terça-feira, 4 de agosto de 2009

Quase concluindo o "passeio"

Continuando a viagem por "O passeio do cético", de Diderot, comento as duas últimas alamedas.
Como diz o ditado "Os últimos serão os primeiros". Então, começo pela última alameda descrita por Diderot: a "Alameda das Flores".
Como eu já havia dito antes, essa alameda diz respeito ao caminho dos prazeres. Seria de se esperar que Diderot - cuja vida é marcada por tantas estórias de amantes - elogiasse esta via. Entretanto, o que vemos é uma crítica severa - seria um reconhecimento dos erros na vida particular? Diderot, na voz da personagem, mostra as "aventuras" amorosas dos viajantes dessa alameda, deixando clara a pouca importância que eles dão ao amor verdadeiro. Os casos amorosos citados envolvem, sempre, falcatruas e espertezas.
A via que ganha maior destaque, como seria de se esperar num livro de Filosofia, ainda que seja um romance filosófico, é a "Alameda dos Castanheiros" - que corresponde ao caminho seguido pelos filósofos.
Nesta parte, Diderot explica que a "multidão está dividida em bandos" - que são as escolas filosóficas. Ele passa a descrever as posições de cada escola, sempre de modo muito irônico. A descrição dos "pirrônicos" é a seguinte: "pessoas que dizem que não há nem alameda, nem árvores, nem viajantes; que tudo o que vemos poderia ser alguma coisa e poderia também não ser nada", caracterizando bem os céticos como aqueles que têm que fazer uma suspensão dos seus juízos, visto acreditarem que não podem conhecer nada.
As descrições seguem, com Diderot delineando os perfis dos ateus, deístas, panteístas, idealistas/solipsistas, etc.
A caracterização dos ateus é muito sugestiva, também: "admitem que há uma alameda e árvores, mas pretendem... que o príncipe é apenas uma quimera, que a venda dos olhos é o uniforme dos tolos e que o temor do castigo atual é a única boa razão para se conservar a roupa limpa. Caminham intrepidamente em direção ao final da alameda, onde acham que a areia afundará.... e que serão engolidos, não sendo apegados a nada". Lembrando que "príncipe", "venda nos olhos" e "roupa limpa" são as metáforas para "Deus", "fé cega" e "alma pura", respectivamente.
Não poderia deixar de registrar o "bando" cujo líder é descrito como "uma espécie de guerreiro, que fez incursões frequentes e sempre causou alvoroço na alameda dos espinhos" - o nosso querido Spinoza, segundo a nota da edição original. O trecho do texto onde esse grupo aparece é o seguinte: "Um quarto bando dir-te-á que a alameda foi construída sobre as costas do monarca... Tira-se proveito da razão e de algumas expressões equivocadas para insinuar que o príncipe faz parte do mundo visível; que ele e o universo são apenas uma e mesma coisa e que nós mesmos somos parte de seu vasto corpo".
Há dois pontos altos nesse trecho do livro: o diálogo entre um devoto e um ateu e a reunião de representantes das diversas escolas num debate.
O primeiro, eu vou deixar para registrar num post futuro, pois ele merece um pouquinho mais de espaço. De qualquer modo, como "aperitivo", digo que o trecho é bem representativo de uma conversa entre um "crente" e um "não crente" - nem diria, necessariamente, ateu... poderia ser um agnóstico, também. Um dos pontos que vale a pena registrar é aquele em que o ateu, que pretende usar a "luz natural" da razão, vê-se embaraçado pela constante referência à Bíblia, por parte do crente. Ele diz "Ah, deixai para lá vosso código. Combatamos com armas iguais. Apresento-me sem armadura e de boa vontade, e vós vos cobris de um arnês mais apropriado para embaraçar... seu homem do que a defendê-lo... E de onde tirastes que vosso código é divino?... Que confiança podeis ter nesses relatos maravilhosos dos quais essa obra está cheia?... Acreditais e quereis obrigar os outros a acreditar em fatos inusitados, invocando escritores mortos há mais de dois mil anos, enquanto vosos contemporâneos vos enganam todos os dias sobre acontecimentos que se passam a vosso lado, e que estais em condições de verificar!".
Sinceramente, não há como deixar de concordar com Diderot de que, sem uma avaliação crítica do que lemos, no nosso quotidiano, podemos ser facilmente conduzidos por opiniões alheias... que diremos, então, de textos tão pouco verossímeis; escritos com parcialidade total; cheios de interesses, nem tão obscuros, de propaganda; narrando fatos de tantos e tantos séculos (em verdade, dois milênios) anteriores.
O outro ponto a destacar é o encontro dos representantes de céticos, ateus, deístas, panteístas e idealistas.
Nesse debate, surge um questionamento que está muito na moda hoje, no que diz respeito ao embate entre o criacionismo e o evolucionismo. Um dos representantes deístas diz: "Temos diante de nós uma máquina... um relógio não revela a inteligência do relojoeiro que o construiu? Ousaríeis afirmar que são obras do acaso?", ao que o ateu responde: "As coisas não são iguais. Comparais uma obra acabada, cuja origem e cujo autor são conhecidos, com um composto infinito, cujo início, cujo estado atual e cujo fim são ignorados, e sobre cujo autor não fazeis senão conjecturas". O deísta insiste: "Sua estrutura não anuncia um autor?" e o ateu retruca com um argumento que, penso, é realmente decisivo: "Não. Não estais vendo como ele é. Quem vos disse que essa ordem que admirais aqui não é desmentida em nenhum lugar? Será que vos é permitido tirar conclusões a partir de um ponto do espaço para o espaço infinito?".
Nota do tradutor destaca que essa limitação da prova pelos efeitos já havia sido assinalada pelo inteligentíssimo David Hume em seus "Diálogos sobre a religião natural".
Uma "simplificação irônica da filosofia de Espinosa", segundo nota do tradutor, é feita um pouco a seguir da passagem anterior. O começo deste trecho lembrou-me mais uma referência à negação da causalidade, como fizera Hume. Nele, o panteísta rejeita a tese da regularidade do mundo, indicando que o príncipe (Deus) poderia, um dia, resolver modificar o que observamos. Fico com a impressão de haver, enganadamente, uma referência a uma "vontade" em Deus/Natureza, que não parece se coadunar com o pensamento spinozano.
De qualquer forma, o trecho final é totalmente pertinente ao sistema spinozano, ao indicar que "Procurai-o [a Deus] antes em vós mesmos. Fazeis parte de seu ser; ele está em vós, vós estais nele. Sua substância é única, imensa, universal; somente ela existe: o resto são tão-somente seus modos".
Por fim, duas pequenas passagens divertidas.
Na primeira, o ateu se rebela contra a observação de que a beleza de todas as coisas existentes revela a "presença" de Deus: "Bela ocupação para esse grande monarca, a de exercer o seu savoir-faire sobre os pés de uma lagarta e sobre a asa de uma mosca".
Na segunda, um cético fala sobre o extenso conhecimento dos deístas sobre os desígnios de Deus: "Esses senhores são os confidentes do grande artífice, assim como os eruditos são os confidentes dos autores que comentam, para fazê-los dizer o que nunca pensaram".

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