temática a morte, utilizando como base a inversão do ciclo de vida proposta no filme de Benjamin Button. Tem uma parte do filme que achei fantástica, quando ele fala do silêncio da noite, quando ele se encontra para conversar com uma mulher no saguão do hotel, e ali saem belas conversas. Então, a temática do silêncio, como provedora de boas reflexões, é interessante... talvez num paralelo com Espinosa e sua "solidão reflexiva", ou com "Nietzsche e suas "subidas da montanha"... o que você acha deste desafio? Fazemos isto na faculdade e saem belos textos. Normalmente propomos um filme ou uma temática, definimos um máximo de 4000 caracteres com espaço (isto quando é para se publicar em revistas ou jornal), ou 3 folhas, com espaço entre linhas de 1,5. Outra coisa interessante no desafio... escrever de forma a ter como alvo o leitor comum e não acadêmico, escrever "compreensivelmente"... isto é algo que sempre procuro ter em mente, ou seja, quem vai ler o texto.

É um gostoso desafio reflexivo, que só traz aumento da criatividade. Gosto muito de fazer isto. Agora estou escrevendo sobre o caso ocorrido na Alemanha, no séc. XIX, de Kaspar Hauser, já ouviu falar?

Espero que aprecie a ideia, iria adorar ler um texto teu organizado, que não fosse somente um comentário. Com o teu conhecimento, podem sair textos ótimos e proveitosos.

Abraços

Ricardo disse...

Caro amigo:
Tenho que, inicialmente, agradecer-te a gentileza pela referência aos "comentários (muito bons e eruditos" que eu faria das minhas leituras.
Sobre o teu "desafio", achei-o muito interessante. Resta saber se eu teria capacidade para aceitá-lo.
Se queres saber, de verdade, já iniciei, certa vez, um livro sobre Metafísica. O formato seria bastante acessível. Fiz um esqueminha rápido do que pretendia e dei início à "obra", mas as atividades quotidianas me afastaram do curso.
Tu sabes que até minha mulher já me perguntou sobre o tal livro? Eu disse a ela que, no dia do lançamento, mandarei um convite para ela... mas só se ela for comprar um volume. Rsss.
Fora isso, os textos mais "organizados" que produzo são cartas que, por vezes, troco um amigo filosófico, o Bernardo. Normalmente, o tema é a "realidade". Na verdade, os temas são diversos, mas acaba contendo sempre essa ideia central.
Mas, voltando à tua sugestão.
A ideia, como disse, é interessante. Mas eu acho que o momento presente é mais o dos pequenos comentários que coloco no blog. Apesar de apoiados em leituras, quase todos os posts têm como conteúdo uma visão pessoal dos assuntos em questão.
Mas está anotado... inclusive a parte "formal" do desafio, caracteres, espaço, extensão, etc.
Podes ter certeza que, quando sair um texto com as características que tu sugeriste, serás o primeiro a lê-lo... se me deres o prazer de tomar teu tempo para comentá-lo.
Sobre Kaspar Hauser, sinceramente, nunca tinha ouvido falar dele. Obviamente, fui procurar algo na net. O caso é bem curioso. Aguardarei teu texto ansiosamente.
E, por fim, agradeço tua, sempre empolgante presença.

Prof. Guilherme Fauque disse...

Opa, não diga que estava escrevendo um livro??!!! Não para não! Continua que eu tenho certeza que será ótimo... aliás, pelo menos um exemplar você já tem vendido... para mim - hahahaha

Entendo que um texto leve mais tempo para planejamento, Ricardo. E tempo é algo que acaba ficando escasso mediante os afazeres cotidianos, eu bem o sei!!! As vezes começo um texto mas acabo levando alguns dias para poder concluir porque tenho que escrever em etapas - rsrsrsrrs.

Agora, por exemplo, tem o retorno das aulas e aí... aí fica complicado! São planejamentos de aulas, cursos, a pesquisa que estou fazendo para o mestrado... Aproveitei para atualizar o máximo que pude o blog agora, porque sei que terei que ir muito mais devagar a partir de agora.

Ricardo disse...

Guilherme:
Obrigado pelo voto de confiança em relação ao meu "livro"... futuro livro, melhor dizendo. Rssss.
Quanto ao texto objeto do teu "desafio", não penses que estou "correndo", não. Só estou postergando. Rsss.